Os psicodélicos podem tratar a depressão?

por Alessandra Monterastelli, em Outra Saúde

Ao descer uma montanha com um ski, forma-se um caminho delimitado pelo escorregar do equipamento na neve. Poderíamos dizer que uma trilha foi criada e há uma tendência de que, ao descer a montanha novamente, um outro ski fará o mesmo percurso. É mais ou menos assim que funciona o comportamento depressivo: a repetição, devido a doença, de pensamentos e ações nocivas. “O psicodélico limparia essa trilha formada, e daria a oportunidade de novas trilhas serem percorridas” , explica Iago Lôbo, redutor de danos e psicólogo, a Outra Saúde.

Em sua participação no PULSO, o membro da Associação Psicodélica do Brasil (APB), falou sobre as crescentes pesquisas – nacionais e internacionais – que estudam o efeito dos psicodélicos na mente humana. Em 2021, a Organização Mundial da Saúde (OMS) estimava que 280 milhões de pessoas sofriam de depressão no mundo. A doença é uma das principais causas dos 700 mil suicídios que ocorrem a cada ano. Estudos recentes publicados na revista Nature indicam que substâncias psicodélicas podem ter impactos positivos no tratamento de doenças psiquiátricas – especialmente no caso dos pacientes que não respondem bem aos antidepressivos.

Os psicodélicos que vêm sendo testados pelos acadêmicos são variados. Já existem pesquisas consistentes com a ayahuasca, a cetamina e a psilocibina. No Brasil, a ayahuasca tem uma regulamentação específica por ser uma substância psicodélica de origem indígena. Sua utilização em contexto religioso facilitou a tradição das pesquisas no campo biomédico, que ocorrem nas universidades desde a década de 1990. Já as pesquisas sobre a cetamina (originalmente um anestésico dissociativo) são mais recentes. Hoje seu uso no país é off label, ou seja, é autorizado para terapias médicas apesar desse efeito não constar em sua bula.

Os antidepressivos que usamos hoje são, em maioria, inibidores seletivos de recaptação de serotonina (ISRS). Ou seja, eles permitem, a grosso modo, que quantidades maiores de serotonina (um neurotransmissor) fiquem em nosso cérebro. Até hoje, acreditava-se que as baixas concentrações de serotonina – seja por causas genéticas ou vivências – seriam a causa principal de depressão. Essa teoria, porém, vem caindo por terra conforme pesquisas avançam no campo – apesar da relação com a serotonina ainda existir, visto que os antidepressivos tendem a funcionar.

Os psicodélicos têm diferentes impactos do ponto de vista neurobiológico. Algumas pesquisas têm mostrado, segundo Lôbo, que essas substâncias estão ligadas à produção de BDNF, proteína relacionada à formação de novos neurônios – e que, em baixas quantidades, pode ser associada à depressão. Existem também dois conceitos diversos quando falamos sobre o cérebro: o de neuroplasticidade (capacidade de adaptação e reação a estímulos) e neurogênese, que se refere ao processo de formação de novos neurônios. “Os psicodélicos promoveriam esses dois fenômenos de alguma forma. Na prática, esse processo pôde ser observado em alguns mapeamentos da atividade cerebral durante o efeito dos psicodélicos, inclusive na promoção de comunicação entre mais partes do órgão”, conta Lôbo. Segundo ele, o cérebro sob efeito de psicodélicos estaria mais próximo do cérebro de uma criança – chamado entrópico, menos rígido – e com mais capacidade de aprendizado. Apesar de muitos voluntários relatarem melhora dos sintomas logo após a primeiro uso, uma pesquisa da Nature mostra que o efeito positivo cresce conforme o número de sessões.

Além do efeito biológico, muitos pesquisadores defendem que as experiências subjetivas durante o uso dos psicodélicos também são positivas para o tratamento. “Podem vir muitos tipos de experiências. Quanto maior o suporte que a pessoa tem, mais proveitosas e terapêuticas podem ser essas vivências”, explica o especialista. O acompanhamento pode ser de uma psicóloga no caso de sessões clínicas, mas também de lideranças religiosas no caso de uma cerimônia de ayahuasca. “Na psicologia, falamos que a pessoa que acompanha funciona como um ego auxiliar para quem está sob os efeitos psicodélicos, num estado de consciência em que a pessoa não está acostumada”, explica o psicólogo. Durante o uso, podem surgir sentimentos positivos e também negativos – como medo e ansiedade. “O vínculo desenvolvido com a pessoa que o acompanha acaba sendo um fator de proteção”, argumenta. O redutor de danos oferece

Outra parte dos estudiosos do campo defende o uso de parapsicodélicos, ou seja, substâncias sintetizadas para retirar o fator que gera a experiência subjetiva, deixando apenas o impacto farmacológico. Alguns deles defendem que a experiência poderia ser negativa, especialmente sem acompanhamento, e que poderia levar a ativação de sentimentos e sensações com potencial negativo para o paciente. “Qualquer substância tem seus riscos. De fato, uma experiência sem preparações adequadas pode promover fatores de risco”, responde Lôbo.

Acesso e perigos do “hype”

Alguns pesquisadores internacionais afirmaram temer uma “reviravolta negativa”, segundo artigo da Folha, diante do excesso de propaganda positiva em relação ao uso dessas substâncias. Rosalind Watts, uma dessas cientistas, chegou a dizer que se arrepende de ter posto tanta ênfase na psilocibina e deixado de lado o processo psicoterapêutico que cerca sua administração. Ela contou que vários voluntários enfrentaram experiências dolorosas, visto que a droga “abriu comportas para uma torrente de conteúdos e emoções soterrados que demandavam interpretação e assimilação”.

Parte desse problema está ligado ao interesse de investidores nos psicodélicos. Muitas startups já estão surgindo para reivindicar patentes e inflar resultados preliminares, ainda que promissores, de acordo com seus interesses. Os pesquisadores do campo temem, inclusive, que esse processo leve a altos preços – e terapias inacessíveis.

“No caso das patentes, temos mais uma vez o capitalismo se apropriando das novas descobertas e debates”, declara Lôbo. “Essas startups são apenas o começo das problemáticas. Temos também a questão da apropriação cultural”. Povos indígenas, responsáveis pelo desenvolvimento do uso terapêutico da ayahuasca, por exemplo, reivindicam sua aplicação na medicina indígena. Para o psicólogo, pensar em acessibilidade passa, obrigatoriamente, por incluir as comunidades indígenas no debate: “a integração precisa incluir o diálogo com as lideranças indígenas e exige uma postura decolonial”, conclui. A Associação Psicodélica do Brasil também discute como as terapias psicodélicas poderiam estar incluídas no SUS, desde o cultivo de cannabis e cogumelos ligados a cooperativas até a formação de profissionais e agentes comunitários.

A tentativa de criar patentes por parte do setor privado se destina, essencialmente, aos métodos de sintetização – visto que se trata de substâncias naturais que não podem mais ser patenteadas. “Tem um quê de resistência da própria natureza. Os fungos são especialistas em brotar em todo lugar e em condições desfavoráveis”, provoca Lôbo. A questão da acessibilidade, para o especialista, se relaciona com um modelo regulatório, que perpasse pela questão da justiça social reparativa em relação aos danos causados pelo proibicionismo.

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