Uma contradição marca o mandato de Lula, agora em seu quinto mês. Presidente mantém promessa de enfrentar desigualdade e regressão do país. Não parece se dar conta de que “arcabouço” preparado pela Fazenda impedirá cumprimento da promessa
Ao que tudo indica, o presidente Lula ainda não foi bem alertado a respeito dos riscos embutidos no texto sobre o arcabouço fiscal que a equipe econômica lhe entregou para que ele encaminhasse oficialmente ao Congresso. A matéria ganhou a forma do Projeto de Lei Complementar PLP 93/2023 e que já começou a tramitar n Câmara dos Deputados. O deputado Cláudio Cajado (PP/BA) será o relator. O parlamentar do bloco conservador já tem dado declarações e tomado inciativas que visam arrochar ainda os critérios da austeridade fiscal.
A trapalhada toda começou ainda antes da posse do novo governo, quando foi redigida a chamada “PEC da Transição”, promulgada sob a forma da Emenda Constitucional (EC) 126. Naquele momento, ao invés de simplesmente propor a eliminação do teto de gastos por meio da revogação da EC 95, tal como proposto durante a campanha eleitoral, a estratégia sugerida pelo futuro ministro da Fazenda foi introduzir uma verdadeira armadilha na proposta de emenda constitucional. Sabe-se lá por qual motivo, o governo criou um problemaço para si mesmo e para o país, antes de tomar posse.
A EC 126 estabelece que o teto de gastos só será efetivamente revogado quando for sancionada uma lei complementar que trate de um novo regime fiscal. Pelo texto, o governo teria até 31 de agosto para encaminhar a proposição ao Parlamento. Fernando Haddad optou por acelerar a elaboração e a conclusão da proposta, processo em que ouviu apenas o presidente do Banco Central e representantes de bancos e do sistema financeiro para colher críticas e sugestões. Não foram chamados a conversar os economistas que pensam de forma diversa ao establishment do financismo, nem representantes do movimento sindical ou demais entidades da sociedade civil.
PLP 93 e a manutenção da austeridade
Por incrível que pareça, o governo do PT só negociou com banqueiros para formatar uma medida que afeta de forma direta a vida da maioria da população e pode comprometer de forma severa o futuro do Brasil. Como o PLP 93 veio para substituir a enorme desgraça representada pelo teto de gastos introduzido por Temer e mantido por Bolsonaro, a retórica apresentada agora para defender o indefensável diz que o “teto do Haddad” seria melhor do que o do Meirelles e do Paulo Guedes. Ora, afirmar que a medida é melhor do que a EC 95 não é nenhuma virtude. Qualquer coisa consegue ser melhor do que o congelamento das despesas orçamentárias por longos 20 anos.
A proposta de Haddad é muito ruim por vários pontos de vista. Em primeiro lugar, ela se propõe a manter a lógica de geração de superávit primário como meta de política fiscal. Assim, o dispêndio financeiro com o pagamento de juros da dívida pública permanece como uma “despesa VIP” na execução do orçamento – um gasto sem teto e intocável. Ao longo dos últimos 12 meses, por exemplo, o valor total alcançou a cifra de R$ 700 bilhões para essa rubrica. E o pior é que se trata de recursos que se destinam apenas aos 1% do topo da nossa pirâmide da desigualdade.
Em segundo lugar, a proposta mantém a lógica de privilegiar o ajuste pelo lado da compressão de despesas em relação às receitas. De acordo com os dispositivos do PLP 93, as despesas só poderão crescer a um ritmo de 70% daquilo que for observado na elevação das receitas. Trata-se de um absurdo, que visa tão somente obter um saldo maior de tal subtração para que se converta em recursos destinados à despesa financeira. Ora, de qual cartola foi tirado esse número mágico? Por que não 80%, 90% ou 100%? Na verdade, não deveria existir nenhuma limitação a esse respeito.
Social liberalismo: traição e fracasso na Europa.
Em terceiro lugar, a proposta tem uma característica perversa: ela atua de forma prócíclica na dinâmica da macroeconomia. Na verdade, o que o Brasil necessita é justamente de uma política fiscal diametralmente oposta, que seja contracíclica, como se diz no economês. Isso significa que, ao contrário do que sugere o senso comum, e também os especialistas a soldo do sistema financeiro, nos momentos de recessão e estagnação da economia (como o atual), o Estado precisa aumentar o seu nível de despesas, em especial os investimentos públicos. A saída para alcançar a trilha do crescimento das atividades da economia e para viabilizar a implementação de um projeto de desenvolvimento nacional pressupõe o protagonismo do setor público e não a sua retração.
Já houve outros momentos na História em que a chegada de governos progressistas ao poder terminou por frustrar expectativas dos eleitorados e das próprias sociedades que apostaram na mudança. Foi o caso de François Mitterrand na França e de Felipe Gonzalez na Espanha, nas décadas de 1980 e 1990. Os partidos socialistas de ambos os países ganharam as eleições, mas terminaram por abandonar seus programas na área da economia, incorporando o discurso e os programas do neoliberalismo. Privatização e austeridade fiscal, entre outras medidas, passaram a fazer parte do cardápio de tais governos, seguidos logo depois por Tony Blair, à frente do Partido Trabalhista na Inglaterra.
Esta rendição aos pressupostos conservadores na política econômica ficou mesmo caracterizada como uma corrente pelos estudiosos da economia e da ciência política, o chamado social liberalismo. Eram governos ainda com algum grau de preocupação social, mas que se renderam programática e ideologicamente aos dogmas neoliberais. Criticados pelas forças políticas que aguardavam mudanças e saudados pelos defensores do sistema que deveria ser transformado, esses governos fizeram o serviço sujo para as elites de seus países e da União Europeia, abrindo caminho para o retorno da direita ao poder e facilitando o crescimento do extremismo de direita. A esquerda europeia sofre até hoje as consequências da estratégia equivocada que adotou no passado.
Austeridade fiscal: obstáculo ao desenvolvimento
Ora, o presidente Lula parece ter a intenção de caminhar em direção oposta. Seus discursos na cerimônia de 100 dias de seu governo e na manifestação do Primeiro de Maio sugerem a confiança em um programa de recuperação da economia e da sociedade. Lula segue bastante alinhado com as promessas de sua campanha, onde garantia que iria fazer mais e melhor do que em seus dois mandatos anteriores. Por outro lado, tem reafirmado a necessidade e o desejo de colocar em marcha um robusto programa de investimentos públicos, de forma a conseguir cumprir a meta de fazer 40 anos em 4. As regras do novo arcabouço fiscal não vão permitir que isso seja transformado em realidade. Logo depois de ter a política monetária sequestrada pela lei de autonomia do Banco Central, agora Haddad propõe abrir mão também do enorme potencial oferecido por uma política fiscal robusta e ativa.
O momento atual exige ousadia de um verdadeiro estadista. Lula tem esse perfil e apresenta condições únicas de liderança para conquistar corações e mentes da população brasileira em tal direção. Mas para levar tal projeto à frente, precisa livrar-se das amarras da austeridade fiscal embutidas no PLP 93. Talvez ele seja das poucas personalidades políticas do país capaz de convencer também parte de nossas elites a respeito da urgência de superar o dogmatismo do atraso, esse mesmo proporcionado pelo ideário liberal que se associa com a austeridade.
Até mesmo nos Estados Unidos a situação se modificou bastante. Recentemente o assessor especial da Casa Branca para Assuntos de Segurança Nacional, Jake Sullivan, fez uma longa exposição a respeito da estratégia do governo Biden. Alguns pontos chegam a surpreender observadores incautos das mudanças em curso no próprio centro do capitalismo global. Diz Sullivan:
(…) “Este momento exige que nós forjemos um novo consenso” (…)
(…) “os motores da desigualdade econômica estão associados aos cortes regressivos nos impostos, aos profundos cortes no investimento público, ao descontrole na concentração das grandes corporações empresariais e às medidas para minar o poder do movimento sindical” (…)
(…) “A moderna estratégia industrial americana identifica setores específicos que são fundamentais para o crescimento econômico, estratégicos de uma perspectiva de segurança nacional e nos quais a indústria privada sozinha não está em condições de realizar os investimentos indispensáveis para assegurar nossas necessidades nacionais. (…) Isso pressupõe a implantação de investimento público direcionado nestas áreas para destravar o poder a e a engenhosidade do mercado privado” (…)
(..) “ Uma declaração conjunta do Presidente Biden e da Presidenta da Comissão Europeia afirma que os investimentos públicos audaciosos em nossas respectivas capacidades industriais precisam estar no coração de nossa transição energética” (…) [GN e tradução livre do autor]
As tarefas para reconstruir o Brasil do desastre causado pelo governo do genocida e abrir caminho para o desenvolvimento social e econômico são incompatíveis com as amarras e as limitações impostas pela versão atual do PLP 93. Reproduzir por aqui os equívocos do social liberalismo, quando os próprios países do centro do capitalismo apontam para necessidade de recuperação do investimento público, pode se converter em um tiro no próprio pé. É por isto que a articulação das forças progressistas no interior do Congresso nacional e fora dele se torna tão importante. O movimento social precisa pressionar os congressistas aprovarem a as emendas apresentadas, que se destinam a aperfeiçoar o projeto e a retirar seus dispositivos que apenas reforçam a austeridade fiscal em prejuízo de um projeto nacional.
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Lula investe contra a taxa de juros, no 1º de Maio. Crítica é justíssima, mas para reconstruir país será precismo mais que discursos. Foto: Ricardo Stuckert