Representando a Aty Guasu, a anciã do povo Guarani Nhandeva deu voz às denúncias durante o Fórum Permanente das Nações Unidas sobre Questões Indígena, em Nova York
“O que nós queremos é a demarcação da nossa terra no Mato Grosso do Sul”, afirma Leila Rocha, liderança do povo Guarani Nhandeva, durante o Fórum Permanente das Nações Unidas sobre Questões Indígenas (UNPFII). O evento, que está em sua 22ª sessão, ocorreu de forma presencial entre os dias 17 e 28 de abril de 2023, na sede da Organização das Nações Unidas (ONU), em Nova York.
Leila, representando a Aty Guasu – Grande Assembleia do povos Guarani e Kaiowá -, chamou a atenção para as lutas pela demarcação das terras indígenas, bem como as vivências e as resistências do povo Guarani e Kaiowá do Mato Grosso do Sul.
“O que nós queremos é a demarcação da nossa terra no Mato Grosso do Sul”
“Nossos povos vivem a pior situação indígena no Brasil e nós, mulheres, somos as que mais sofrem. Somos nós, em defesa de nossos filhos e o futuro de nosso povo, que reforçamos a conquista de nossos direitos por meio da luta pela terra. Atualmente, como outras lideranças do meu povo, estou incluída no programa de proteção do governo, mas que tem se mostrado insuficiente para nos proteger”, alerta a liderança do povo Guarani Nhandeva.
O Mato Grosso do Sul, segundo relatório de Violência Contra os Povos Indígenas do Brasil – dados de 2021, está entre os estados que registraram maior número de assassinatos de indígenas em 2021. De acordo com o relatório, o estado do Amazonas registrou 38 casos de assassinatos de indígenas no ano de 2021, seguido do estado do Mato Grosso do Sul com 35 e Roraima com 32. Os três estados também registraram a maior quantidade de assassinatos em 2020 e em 2019.
“Nossos povos vivem a pior situação indígena no Brasil e nós, mulheres, somos as que mais sofrem”
Esses dados dão base às denúncias de Leila, realizadas nos diversos espaços de diálogo do Fórum Permanente. “Nestes últimos dias no estado de Mato Grosso do Sul, a mando do governo do estado, dez lideranças indígenas foram presas, além disso, temos sofrido inúmeros ataques pelas forças de segurança do estado, sem qualquer ordem judicial”, denuncia.
Segundo a liderança, as mulheres são as maiores vítimas dos conflitos que decorrem no estado, pois sem seus companheiros são obrigadas a não só cuidar de toda a família, mas também a assumir incontáveis riscos de violência, fome e morte. Além disso, Leila alerta para o avanço do agronegócio sobre as terras tradicionais dos Guarani e kaiowá. “O agronegócio contamina nossas águas com agrotóxicos despejados sobre nossas comunidades, nos filhos, nossas plantas e nossos animais, e ainda expulsa o meu povo de nossos territórios tradicionais com uso de forças policiais”, lamenta a anciã.
“O agronegócio despeja agrotóxicos sobre nossas comunidades, nos filhos, nossas plantas e nossos animais, e ainda expulsa o meu povo”
“Os territórios estão doentes, não estão mais saudáveis, não temos mais a mata, os remédios e principalmente, todos os seres vivos e espirituais que habitam estes lugares e isso gera violência. As mulheres são as mais violentadas, perseguidas e mortas. Esta violência não é nossa, é do mundo não indígena que se desligou do cuidado com a mãe terra e espalha violência para todos os seres”, descreve com tristeza.
Ao Fórum Permanente da ONU sobre Questões Indígenas, Leila faz um apelo. “Até quando mulheres serão violentadas?”, questiona. “Minha companheira de luta, rezadora e liderança do nosso povo, Estela Vera, foi brutalmente assassinada por defender nossos direitos”, completou enquanto os participantes a ouviam em silêncio.
“Esta violência não é nossa, é do mundo não indígena que se desligou do cuidado com a mãe terra e espalha violência para todos os seres”
Sob contrastante pressão, os Guarani e Kaiowá tem visto seus territórios serem invadidos por fazendeiros e grupos econômicos, sem a devida proteção do Estado brasileiro que “nos nega direitos, obriga nosso povo a viver na miséria, destrói nosso modo de vida, nosso tekoha, nosso jeito sagrado de ser. O que esconde a lógica perversa de destruir”, conta Leila.
O relato da liderança vai de encontro aos dados do estudo do Cimi que registra a ocorrência de 148 suicídios de indígenas em 2021 em todo país. O Mato Grosso do Sul é o segundo estado com o maior número de suicídios, com 35 registros, ficando atrás apenas do Amazonas que registou 51 casos.
“Ao negar nossos direitos, nos obriga a viver na miséria, destrói nosso modo de vida, nosso jeito sagrado de ser, é uma lógica perversa de destruir”
A terra para os povos originários é sagrada e também um direito originário, segundo a Constituição Federal brasileira. Contudo, para que esse direito seja assegurado, a “Aty Guasu seguirá retomando cada pedaço de nossos territórios e fazendo valer nossos direitos. Vamos proteger nossas mulheres e crianças e juntas iremos derrubar quem nos mata. Nós só queremos o nosso lugar para viver”, reforça Leila
Em encontro correlato ao UNPFII, Leila e demais lideranças indígenas e indigenistas que compunham a delegação brasileira tiveram a oportunidade de dialogar com Núncio Apostólico Dom Gabriele Caccia, observador permanente da Santa Sé junto à ONU, em Nova York, com quem as lideranças reforçaram as denúncias.
“Aty Guasu seguirá retomando cada pedaço de nossos territórios e fazendo valer nossos direitos”
Relatório de Violência
Lideranças dos povos Guarani Nhandeva e Kanamari e missionários do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) realizaram a entrega do relatório Violência Contra os Povos Indígenas do Brasil – dados de 2021 ao presidente do Fórum Permanente da ONU sobre Questões Indígenas, Dario Mejía Montalvo.
Publicado anualmente pelo Cimi, o relatório busca registrar as violências contra os povos indígenas no Brasil. Em 2021, o estudo registrou um aumento em 15 das 19 categorias de violência sistematizadas pela publicação em relação ao ano anterior, e uma quantidade enorme de vidas indígenas interrompidas.
“O aumento de invasões e ataques contra comunidades e lideranças indígenas e o acirramento de conflitos refletiram nos territórios, o ambiente institucional de ofensiva contra os direitos constitucionais dos povos originários”, destacou Guenter Francisco Loebens, missionário do Cimi no evento.
“O aumento de invasões e ataques contra comunidades e lideranças indígenas e o acirramento de conflitos refletiram nos territórios”
A consequência foi um aumento, “pelo sexto ano consecutivo, dos casos de invasões possessórias, exploração ilegal de recursos e danos ao patrimônio. Em 2021, o Cimi registrou a ocorrência de 305 casos do tipo, que atingiram pelo menos 226 Terras Indígenas em 22 estados do país”, lista o estudo.
Durante o Fórum Permanente o Cimi também manifestou preocupação com o futuro dos povos em isolamento voluntário. O Brasil, de acordo com o relatório Violência Contra os Povos Indígenas do Brasil – dados de 2021, registra a presença de 117 povos ou segmentos de povos em isolamento. Sob permanente ameaça e risco de extermínio, a situação desses povos se agravou nos quatro anos do governo da extrema direita de Bolsonaro, quando mecanismos operacionais de proteção de seus territórios foram desconstruídos, com aumento das invasões de suas terras e da criação de Unidades de Conservação ambiental sobrepostos aos territórios onde muitos desses povos estão localizados.
“Em 2012, o Brasil registrou a presença de 117 povos ou segmentos de povos em isolamento”
Sobre a 22ª sessão do UNPFII
Com o tema “Povos Indígenas, saúde humana, saúde planetária e territorial e mudança climática: uma abordagem baseada em direitos”, as Nações Unidas deram início às reuniões anuais do Fórum Permanente das Nações Unidas sobre Questões Indígenas (UNPFII), no dia 17 de abril. O evento que está em sua 22ª sessão e seguiu até o dia 28, ocorreu na sede da ONU, em Nova York, de forma presencial.
Participaram desta edição do UNPFII, lideranças indígenas e indigenistas da Rede Eclesial Pan-Amazônica (REPAM), Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Irmãs Carmelitas Missionárias, Cáritas Espanhola, Grande Assembleia Guarani e Kaiowá (Aty Guasu), Federação de Mulheres Trabalhadoras Huaynakana Kamatawara Kana, Coordenação Nacional de Defesa dos Territórios Indígenas Camponeses e Áreas Protegidas da Bolívia (CONTIOCAP), Organização da Nacionalidade Waorani do Equador (NAWE) e do Centro Amazônico de Antropologia e Aplicação Prática do Peru (CAAP) do Peru, Equador, Bolívia, Brasil e Espanha.
“UNPFII é um órgão consultivo de alto nível do Conselho Econômico e Social, que reúne todos os anos, durante dez dias, povos indígenas de todo o mundo”
O Fórum Permanente das Nações Unidas sobre Questões Indígenas é um órgão consultivo de alto nível do Conselho Econômico e Social, que reúne todos os anos, durante dez dias, povos indígenas de todo o mundo. A reunião é uma oportunidade para os povos interagirem diretamente com os Estados-membros das Nações Unidas, incluindo também organizações especializadas em direitos humanos e instituições acadêmicas.
O UNPFII é composto por diálogos temáticos e interativos, eventos paralelos destinados ao debate de temas específicos. Com o resultado desses debates é elaborado um relatório sobre os temas prioritários, bem como recomendações aos Estados-membros, ao sistema das Nações Unidas e aos povos indígenas para avançar na implementação efetiva da Declaração da ONU sobre os direitos dos povos indígenas.
O Fórum Permanente foi criado em 28 de julho de 2000 pela resolução 2000/22, com objetivo de tratar das questões indígenas relacionadas ao desenvolvimento econômico e social, cultura, meio ambiente, educação, saúde e direitos humanos.
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Leila Guarani Nhandeva e Lídia Farias, missionária do Cimi Regional Sul, durante o UNPFII. Foto: Rede Eclesial Pan-Amazônica (REPAM)