Nós somos Rita Lee e Marcelo Zelic. Por José Ribamar Bessa Freire

No TaquiPraTi

Se Deus quiser / Um dia eu quero ser índio […] /
Baila, baila comigo / Como se baila na tribo.
(Rita Lee, 1980)

Nenhum país vive sem música e sem arte. Cantores, artistas e escritores expressam o que existe de mais profundo na alma brasileira. “Nós somos quem somos, porque Rita foi Rita, Elza foi Elza, Gal foi Gal” – diz a atriz Thais Trindade, a Artivistha, numa bela imagem sobre o ethos nacional. Por isso, a morte da cantora Rita Lee na segunda (8), deixou o país desolado e em luto oficial por três dias decretado pelo presidente Lula, que expressou assim, através do seu sentimento pessoal, a comoção da sociedade brasileira.

Acontece que também “o Coiso foi o Coiso”. Nenhum dos mais de 40 artistas, que morreram durante seu governo, recebeu dele a devida reverência. NENHUM. O Imbrochável não gosta de bandeira a meio pau. Extinguiu o Ministério da Cultura e manifestou várias vezes ignorância e até desprezo pela música e pela poesia. Ele não estava nem aí com a dor do Brasil, apesar de a Unesco, órgão das Nações Unidas para a educação e a cultura, ter decretado luto oficial no mundo inteiro no caso da morte de João Gilberto.

Diante da omissão do presidente brucutu, que envergonhou o país, quem homenageou João Gilberto aqui foi o Congresso Nacional acionado pelo senador Randolfe Rodrigues. Questionado pela mídia, o Coiso se limitou a declarar:

– É, parece que era uma pessoa conhecida.

Parece? O Coiso promove o ódio, porque nunca assoviou uma música de João Gilberto, célebre até na Arábia Saudita, nos Emirados Árabes e no Catar, para onde sua equipe e ele próprio fizeram 150 viagens em quatro anos, uma média de 3 por mês. De olho nas joias, não ouvia “Chega de Saudade” tocada nos elevadores da cadeia de hotéis Hilton, onde se hospedava. Os árabes adoram Bossa Nova, a mistura de samba e jazz, que se tornou o símbolo do Brasil no exterior.

Armazém da Memória

Sem música, sem arte, o Brasil não é o mulato inzoneiro da Aquarela de Ary Barroso. Mas nenhum país tampouco vive sem a memória, “a chama da vela que quase se apaga com o sopro do ar”, como canta Ney Matogrosso. Por isso, muitos brasileiros decretaram dentro de seus corações luto oficial pelo falecimento de Marcelo Zelic, membro do Grupo Tortura Nunca Mais (GTNM) e da Comissão Justiça e Paz de São Paulo, ocorrido no mesmo dia do adeus a Rita Lee.

Vitimado por um AVC hemorrágico aos 59 anos, ele não era uma celebridade midiática, mas ao não deixar a chama da vela apagar, nos permite afirmar que somos quem somos, porque Zelic foi Zelic, um “companheiro incansável na defesa da memória” – segundo Cecília Coimbra do GTNM.

Nascido em São Paulo (12/11/1963), Marcelo Zelic percorreu o Brasil, abrindo várias frentes de trabalho. Criou o Armazém da Memória, um site com milhares de documentos digitalizados e sistematizados, que registram a luta contra a ditadura empresarial-militar brasileira. Sobre esse período de barbárie, o projeto Memórias Reveladas, no Arquivo Nacional, reuniu “uma massa documental imensa”.

Sempre atento e delicado, Zelic me enviou a cópia de um documento sobre a prisão e o processo na 1ª Auditoria do Exército do ex-reitor da Uerj, Ivo Barbieri, enriquecendo a resenha que fiz do livro Da Roça à Reitoria.

Dedicou sua vida à outra frente: a memória histórica dos povos originários. Recuperou no Museu do Índio/RJ o Relatório Figueiredo, um conjunto documental de 30 volumes com mais de 7 mil páginas, que ficou esquecido durante 45 anos e que comprova os crimes cometidos contra os povos originários na ditadura: prisões, torturas, mortes e desaparecimentos de indígenas.

Cacique Raoni e Marcelo Zelic / Foto: Arquivo Pessoal

O que somos como país

A documentação compilada por Zelic, consultada por acadêmicos e líderes indígenas, contribuiu para reivindicar direitos à terra, à língua e à cultura, além de ter alimentado teses e dissertações, entre outras a de Elena Guimarães e de André Luis Sant’Anna. Leitor do Taquiprati, enviava comentários como na crônica “Universidade, ditadura e crimes contra índios” (30/08/2015), quando deu a dica aos leitores:

– Vocês podem acessar o relatório indexado no Centro de Referência Virtual Indígena no Armazém da Memória – escreveu disponibilizando o link.

Atuou no braço indígena da Comissão Nacional da Verdade. Planejou a “Campanha de Localização dos Arquivos da UNI-União das Nações Indígenas”, com uma solicitação pública: “Caso saiba ou possua documentação em qualquer suporte, envie um email para marcelozelic@gmail,com para viabilizarmos a reunião do acervo” .

Em “Fascismo mata: de Nuremberg aos Yanomami”, ele escreve que só haverá democracia no Brasil quando os responsáveis pelos crimes forem punidos e houver uma reparação, fortalecendo o “nunca mais” com medidas concretas e com a criação de mecanismos para que a tragédia não se repita.

O Conselho Indigenista Missionário (CIMI) menciona em sua nota oficial artigo de Zelic publicado no Le Monde Diplomatique, citando a frase de Eduardo Galeano como epígrafe: “Ao fim e ao cabo, somos o que fazemos para mudar o que somos”. A seu modo – diz a nota – “Zelic dedicou sua vida a mudar o que somos como país – um país que despreza a própria memória, cujas elites se esforçam para manter no esquecimento as atrocidades cometidas no passado”.

No colo de Rita

A pedido de sua família, Helena, filha de Zelic, escreveu depoimento pungente, mas sóbrio, que destaca a figura pública do pai, mas também quem era ele no recanto do lar:

– É hora de mantermos a memória dele viva, assim como ele, com o Armazém Memória, mantinha viva uma parte muito importante da memória do Brasil.

– Ele trabalhou de domingo a domingo para colocar no ar milhares de documentos da história dos nossos povos. Descobriu arquivos que ninguém tinha visto, lutou e enfiou dedos na ferida para que se fizesse justiça, reparação e não-repetição dos crimes, se rodeou de muita gente, entre indígenas e não-indígenas, todos lutadores. Fez amigos em todo o Brasil.

– Passamos os últimos dias o abraçando, relembrando as melhores e mais engraçadas histórias, dando coragem e conforto para ele, que estava feliz demais, na crista da onda, viagens, reuniões, vitórias, portas se abrindo” – escreveu Helena, que revela como ele era dentro de casa:

– Mexia com coisa séria sempre com um sorriso no rosto, uma piada besta prontinha na ponta da língua. Cuidava de todos nós que estávamos por perto, sempre disposto a dar uma carona ou a tomar um lanchinho, falando igual uma matraca. Cuidava da casa com apreço e gentileza: fazia a comida das cachorras, dormia com elas, varria o quintal, lavava a louça de todo mundo, porque gostava de fazer, porque dizia que pensava melhor enquanto fazia”.

Ela concluiu seu relato: “Agora é hora de seguirmos pensando nele e não só lembrando as histórias, mas assumindo o compromisso de sermos como ele: justos, generosos, teimosos, rebeldes, carinhosos, comprometidos com a luta dos povos. Vamos continuar sentindo muita saudade, mas também um orgulho que nem cabe na nossa mão. Sejamos, agora, todos nós um pouco Marcelo Zelic”.

Ah, querido Marcelo, com uma filha assim qualquer um seria muito feliz. Suspeito que você foi embora no colo da Rita Lee, bailando como se baila na tribo.

*

Mais de 40 criadores de arte mortos durante o governo Coiso:

Em 2019: Bibi Ferreira, Beth Carvalho, Domingos de Oliveira, Lúcio Mauro, Ruth de Souza, Fernanda Young, João Gilberto. Em 2020: Aldir Blanc, Moraes Moreira, Nicete Bruno, Cecil Thiré, José Mojica Marins, Flávio Migliaccio, Chica Xavier; Rubem FonsecaSérgio Sant’Anna, Olga Savary. Em 2021: Agnaldo Timóteo, Paulo Gustavo, Eva Vilma, Marilia Mendonça, Gilberto Braga; Tarcísio Meira, Paulo José, João Acaiabe; Orlando Drummond, Sérgio Mamberti, Luís Gustavo, Mila Moreira, Monarco, Nelson Sargento, Camila Amado. Em 2022: Elza Soares, Gal Costa, Erasmo Carlos, Milton Gonçalves, Jô Soares, Lygia Fagundes Telles, Maria Lúcia Dahl, Danusa Leão, Cláudia Jimenez, Rolando Boldrin, Pedro Paulo Rangel.

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