por Vitalina Silva, em DW
Trabalhar sobre a temática étnico-racial em escolas públicas é um desafio para professores, sobretudo por conta das lacunas no currículo da formação inicial e continuada, em especial de professores com formação anterior à promulgação das leis n° 10.639/03 e 11.645/08 – que abordam o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana –, como é o meu caso.
Esta pauta tão urgente e necessária, que se faz obrigatória pela força da lei, é negligenciada em muitas redes de ensino, mas devemos questionar os motivos, por vezes os professores não são orientados, não sabem como desenvolver o trabalho, não possuem material pedagógico ou a própria rede, sistema de ensino e coordenação pedagógica, não possui um plano que permita tratar deste tema tão relevante e urgente.
Durante muitos anos a minha prática pedagógica foi apartada destas questões, mesmo sabendo que o racismo e o preconceito estavam presentes com as suas sutilezas e subjetividades, ou por vezes até escancarado, a minha atuação e ou reação sempre foram por instinto de proteção e defesa, e nunca embasada por sustentação legal e ou pedagógica.
A mudança ocorreu entre outras coisas pelo atravessamento das várias manifestações de racismo nas escolas e nas turmas em que trabalhei. As redes públicas de ensino são formadas eminentemente por crianças e adolescentes negros e pobres, desta maneira a questão racial se apresenta fortemente na composição das turmas, e normalmente é nestes espaços que o racismo se manifesta pela primeira vez na vida dos estudantes. Sem atentarmos para esse movimento, seguimos o nosso currículo formal, ignorando que essas questões impactam na aprendizagem, interferem na projeção de futuro e na construção de uma identidade positiva sobre si e sobre os outros.
Racismo
As diversas faces do racismo se apresentam nas escolas diariamente através da exclusão, da violência, da evasão, dos discursos de ódio, da extrema timidez e por vezes da agressividade, desvelar a verdadeira causa ou oportunizar que a discussão receba a atenção necessária para compreender como o racismo se organiza e se estrutura é um conjunto de decisões que fortalecem a construção de estratégias de enfrentamento a partir de conhecimento.
Conhecer é um verbo obrigatório. Reaprender o contexto histórico da formação do povo brasileiro, ressignificar aprendizagens consolidadas, especialmente sobre a contribuição dos povos africanos, afro-brasileiros e indígenas, potencializando o legado positivo de lutas e de conhecimentos construídos ao longo dos séculos, precisa ser um compromisso de cada educador. Referenciar positivamente nomes de homens e mulheres que sedimentaram o caminho através de lutas, levantes e resistências para a construção de uma sociedade mais justa e igual, é um ponto de partida para quem quer se comprometer com as mudanças.
A partir do conhecimento que pode ser conquistado através de formações, livros, produções acadêmicas, sites, acesso a pesquisas e dados oficiais, influenciadores digitais, dentre outros, é possível reformular o currículo escolar e mudar as nossas práticas pedagógicas, oportunizando aos estudantes um novo olhar sobre o continente africano, a diáspora e todo o legado que os nossos antepassados produziram e que sustentam as nossas conquistas atuais. O acesso ao conhecimento é uma condição imprescindível e necessária para a proposição de um currículo disruptivo e afrocentrado, se a escola declinar deste dever, em quais outros espaços estes jovens terão a oportunidade de estabelecer esse diálogo com uma coletividade que é atravessada pela semelhança e pertencimento?
Desafio
Não há mais tempo para aguardar uma nova orientação legal ou indicação de como se deve tratar sobre as questões étnicorraciais nas escolas, a urgência desse tema na perspectiva antirracista está sendo anunciada todos os dias quando lemos ou assistimos a um jornal, acessamos as nossas redes sociais e nos deparamos com os casos explícitos de racismo e injúria racial que outrora existiam, mas que agora estão sendo filmados.
Trabalhar com essas notícias em sala de aula é desafiador, pois requer de nós enxergar traços da nossa formação orientada pelo olhar do colonizador, e descolonizar esse olhar, também é um processo que nos tira da zona do conforto, mas a zona de conforto é lugar perfeito para a manutenção das injustiças raciais e sociais do nosso povo. A escola com o seu dinamismo e heterogeneidade é o lugar de provocar e promover mudanças, o grande mestre Emicida, nos diz que é tudo pra ontem, então, vamos começar?
Atenta a todas essas questões que me atravessam, fui impulsionada a trabalhar com as questões étnico-raciais, pois compreendi que a minha atuação pode mudar a forma dos meus estudantes se enxergarem no mundo e foi assim com um misto de responsabilidade social e educacional que desenvolvi estratégias metodológicas para potencializar a educação antirracista em minhas turmas no ensino fundamental, no Centro Educacional Maria Quitéria, uma escola no município de Camaçari-Bahia.
Conhecimento
A literatura de Conceição Evaristo me deu o lastro, as canções de Elza Soares, Lazzo Matumbi e Emicida, trouxeram ritmo e criticidade às minhas aulas e saborear a apropriação de todo esse conhecimento junto aos estudantes, considero ponto crucial para o êxito do projeto. Ao trazer o estudante para a centralidade do processo, estimular o uso da criatividade individual e coletiva, a tecnologia para a produção de podcasts e vídeos autorais e compartilhar os resultados em toda a escola e consequentemente alcançando a comunidade, é a concretização do desejo de todo professor, que os estudantes aprendam para a vida.
Como uma das atividades, os estudantes foram estimulados e orientados a produzirem um jornal impresso que circulou em toda a escola. A partir de todas essas produções, percebi que a maneira deles se enxergarem enquanto estudantes mudou. Eles adotaram uma postura mais ativa, participativa e com autonomia. Os processos posteriores foram conduzidos por eles, a decisão sobre quais personalidades deveriam estudar, quais biografias deveriam ser referências na construção do desfile histórico-cultural, uma atividade coletiva com música, dança, performance e memória. Foram eles que escolheram as vestimentas, confeccionaram os adereços, escolheram as músicas e as biografias das mulheres que foram homenageadas, variando entre as que construíram a nossa história, as que se destacam na contemporaneidade e outras que fazem parte do convívio diário deles no contexto escolar, fomos de Maria Felipa e Dandara a Bárbara Carine e Jaqueline Goes.
Eu fui uma aluna preta de escola pública e em nenhum momento da minha escolaridade, pude refletir sobre a minha cor e sobre o legado do meu povo, hoje, enquanto professora preta de escola pública, busco promover uma reparação, faço uma pequena revolução, porque se não posso mudar o mundo, tenho certeza que consigo promover mudanças significativas na vida dos meus estudantes, fazê-los enxergar toda a sua potencialidade e a capacidade de expressar suas competências e habilidades com autonomia e segurança, são resultados de uma revolução que alcançou inicialmente uma comunidade escolar e que através do Prêmio Led pode iluminar e inspirar todo o país.
O que me move é uma das traduções da palavra Ubuntu: “eu sou porque somos”. A partir disso, eu firmo compromisso com os que vieram antes de mim, pois “tudo, tudo, tudo que nós tem, é nós!”.
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Vozes da Educação é uma coluna quinzenal escrita por jovens do Salvaguarda, programa social de voluntários que auxiliam alunos da rede pública do Brasil a entrar na universidade. Revezam-se na autoria dos textos o fundador do programa, Vinícius De Andrade, e alunos auxiliados pelo Salvaguarda em todos os estados da federação. Siga o perfil do Salvaguarda no Instagram em @salvaguarda1
Este texto, escrito por Vitalina Silva, professora da rede pública de Camçari/Bahia, reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.
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