“PL 490/07 e marco temporal colocam em risco os direitos dos povos indígenas”, alerta presidenta da Funai

Funai

A presidenta da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), Joenia Wapichana, fez um alerta para os riscos que o Projeto de Lei 490/07, em tramitação no Congresso, e o marco temporal, em análise no Supremo Tribunal Federal (STF), representam para os direitos dos povos indígenas. Foi durante audiência pública sobre o tema nesta terça-feira (16) na Comissão de Amazônia e dos Povos Originários e Tradicionais; Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável da Câmara dos Deputados, em Brasília.

Segundo Joenia Wapichana, o PL 490/07 surgiu com o intuito de frear a demarcação de terras indígenas no país. Nesse sentido, a presidenta da Funai destacou que a Constituição Federal de 1988, no artigo 231, garante aos povos indígenas os seus direitos originários, imprescritíveis, indisponíveis e inalienáveis. “A demarcação de terras é um direito dos povos indígenas e um dever constitucional do Estado brasileiro, realizado pela União, mais especificamente pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas. O PL 490/07 e seus projetos apensados são um risco. Em nenhum momento, por exemplo, se teve o cuidado de consultar os povos indígenas sobre as propostas, o que é exigido pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário. Esse projeto sequer poderia estar tramitando nesta Casa”, pontuou.

Na ocasião, Joenia Wapichana defendeu que o Congresso se debruce sobre propostas que garantam os direitos dos povos indígenas, e não o contrário. A presidenta da Funai também lembrou que o julgamento do marco temporal está pautado para junho pelo STF. “É uma oportunidade que o Supremo tem de decidir definitivamente e enterrar o marco temporal e, assim, colocar um ponto final em qualquer alegação que vise reduzir os direitos constitucionais dos povos indígenas, fazendo também com que o PL 490/07 seja de uma vez por todas considerado inconstitucional”, ressaltou.

Requerida pela deputada federal Célia Xakriabá (PSOL/MG), a audiência também teve a participação do secretário-executivo do Ministério dos Povos Indígenas, Eloy Terena; do representante da Articulação dos Povos Indígenas (APIB), Maurício Serpa França; do representante da Articulação dos Povos Indígenas da região Sul (ARPINSUL) e da Comunidade Indígena Xokleng, Brasílio Pripá, da assessora jurídica do Conselho do Povo Terena, Priscila Terena; e do doutor e mestre em Direito, professor da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR), Carlos Frederico Marés de Souza Filho, do coordenador-geral da Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme), Paulo Tupiniquim, e do coordenador-executivo do Centro de Trabalho Indigenista (CTI), Jaime Siqueira.

Projeto de Lei n° 490/07

Apresentado pelo deputado federal Homero Pereira, em 2007, o PL n° 490/07 tinha como proposta alterar a Lei n° 6.001, de 19 de dezembro de 1973, trazendo para o Poder Legislativo a competência das demarcações das terras indígenas no Brasil. Atualmente, esse procedimento é feito administrativamente pelo Poder Executivo Federal.

O PL nº 490/2007 reúne inconstitucionalidades, pois afronta direitos de caráter fundamental assegurados pela Constituição Federal e fere o principio de separação de poderes. O suposto objetivo é regulamentar o art. 231, da Constituição Federal, que versa sobre os direitos dos povos indígenas no Brasil. Nesse mesmo sentido, o projeto também confronta o Supremo Tribunal Federal (STF), que determinou que “Somente à União, por atos situados na esfera de atuação do Poder Executivo, compete instaurar, sequenciar e concluir formalmente o processo demarcatório das terras indígenas”.

Desde sua apresentação, o PL já acumulou 13 projetos apensados e, recentemente, recebeu um texto substitutivo, apresentado pelo deputado federal Arthur Maia. O novo texto estabelece exploração hídrica, expansão da malha viária, exploração de alternativas energéticas, garimpeiras e mineradoras; todas implementadas independentemente de consulta às comunidades indígenas envolvidas ou à Funai.

Segundo o novo texto, o contato com povos isolados fica flexibilizado, proíbe-se a ampliação de terras já demarcadas e se fixa a teoria do marco temporal, que define como terras indígenas apenas aquelas ocupadas quando da promulgação da Constituição Federal, em 5 de outubro de 1988.

Trata-se de um dos principais projetos que afrontam os direitos constitucionais dos povos indígenas. O autor da proposta alega que a “demarcação de terras indígenas extrapola os limites de competência da Funai, pois interfere em direitos individuais, em questões relacionadas com a política de segurança nacional na faixa de fronteiras, política ambiental e assuntos de interesse dos Estados da Federação e outros relacionados com a exploração de recursos hídricos e minerais”. Alega, ainda, que a demarcação de terras indígenas é feita por critérios subjetivos da Funai.

Com essa afirmação, demonstra desconhecer a profundidade e complexidade do processo de demarcação de terras indígenas em vigor no Brasil, bem como subjuga um processo técnico e legal já consolidado e chancelado pelo Supremo Tribunal Federal em diversas manifestações.

O PL nº 490/2007 também afronta normativas internacionais das quais o Brasil é signatário como a Convenção 169 sobre Povos Indígenas e Tribais em Países Independentes da Organização Internação do Trabalho (OIT), ratificada no Brasil pelo Congresso Nacional.

A convenção prevê o direito à consulta livre, prévia, informada e de boa-fé aos povos indígenas, sendo necessária a consulta no caso de medidas legislativas como a que está em andamento, visto que os afeta diretamente. Tanto o autor quanto o relator do PL desrespeitam a convenção ao não consultarem os povos indígenas sobre a proposta.

Já o parágrafo único do art. 21 do PL propõe que “ações justificadas pela segurança nacional poderão ocorrer “independentemente de consulta às comunidades indígenas envolvidas ou ao órgão indigenista federal competente”, atacando os direitos fundamentais dos povos indígenas, originariamente considerados inalienáveis pela Constituição.

O marco temporal e o caso da Terra Indígena Raposa Serra do Sol (RR)

O marco temporal é uma diretriz jurídica que estabelece que os direitos territoriais de povos indígenas devem ser reconhecidos somente para as terras que eles já ocupavam antes de uma certa data. No caso da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, o marco temporal foi utilizado como base para a demarcação da terra, considerando a ocupação tradicional dos indígenas até a data de 5 de outubro de 1988, quando a Constituição brasileira foi promulgada. Essa abordagem é controversa, pois exclui povos indígenas que foram removidos à força de suas terras antes dessa data, comprometendo seus direitos ancestrais e o reconhecimento de sua identidade cultural.

Em 19 de março de 2009, o Supremo Tribunal Federal (STF) encerrou o julgamento da Petição 3388, que questionava a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. A ação pedia a declaração de nulidade da Portaria nº 534 do Ministério da Justiça, homologada pela Presidência da República em 15 de abril de 2005.

Os ministros da Corte reafirmaram a constitucionalidade do processo de demarcação da TI e determinaram a imediata retirada dos ocupantes não indígenas. Após o julgamento, houve diversas iniciativas para garantir a aplicação ampla das condicionantes levantadas especificamente para o caso em tela, gerando polêmica sobre o assunto.

Então, em outubro de 2013, o STF decidiu que, embora a decisão sobre a Raposa Serra do Sol tenha sido um precedente importante, não tem caráter vinculante. São condições definidas em caráter abstrato e só poderiam, em alguma medida, ser impostas a outros casos, por via de súmulas vinculantes, o que não seria possível já que, para determinação dessa espécie de súmulas, deveriam existir reiteradas decisões da Corte sobre o tema, o que não era o caso.

De forma segura e definitiva, a Corte Suprema afastou quaisquer polêmicas sobre a força vinculante das condicionantes do caso Raposa Serra do Sol, determinando que a extensão do ação se restringiu somente ao objeto específico daquela demarcação, não tendo efeito vinculante em sentido formal e não incidindo automaticamente sobre as demais demarcações de áreas de ocupação tradicional indígena no Brasil.

Foto: Lohana Chaves/Funai

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