A Munduruku que começa a aldear o mundo

Ameaçada de morte no Brasil, a indígena Alessandra Korap está entre seis ativistas do planeta que têm seu trabalho reconhecido nesta segunda-feira pelo prestigioso Prêmio Goldman de Meio Ambiente

HELENA PALMQUIST, em Sumaúma

Alessandra Korap Munduruku nasceu e cresceu em uma aldeia perto de Itaituba, município no sudoeste do Pará, bem na beira do rio Tapajós. Como criança indígena, a mais velha de sete irmãos, ela passou a infância mergulhando no rio e brincando nas matas, construindo tapiris de brincadeira, caçando antas de brincadeira, pegando peixes e colhendo mandioca de brincadeira. Viu então a cidade crescer e crescer… até engolir a sua aldeia.

A Praia do Índio é hoje uma reserva indígena em um bairro urbano de Itaituba, a cidade mais garimpeira da Amazônia. E Alessandra é hoje uma liderança indígena ameaçada de morte por sua luta pela floresta em pé, pelos rios sem mercúrio, pelos corpos sem veneno no sangue. Nesta segunda-feira, 24 de abril, a menina Munduruku vai estar em um palco na cidade de São Francisco, na Califórnia, Estados Unidos, recebendo o prestigioso Prêmio Goldman de Meio Ambiente. A premiação anual, uma das mais importantes do mundo, reconhece a luta de seis ativistas, um de cada continente do planeta – haverá transmissão ao vivo pelo YouTube a partir das 21h30, no horário de Brasília. Uma segunda cerimônia vai acontecer em Washington, no dia 26, com a presença da presidente emérita da Câmara dos Deputados americana, Nancy Pelosi.

Alessandra se formou como guerreira na luta contra o projeto do governo Dilma Rousseff (2011-2016) de construir megabarragens no rio Tapajós. Viu o tráfego de caminhões de soja e a presença de imensas balsas graneleiras se tornarem uma ameaça, com a construção do porto de Miritituba, uma das principais rotas de exportação do agronegócio do estado de Mato Grosso. Presenciou a explosão dos garimpos no governo do extremista de direita Jair Bolsonaro, criando conflitos étnicos internos e contaminando as águas que banham o território Munduruku.

Pressionada pelas inúmeras ameaças ao território, inspirada pela intensa atividade política dos caciques e marcada pela dor do racismo, que sofreu desde criança, ela se tornou uma das lideranças mais importantes e conhecidas de seu povo. “Eu tinha uma liberdade muito grande quando era jovem, criança, andava por todos os cantos, pelo rio, pelas matas. Quando a gente é jovem não pensa muito, né? Queremos viver. Mas, quando tive meus filhos, comecei a pensar neles. Eu fui vendo que, andando pelo território, não tinha mais aquele espaço todo. A gente ia tirar açaí, bacaba… e já não tinha. Ia pescar, e estava mais difícil. Já víamos muitas balsas pelo rio, espantando os peixes. A gente foi recuando dentro do nosso território”, conta a SUMAÚMA. “Eu fui em uma assembleia, em 2014, e ouvi as falas dos caciques. Percebi que nosso território estava sendo ameaçado. E eu pensei que meus filhos vão se casar um dia, vão ter filhos, e os filhos deles vão ter filhos. E para onde eles vão?”

Para Alê, como é chamada pelos parentes e amigos, a iniciação na vida política ocorreu em uma reunião do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), em 2014. Naquela época, estava no centro do debate a ameaça da PEC 215 (Proposta de Emenda Constitucional apresentada por ruralistas, hoje arquivada, que pretendia transferir para o Congresso Nacional a tarefa de demarcar terras indígenas). Alê lembra que os ativistas do Cimi estavam alertando sobre essa e outras ameaças e que ela se pegou pensando: “Está acontecendo aqui também. A gente não consegue mais tirar semente porque tem um loteamento, a gente não pode pescar por causa das balsas, e onde antes tinha pedras pra gente se banhar hoje é só lama na beira do rio. O nosso direito também está sendo violado”.

Outro mundo se abriu para Alessandra durante aquele debate. “Um mundo não só de brincar, de estar ali, mas um outro mundo, de lutar e de resistir”, resume. Lutar e resistir são verbos sempre mencionados quando se fala dos Munduruku, conhecidos historicamente como grandes guerreiros que dominavam todo o vale do rio Tapajós, no oeste do que é hoje o estado do Pará. Na época dos primeiros contatos com os brancos, eles eram tão onipresentes que a região era conhecida como Mundurukânia.

Os Munduruku somam hoje cerca de 14 mil pessoas e vivem nas terras indígenas Munduruku, Sai Cinza e Kayabi, no alto curso do Tapajós e no rio Teles Pires; nas terras Sawré Muybu e Sawré Bap’in e nas reservas Praia do Índio e Praia do Mangue, no médio curso da bacia. Existem grupos Munduruku lutando pelo reconhecimento de seus territórios também no Baixo Tapajós, próximo a Santarém, e no rio Madeira, no Amazonas. Nos anos 2010, o povo Munduruku promoveu um processo de autodemarcação para definir os limites da terra Sawré Muybu, que fica no local onde o governo Dilma Rousseff tentou, sem sucesso, construir a hidrelétrica de São Luiz do Tapajós.

A luta pela demarcação, na refinada estratégia política dos Munduruku, era necessária também para evitar a destruição do rio Tapajós pela barragem. Eles chegaram a ocupar os canteiros da usina de Belo Monte, paralisando as obras, em maio de 2013, para chamar a atenção para o que poderia ocorrer no Tapajós e para a necessidade de demarcação do território Sawré Muybu. Só aceitaram sair da área depois que foram recebidos pelo governo federal em Brasília. Na época, a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) admitiu que o andamento do processo de demarcação estava paralisado devido a pressões do setor elétrico. A Constituição brasileira veda a remoção de comunidades indígenas, e a usina de São Luiz do Tapajós alagaria três aldeias Munduruku. Em 2016, a Funai finalmente oficializou em parecer que o projeto da barragem era inconstitucional.

Na época das lutas contra as hidrelétricas e pela autodemarcação, Alessandra Korap dava seus primeiros passos como liderança. Ao lado de Maria Leusa Kaba, outra destacada liderança feminina dos Munduruku, que a estimulou a seguir na luta, ela passou a falar nas reuniões. Seu povo tem a prática de realizar grandes assembleias em que todos os presentes – velhos, crianças e adultos – têm direito à palavra. Essas assembleias periódicas são parte fundamental dos processos de mobilização e decisão política dos Munduruku. Nelas, lideranças de todas as aldeias de uma determinada região se encontram em uma aldeia escolhida e passam dias discutindo extensas pautas sobre tudo o que afeta a comunidade. Alguns não indígenas são convidados a participar das assembleias, mas a língua Munduruku domina em todos os debates.

Nem sempre foi assim. Alessandra lembra que uma das primeiras lutas que testemunhou foi a do professor Amâncio Ikõ Munduruku para a instalação de escolas com professores que ensinassem na língua Munduruku. Na época, as professoras não indígenas, sobretudo na região do Médio Tapajós, onde Alê cresceu, reprimiam o uso da língua materna e proibiam as crianças de frequentar as aulas com pinturas de jenipapo no corpo. Uma geração crescia com vergonha das próprias tradições, e, para o povo Munduruku, a educação é um valor muito importante. A luta do professor Amâncio, que morreu em 2020, vítima da pandemia de covid-19, deu resultado, e foram instaladas escolas nas aldeias da região de Itaituba para garantir o ensino da língua. Mas a experiência constante desse racismo deixou marcas profundas em Alessandra.

Dona de uma retórica forte, ela fala com assertividade. Tornou-se famosa nacionalmente nas mobilizações do Abril Indígena em 2019, quando um vídeo de uma reunião dos Munduruku com o então presidente da Câmara Federal, Rodrigo Maia, viralizou nas redes sociais. Na cena, Alessandra bate na mesa diante de um Rodrigo Maia atônito.

“Por que não demarcam nossa terra? A Funai não existe mais. A Damares, aquela mulher não representa a nós, indígenas. Ela não conhece o que é indígena, não conhece terra indígena, ela não conhece o rio, ela não sabe o que é a vida. E aquele Bolsonaro, temos que dizer pra ele: respeita nosso território, respeita nossos direitos, respeita nossos antepassados. Desde 519 anos estamos resistindo. E, mesmo que tirem nossa raiz, ela tá lá infiltrada, e ela tá crescendo, e ela vai criar mais frutos, e as flores vão se espalhar, porque nós estamos aqui para lutar”, disse a guerreira Munduruku a Rodrigo Maia.

Alessandra atribui sua forma direta de usar as palavras em parte ao trauma do racismo, que viveu desde muito pequena: “Minhas falas sempre são assim, muito fortes, sempre fui assim, de falar e gritar. O que eu acho ruim, eu sempre falo. Acho que vem dessa experiência de violência. Me fez não calar, sabe? Eu não consigo ficar calada diante do que está errado”.

O Prêmio Goldman é um reconhecimento importante da luta de Alessandra e dos Munduruku contra o garimpo ilegal, que contaminou quase todos os seus parentes na região do Médio Tapajós. O povo Munduruku pediu à Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) que estudasse a situação, e em 2022 os resultados foram apresentados: eles mostram que todos os 200 moradores da Terra Indígena Sawré Muybu estão afetados por mercúrio. Hoje, os Munduruku reivindicam junto ao governo Lula a instalação de um plano de erradicação do garimpo e do mercúrio.

Mas não é só o garimpo ilegal que preocupa Alessandra. Um dos motivos citados pela Fundação Ambiental Goldman para premiá-la foi a campanha para evitar que a empresa britânica Anglo American prosseguisse com os planos de extrair cobre dos territórios indígenas. Em 2021, a empresa se comprometeu formalmente com os Munduruku a retirar os 27 projetos de pesquisa que tinham sido aprovados pela Agência Nacional de Mineração (ANM). Desses, 13 afetariam diretamente a terra Sawré Muybu.

Ao receber a premiação hoje, em São Francisco, Alessandra pretende falar sobre suas esperanças de que seja feita a demarcação definitiva de todos os territórios Munduruku, incluindo as duas terras do Médio Tapajós onde ela vive: a Sawré Muybu, que já foi identificada e delimitada, e a Sawré Bap’in, que está em estudo. Há a expectativa de que, na semana mais marcante da luta dos povos indígenas, que também se inicia hoje com o Acampamento Terra Livre 2023, em Brasília, o presidente Lula, a ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, e a presidenta da Funai, Joenia Wapichana, anunciem avanços nos processos de demarcação.

“Nós temos esperança, mas também temos muitos problemas. É o caso das demarcações. São os invasores dentro dos territórios. É preciso respeitar os nossos direitos, principalmente os de consulta ao nosso povo. O governo não pode decidir sozinho”, diz Alessandra. Ela se refere a um direito indígena previsto na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) que nunca foi respeitado por nenhum governo brasileiro, inclusive pelos governos de esquerda que construíram hidrelétricas sem consulta aos indígenas e tentaram impor a usina de São Luiz do Tapajós aos Munduruku e a outros povos tradicionais.

“Acompanhamos a visita do Lula à China, do Helder [Barbalho, governador do Pará], e o que eles foram fazer na China? Negociar nossas terras? Tudo o que eles negociaram lá interfere diretamente nos nossos territórios. Se assinaram uma ferrovia [a Ferrogrão, para a exportação de soja, que corta territórios indígenas e ribeirinhos do Tapajós], vão passar por cima dos povos? A ferrovia é uma porta aberta para o agronegócio. E não é apenas plantação de soja, mas todo o conjunto da infraestrutura que, por estar na Amazônia, vai afetar todos os territórios indígenas, nosso rio, nossa floresta. Não é o ministério dos próprios indígenas que vai nos silenciar. A ministra Sonia representa os povos indígenas, mas nós exigimos ser consultados”, diz. Foi essa força, em que a política não é partidária, mas ancestral, que deu a Alessandra Korap o prêmio que ela recebe nesta segunda-feira como mais uma oportunidade para falar em nome do seu povo – e especialmente das mulheres do seu povo.

ALESSANDRA KORAP MUNDURUKU CONTA QUE, QUANDO TEVE SEUS FILHOS, COMEÇOU A PENSAR NO FUTURO DELES AO VER SEU TERRITÓRIO AMEAÇADO: ‘PARA ONDE ELES VÃO?’ FOTO: GOLDMAN ENVIRONMENTAL PRIZE.

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