China compra quase metade da soja colhida em áreas desmatadas na Mata Atlântica

Análise exclusiva mostra que área devastada do tamanho de Recife virou plantação de soja

Por Anna Beatriz Anjos, Agência Pública

Em 2020, a China importou quase metade da soja colhida em áreas desmatadas na Mata Atlântica durante os cinco anos anteriores. O bioma se estende por vários estados brasileiros, do Sul ao Nordeste, e conta hoje somente com 12% de sua vegetação original. Os dados, que a Agência Pública obteve com exclusividade, foram analisados pela Fundação SOS Mata Atlântica em parceria com a organização não governamental Trase, que rastreia cadeias de produção de commodites agropecuárias, como a própria soja, carne, milho, trigo, entre outras.

Segundo o levantamento, em 2020 – ano mais recente do mapeamento –, havia 22,3 mil hectares de soja, uma área maior que Recife, em locais de Mata Atlântica devastados entre 2015 e 2019. Isso provavelmente aponta para infrações à Lei da Mata Atlântica, em vigor desde dezembro de 2006, que proíbe a retirada da vegetação original (chamada de primária) e a que cresce após o desmatamento (chamada de secundária) que esteja em estágio avançado de regeneração. A lei permite o desmatamento em poucas situações, como construção de infraestruturas pelo Estado, o que configura “utilidade pública”.

Os dados revelam que 46% da soja produzida nesses 22,3 mil hectares foram exportados para a China, o maior parceiro comercial do Brasil. Outros 44% foram destinados ao mercado brasileiro, e cerca de 3%, à União Europeia.

A SOS Mata Atlântica e a Trase alertam que esses números podem estar subestimados, já que a avaliação foi feita com base nos limites oficiais do bioma, definidos pelo IBGE. Entretanto, a Lei da Mata Atlântica tem uma abrangência maior, que inclui áreas de expansão da soja na Bahia, Piauí e Mato Grosso do Sul.

A soja é o principal item de exportação do Brasil ao país asiático, que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) visita de 12 a 15 de abril. Ao se reunir com o presidente chinês Xi Jinping na sexta-feira (14) e cumprir outras agendas bilaterais, o petista pretende fortalecer as relações com a China, enfraquecidas durante o governo de Jair Bolsonaro (PL). Representantes do agronegócio brasileiro acreditam que a viagem pode ampliar ainda mais a parceria comercial entre o setor e o país.

No entanto, o engenheiro agrônomo Luís Fernando Guedes Pinto, diretor executivo da SOS Mata Atlântica, destaca que a China, atualmente o país com as maiores emissões anuais de gases de efeito estufa no mundo, tem sinalizado a intenção de criar mecanismos para evitar a importação de commodities ligadas à derrubada de florestas, a exemplo do que fez a União Europeia, que aprovou uma lei antidesmatamento no final de 2022.

“É importante lembrar que a China presidiu a COP15 da Biodiversidade em dezembro do ano passado. Lá, atuou pela proteção da biodiversidade e dos ecossistemas [ao final da conferência, foi adotado o novo marco global da biodiversidade]. Ela tem compromisso internacional não só na questão do carbono [no Acordo de Paris], mas também da biodiversidade. É uma tendência natural que num curto prazo o país exija desmatamento zero das commodities brasileiras e o cumprimento da legislação, que no Brasil é algo essencial”, pontua Pinto. A Mata Atlântica é o único bioma brasileiro a contar com uma lei própria de proteção.

Uma exigência nesse sentido por parte da China, prossegue o engenheiro agrônomo, pressionaria ainda mais fortemente o Brasil a atingir a meta de zerar o desmatamento, que o atual governo se comprometeu a cumprir até 2030 em todos os biomas, não apenas na Amazônia e no Cerrado, os mais citados quando se fala no avanço da fronteira agropecuária.

Além disso, a Mata Atlântica é central no cultivo da soja brasileira. No total, o bioma entregou quase 35 milhões de toneladas do grão em 2020, valor equivalente a quase um terço da produção anual do Brasil. A China importou 55% dessa soja: outros 25% foram para o consumo interno brasileiro, e os 20% restantes foram exportados para a Holanda, França e Coreia do Sul, sendo que a Holanda provavelmente destinou o produto a outros países europeus.

Vivian Ribeiro, líder do time de Inteligência Geoespacial da Trase, afirma que a soja e as demais cadeias produtivas do agronegócio que atuam na Mata Atlântica, como pecuária, café e cana-de-açúcar, deveriam guiar a recuperação das áreas devastadas ou degradadas, mas o que tem acontecido é justamente o contrário. “A agenda de debates ao redor da Mata Atlântica não deveria ser a de desmatamento zero, é uma vergonha que estejamos conversando sobre isso ainda. A agenda deveria estar centrada em como os países importadores poderiam na verdade dar suporte a restauração do bioma”, aponta.

O desmatamento da Mata Atlântica vinha diminuindo desde 2016, mas voltou a crescer em 2019, de acordo com dados divulgados anualmente pela SOS Mata Atlântica em parceria com o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Os números mais recentes mostram que, somente entre 2020 e 2021, o desmate cresceu 66% em relação ao período anterior, de 2019 e 2020, o maior aumento percentual desde o início do monitoramento, em 1985. Essa elevação significou a emissão de 10,3 milhões de toneladas de CO2 equivalente na atmosfera.

A taxa para o último ano ainda não foi publicada, mas um levantamento do SAD Mata Atlântica, sistema de alertas desenvolvido pela SOS Mata Atlântica e o Mapbiomas, aponta que mais de 48,6 mil hectares do bioma, área quase equivalente à extensão de Porto Alegre, foram derrubados somente entre janeiro e outubro de 2022.

“Boiada” aprovada na Câmara flexibiliza proteção ao bioma

Luís Fernando Guedes Pinto avalia que a proteção à Mata Atlântica pode ficar ainda mais fragilizada se o Senado aprovar a Medida Provisória 1.150, originalmente editada por Bolsonaro em 23 de dezembro, no apagar das luzes de seu mandato.

A princípio, a medida propunha apenas a prorrogação para que imóveis rurais aderissem ao Programa de Regularização Ambiental (PRA), previsto no Código Florestal. Mas a Câmara dos Deputados, que votou  a matéria em 31 de março, incluiu um “jabuti” que afrouxa Lei da Mata Atlântica. O texto aprovado flexibiliza as situações em que é permitido o desmatamento da vegetação primária e secundária em estágio avançado de regeneração no bioma. Entre outros pontos, também retirou a necessidade de parecer técnico dos órgãos ambientais estaduais para desmatamento de vegetação em estágio médio de regeneração em áreas urbanas.

“No fundo, a MP libera o desmatamento do bioma, inclusive de suas florestas maduras, mais protegidas e mais raras”, explica Pinto. “Ela permite que a gente corte essas florestas maduras para plantar soja ou qualquer outro produto. É mais um ataque à Mata Atlântica, que não deixa de ser um incentivo, um convite para o desmatamento.”

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