Por que tornou-se possível libertar Assange

Brasil, México e Austrália reivindicam sua libertação e somam peso diplomático à campanha, que até agora reunia ativistas. Ameaça dos EUA e Reino Unido ao jornalismo fica exposta. Luta precisa crescer, mas algo importante se moveu

Por Chris Hedges no Consortium News | Tradução: Maurício Ayer, em Outras Palavras

“Como prisioneiro político, mantido para o prazer de Vossa Majestade em nome de um constrangido soberano estrangeiro, tenho a honra de residir entre os muros desta instituição de classe mundial. Na verdade, vosso reino não conhece fronteiras.”

Com essas palavras, a incômoda presença de um fantasma das masmorras do reino se fez sentir como uma gélida brisa em meio à coroação de Carlos III da Inglaterra, no último dia 6 de maio. O trecho citado é parte da carta endereçada por Julian Assange a Sua Majestade, naturalmente embebida em ironia, em que convida o rei a conhecer a prisão de Belmarsh, onde se encontra em solitária enquanto aguarda julgamento de um pedido de extradição dos EUA. Assange buscou em O mercador de Veneza as palavras do bardo de Stratford para sensibilizar o soberano que o mantém sob custódia: “A qualidade da misericórdia não é forçada. Ela cai como a chuva suave do céu sobre os baixios”.

Mas talvez seja de outro célebre dramaturgo, o norueguês Henrik Ibsen, o personagem que espelha Assange, o Stockton de Inimigo público, justamente aquele que trouxe à tona o debate sobre os esgotos da sociedade, i.e., as incontáveis ilegalidades cometidas pelos EUA com vistas à manutenção de seu Império global. Especificamente, nas palavras do jornalista Chris Hedges que traduzimos e publicamos abaixo:

“Julian foi marcado para morrer pela CIA no momento em que ele e o WikiLeaks publicaram os documentos conhecidos como Vault 7, que expuseram o arsenal de guerra cibernética da CIA, que inclui dezenas de vírus, trojans e sistemas de controle remoto de malware projetados para explorar uma ampla gama de produtos de empresas estadunidenses e europeias.”

Durante os eventos da coroação e nos dias que se seguiram, outras vozes se fizeram ouvir para que o destino de Julian Assange possa vir a ser outro que não o de mofar na cadeia ou se extinguir numa cadeira elétrica. Diferente de manifestações de ativistas pela liberdade de imprensa, como a que aconteceu diante do Departamento de Justiça dos EUA em abril, a novidade desta vez é que foram chefes de Estado de nações tão importantes quanto o Brasil, o México e a Austrália que vocalizaram aos governos do Reino Unido e dos EUA a necessidade de encontrar uma saída para o caso Assange que não represente uma derrota global para as liberdades e direitos humanos em âmbito global.

Em entrevista coletiva concedida em Londres, durante as festas da coroação, o presidente Lula clamou pela liberdade de Assange e afirmou estranhar que ainda não haja um movimento global de jornalistas e grandes veículos de imprensa em defesa de Julian Assange como um símbolo da defesa da liberdade de expressão. Disse que marcaria uma nova conversa com o primeiro-ministro britânico Rishi Sunak para tratar do caso.

Na mesma ocasião, o primeiro-ministro da Austrália, Anthony Albanese, disse em entrevista a uma rede australiana que se comunicou com o Departamento de Justiça dos EUA manifestando a posição de que é necessário buscar uma saída diplomática para o caso, considerando que Assange é cidadão australiano. Usou a expressão “enough is enough”, ou seja, “já deu”, “este caso precisa ter um fim”, enfatizou Albanese.

Os esforços diplomáticos de Brasil e Austrália vêm somar forças à posição do presidente do México, Andrés Manuel López Obrador, que já em pelo menos duas ocasiões ofereceu asilo a Assange. Em julho de 2022, após reunião com Joe Biden, Obrador afirmou ter deixado com o presidente estadunidense

“uma carta (…) sobre Assange, explicando que ele não cometeu nenhum crime grave, não causou a morte de ninguém, não violou nenhum direito humano e que exerceu sua liberdade, e que prendê-lo significaria uma afronta permanente à liberdade de expressão”.

Na semana passada, o pai e o irmão de Julian, John e Gabriel Shipton, participaram de atos na Cidade do México, como parte da campanha global pela libertação do jornalista que ambos vêm empreendendo nos últimos três anos. Além do apoio do presidente, também o Parlamento mexicano manifestou-se, por meio de carta assinada por um grupo de mais de 100 parlamentares, entre senadores e deputados, dirigida a Biden por meio da embaixada dos EUA, pedindo que Assange seja colocado em liberdade e que as acusações contra ele sejam retiradas.

A luta pela libertação de Julian Assange ganhou entra em um novo momento. Renasce a esperança de que se faça justiça neste caso. O texto de Chris Hedges sublinha a extrema relevância desta e os graves riscos que estarão implícitos em uma derrota neste caso:

“As ilegalidades adotadas pelos governos equatoriano, britânico, sueco e estadunidense são aterradoras. Elas pressagiam um mundo em que os trabalhos ocultos, abusos, corrupção, mentiras e crimes, especialmente crimes de guerra, realizados por Estados corporativos e pela elite governante global, serão mascarados para o público.”

[Texto de Maurício Ayer.]

Julian Assange – uma luta que não devemos perder

Por Chris Hedges | Tradução: Maurício Ayer

A detenção e perseguição de Julian Assange esvazia completamente a pretensão do estado de direito e os direitos de uma imprensa livre.

As ilegalidades adotadas pelos governos equatoriano, britânico, sueco e estadunidense são aterradoras. Elas pressagiam um mundo em que os trabalhos ocultos, abusos, corrupção, mentiras e crimes, especialmente crimes de guerra, realizados por Estados corporativos e pela elite governante global, serão mascarados para o público.

Elas pressagiam um mundo onde os que têm coragem e integridade para expor o abuso de poder serão caçados, torturados, submetidos a julgamentos falsos e condenados à prisão perpétua em confinamento solitário.

Elas pressagiam uma distopia orwelliana me que as notícias são substituídas por propaganda, curiosidades e entretenimento. O linchamento legal de Julian, temo, marca o início oficial do totalitarismo corporativo que definirá nossas vidas.

Com base em que lei o presidente equatoriano Lenin Moreno rescindiu caprichosamente os direitos de asilo de Julian como refugiado político? Com base em que lei Moreno autorizou a polícia britânica a entrar na embaixada equatoriana – território soberano sancionado diplomaticamente – para prender um cidadão naturalizado do Equador?

Com base em que lei o ex-presidente Donald Trump criminalizou o jornalismo e exigiu a extradição de Julian, que não é cidadão americano e cuja organização noticiosa não tem sede nos Estados Unidos?

Com base em que lei a CIA viola a prerrogativa advogado-cliente para vigiar e gravar todas as conversas digitais e verbais de Julian com seus advogados e conspirar para sequestrá-lo da embaixada e assassiná-lo?

O estado corporativo esvazia direitos consagrados por decreto judicial. É assim que passamos a ter direito à privacidade, sem privacidade. É assim que passamos a ter eleições “livres” financiadas por dinheiro corporativo, cobertas por uma mídia corporativa complacente e sob controle corporativo implacável.

É assim que passamos a ter um processo legislativo no qual os lobistas das corporações escrevem o texto legislativo e os políticos contratados pela empresa votam para transformá-la em lei. É assim que passamos a ter o direito ao devido processo legal sem o devido processo legal.

É assim que temos um governo – cuja responsabilidade fundamental é proteger os cidadãos – que ordena e executa o assassinato de seus próprios cidadãos, como o clérigo muçulmano Anwar al-Awlaki e seu filho de 16 anos. É assim que temos uma imprensa legalmente autorizada a publicar informações classificadas e o editor mais importante de nossa geração sentado em confinamento solitário em uma prisão de alta segurança aguardando extradição para os Estados Unidos.

5 de abril de 2010: Julian Assange falando ao National Press Club sobre o vídeo Danos Colaterais do WikiLeaks, que mostram ataques aéreos dos EUA em Bagdá, Iraque, que mataram civis em 12 de julho de 2007. (Jennifer 8. Lee, Flickr)

A tortura psicológica de Julian – documentada pelo relator especial das Nações Unidas sobre tortura, Nils Melzer – espelha a quebra do dissidente Winston Smith no romance de George Orwell, 1984.

A Gestapo quebrou ossos. A Stasi da Alemanha Oriental quebrou almas. Nós também refinamos as formas mais cruas de tortura para destruir almas e corpos. É mais eficaz.

É isso que eles estão fazendo com Julian, degradando continuamente sua saúde física e psicológica. É uma execução em câmera lenta.

Isso foi projetado para ser assim. Julian passou a maior parte do tempo isolado, muitas vezes fortemente sedado e teve negado tratamento médico para diversas doenças físicas. A ele é negado rotineiramente o acesso a seus advogados. Perdeu muito peso, sofreu um pequeno derrame, passou um tempo na ala hospitalar da prisão – que os presos chamam de ala do inferno – porque é suicida, foi colocado em confinamento solitário prolongado, observado batendo a cabeça contra a parede e tendo alucinações. Nossa versão do temido Quarto 101 de Orwell.

Julian foi marcado para morrer pela CIA no momento em que ele e o WikiLeaks publicaram os documentos conhecidos como Vault 7, que expôs o arsenal de guerra cibernética da CIA, que inclui dezenas de vírus, trojans e sistemas de controle remoto de malware projetados para explorar uma ampla gama de produtos de empresas estadunidenses e europeias, incluindo o iPhone da Apple, o Android do Google, o Windows da Microsoft e até a Smart TV da Samsung, que podem ser transformadas em microfones ocultos mesmo quando parecem estar desligadas.

Durante duas décadas, fui correspondente estrangeiro. Eu vi como as ferramentas brutais de repressão são testadas naqueles que Frantz Fanon chamou de “os condenados ​​da terra”. Desde a sua criação, a CIA realizou assassinatos, golpes, tortura, campanhas de propaganda enganosa, chantagem e espionagem ilegal e abuso, inclusive de cidadãos americanos, atividades expostas em 1975 pelas audiências do Comitê da Igreja no Senado e as Audiências do Comitê Pike na Câmara. Todos esses crimes, especialmente após os ataques do 11 de Setembro, voltaram com força total.

A CIA tem suas próprias unidades armadas e programa de drones, esquadrões da morte e um vasto arquipélago de pontos secretos globais onde vítimas sequestradas são torturadas e desaparecidas.

Os EUA alocam um orçamento secreto de cerca de US$ 50 bilhões por ano para escamotear um grande número de projetos clandestinos de vários tipos, realizados pela Agência Nacional de Segurança (NSA), a CIA e outras agências de inteligência, geralmente à margem do escrutínio do Congresso.

A CIA tem um aparelho bem azeitado, por isso, como já tinha instalado um sistema 24 horas de vigilância em vídeo de Julian na embaixada do Equador em Londres, com muita naturalidade discute o sequestro e assassinato de Julian. Esse é o seu negócio.

Senador Frank Church – depois de examinar os documentos da CIA liberados para seu gabinete – definiu a “atividade encoberta” da CIA como “um disfarce semântico para assassinato, coerção, chantagem, suborno, disseminação de mentiras e associação com conhecidos torturadores e terroristas internacionais”.

Temamos os senhores das marionetes, não as marionetes. Eles são o inimigo que está entre nós.

Essa é uma luta do Julian, que eu conheço e admiro. É uma luta de sua família, que trabalha incansavelmente pela sua libertação. É uma luta pelo Estado de Direito. É uma luta pela liberdade de imprensa.

É uma luta para salvar o que resta da nossa democracia em declínio. E é uma luta que não devemos perder.

Ilustração: Pixabay

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