A palavra como flecha. Entrevista com Davi Kopenawa Yanomami

IHU

A importância de um xamã pode ser compreendida como poder, eficácia e, também, como influência moral no seu próprio povo de origem. Entretanto, quando se trata de uma figura que transcendeu à própria comunidade e alçou o xamanismo à esfera política, seu papel ganha outros significados. Davi Kopenawa Yanomami trabalha pela realização, pelo resultado da causa e pelo termo de ação. São estes os vários sentidos da palavra efeito como síntese de todo tipo de sentimento que o xamã do povo Yanomami evoca, em qualquer lugar que passa para partilhar a cosmovisão dos espíritos da floresta.

A palavra, para além do seu conjunto de significados, também revela a importância que a Universidade Federal do Estado de São Paulo deu à concessão da primeira outorga de Doutor Honoris Causa, título inédito na história da Unifesp, para Davi Kopenawa Yanomami e que ele recebeu, em março, dentro de uma série de homenagens batizadas de efeito Kopenawa.

A envergadura dessa liderança abarca, para além do destaque como líder político e xamã, a condição de presidente da Hutukara Associação Yanomami; o papel de ativista na defesa dos povos indígenas e da floresta amazônica; o trabalho como autor, roteirista, produtor cultural, palestrante e membro da Academia Brasileira de Ciências. Davi Kopenawa é autor da obra “A Queda do Céu: palavras de um xamã yanomami”, em coautoria com o antropólogo Bruce Albert. A obra, publicada originalmente em francês, em 2011, e traduzida ao inglês, português e italiano, é reconhecida como um dos livros mais importantes do século XXI. No mês passado, o xamã lançou outro livro em co-autoria com o mesmo parceiro: O Espírito da Floresta.

Acostumado a mobilizar plateias lotadas que ouvem atentamente a abertura das suas falas em Yanomami, vertidas na sequência para o português, Davi de maneira enfática explicita sua estratégia de um uso tático da língua do invasor para fazer as ideias circularem: “Vocês da sociedade branca que invadiram as nossas terras há quinhentos anos…eu falei na própria língua Yanomami brasileiro que está na ponta do Brasil: Roraima, Amazonas”. Muitos aplausos.

São inúmeros encontros, rodas de conversa, exposições, lançamentos de livros, montagens de peças e audiovisuais em produção. O efeito Kopenawa se estende e continua a reverberar em parcerias surpreendentes como a que experimenta o diretor José Celso Martinez Corrêa, em pleno processo de adaptação de “A Queda do Céu” para o Teatro Oficina, na capital paulista.

A cada oportunidade de assumir a palavra, podemos apreender o impacto do que Ailton Krenak aponta ao se referir ao xamã Yanomami: “a linguagem do Davi é saúde”.

Longe do barulho e do assédio intermitente, num fim de tarde, Kopenawa incansável partilhou o que significa tamanha movimentação na própria vida e que se mistura e redefine o papel das lideranças indígenas na atualidade: “Nós estamos olhando longe, aonde precisamos chegar, nós precisamos conhecer o futuro adiante.”

Sim, é uma questão de tempo. Uma emergência que envolve a vida dos animais, das plantas, das árvores, das pedras, dos rios, dos oceanos, da humanidade e do planeta como um todo. E, nesse momento, sobretudo, a vida da nova geração de crianças Yanomami. Segundo Davi, o título acadêmico é mais uma flecha em defesa da Amazônia. Compreender a coesão das suas ideias nos faz querer impulsionar suas palavras para que esta flecha chegue cada vez mais longe e atinja a maior quantidade de gente, o mais rápido possível.

A entrevista é de Marcelo Carnevale, publicada por Amazônia Real, 23-05-2023.

Eis a entrevista.
Como pensar a palavra como flecha?

Eu falo com as pessoas em grupos grandes e grupos pequenos. Converso com elas, falo a respeito da nossa sobrevivência na Terra. O pessoal escuta, mas a fala da gente não vai tão longe, por isso pensei no arco e flecha. A gente estica e solta para ir mais longe, para tocar o coração, para olhar e escutar. Se a flecha não toca, não se olha nem se escuta. Por isso eu escolhi a palavra como flecha, para falar com o não indígena. Se eu falasse apenas pela boca: destruidor, não pode derrubar essa árvore não! Ele escutaria, mas não iria acreditar. Tem que falar bem forte para ele sentir quem é que está falando para ele. Assim que eu escolho a palavra para usar como flecha. O livro A Queda do Céu está na cabeceira do caminho. O livro está entrando na universidade, circulando pelas cidades. É uma flecha forte. Agora, estamos lançando O Espírito da Floresta.

Qual o papel da nova liderança indígena no momento no qual vivemos?

Eu falo pelo povo Yanomami e pelo global. A floresta é nossa e da sociedade civil que mora na cidade e que a protege. Aprendi a falar por todos que defendem as águas, as árvores e as terras das invasões em qualquer lugar. Onde os brancos estão, eu posso falar também. Seja em defesa da Terra, da Lua, do Sol, onde os xapiris estão morando. Eu falo em nome deles para proteger. Eles moram na montanha alta, onde tem uma cachoeira muito importante, no Pico da Neblina, em Maturacá, a maior casa do espírito da floresta que está cuidando, dando apoio aos nossos filhos para não adoecer. Os xapiris tem uma casa própria flutuando, ficam como a Lua flutuando, cantando, dançando. Hoje, a nova liderança indígena Yanomami que vive nas comunidades sabe mais dos problemas e já aprendeu a lutar. Mas se eles permanecerem na comunidade, não resolvem, precisam de lugar na cidade. Hoje, a nova geração estuda na escola e pensa diferente. Como meu filho Dário Kopenawa que não é uma liderança mas está seguindo o meu caminho. Ele é mais entendido, estudou. Eu não tenho estudo, aprendi caminhando, lutando e com outras lideranças antigas. Aprendi o português também para falar e entender melhor, para saber brigar certo. O Dário e meu outro filho, o Ênio, estão se preparando e eu vou descansar daqui a um tempo. Nós três nos revezamos para cuidar da saúde Yanomami. Eu saio, eles ficam na comunidade. Vivemos bem, próximo ao rio Demini, afluente do Rio Negro que não está sofrendo com o garimpo.

Qual a parte do território Yanomami afetada pelo garimpo? Há expectativa de mudança de local diante desse cenário?

Quem está sofrendo é quem mora na margem do rio Branco e do rio Uraricoera. Eles não podem abandonar o lugar deles, não podem fugir do garimpo para chegar na minha casa. Precisam ficar lá, necessitam apoio da Funai, da polícia, da saúde. É um trabalho para o presidente Lula e para o Exército. Uraricoera tirou o garimpo que estava lá, mas os garimpeiros estão na montanha, caminhando dentro do mato. Continuam escondidos, o Exército não consegue ir atrás deles e eles estão armados. A Polícia Federal e a Força Nacional conseguiram chegar no garimpo. Queimaram as máquinas, tocaram fogo nos helicópteros e se encontrarem avião lá dentro vão queimar. Outros fugiram porque lá é fronteira com a Venezuela. No país vizinho não tem controle, é pior. Não tem polícia interessada e o garimpo não é proibido. Tudo é garimpado. Eles deixam entrar os invasores. Aqui, nossa terra está demarcada e homologada. Minha aflição é não saber o tempo de recuperação da parte afetada pelo garimpo. Fico pensando em Serra Pelada, um buraco grande, lugar que nunca sarou. Penso que lá no Uraricoera, Tatuzão e Almoxiriquem, lugares nos quais eles cavaram grandes buracos que não saram nunca, não tem pessoa para ir lá plantar. A presença do metal é outra coisa grave, a água está parada e suja, criadouro de mosquito venenoso que sai para atacar à noite.

Como avalia a atuação do governo?

Hoje, estamos sem medicamento, o remédio não está chegando e, sem ele, o médico não vai. As visitas das equipes são rápidas. Precisamos de uma atuação, como em 2000, com médicos, enfermeiros, equipamento, todos trabalhando um mês direto na comunidade, examinando, tirando sangue. Na prática, eles estão resolvendo só um pouquinho. Muita política. Os militares são bolsonaristas, eles não querem proteger, ir atrás do garimpo. Falaram na construção de uma casa para fazer tratamento Yanomami perto da comunidade. Levar a saúde lá no Surucucu para evitar o deslocamento até a cidade, mas ainda não estão resolvendo. Não tem lugar para amarrar rede e para o remédio não molhar. A ministra Soninha Guajajara tem que conhecer mais, ficar lá uma semana, olhando de perto para resolver alguma coisa. Ela está longe, não está junto, não conversa com os parentes doentes. Visita a comunidade e vai embora no mesmo dia. Isso não é trabalho, não é apoio. Vai lá para me acalmar, tirar foto comigo. Não é trabalho de saúde para o povo Yanomami. Só vou acreditar quando tiver médico, enfermeiros e equipamentos no Surucucu.

A malária é a doença mais comum. Falta fumacê para combater o mosquito da malária. Também temos gripe sem medicamentos, pneumonia e as doenças da água suja, como vermes que fazem as crianças vomitarem. Os deputados e senadores de Roraima, Brasília e São Paulo querem manter uma inércia. Ainda não conseguimos conversar com Joênia Wapichana, presidente da Funai, precisamos de uma reunião para reivindicar a construção de guaritas com postos de vigilância para bloquear acessos em Barcelos (TI Yanomami), como em 1991 e 1992, quando se conseguiu conter as invasões.

Diante de tamanha insegurança, como você se movimenta no território Yanomami?

O inimigo sai da terra Yanomami e chega a Boa Vista procurando por nós. Eles querem matar pai e filho para enfraquecer a liderança. Esse é o pensamento do garimpeiro. Eu me protejo na comunidade, fico longe. Dário usa tecnologia para ter proteção. Usa a internet para se comunicar. Na cidade, a casa dele tem câmera de vídeo. Eu não posso permanecer no Surucucu porque o garimpo passa por lá. Quando vou preciso levar mais quatro comigo. Somos os mais ameaçados, eu e meu filho, porque a gente denuncia para a Funai, para os ministérios. Falta uma liderança como eu ou meu filho para ficar lá no Surucucu. O Ênio Mayanawa Yanomami, que trabalha na Hutukara Associação Yanomami, no Surucucu, por três, quatro semanas para orientar os pacientes que partem para Boa Vista ou para observar o outro lado da montanha. Ele defende a saúde. Foi mandado embora da assessoria indígena da Secretaria da Saúde Indígena (Sesai), mas ficou para trabalhar com a comunidade. A equipe de poucos funcionários é bolsonarista e não quer trabalhar no mato, só na cidade. Quem dá mais apoio é o pessoal de São Paulo e do exterior. Estamos conversando com a Unifesp para eles atuarem na terra Yanomami. Tem muita gente que está ajudando por medo de faltar comida. É uma situação sem controle e eu não vou parar de falar. O povo da mercadoria está há muitos anos plantando na terra. Se eles pararem de plantar mercadoria, vocês, povo da cidade, vão se revoltar comigo. Se deixar de criar galinha e boi, muita gente vai reclamar. A comida de vocês vai acabar. É por isso que eles não aceitam a nossa fala, o povo da mercadoria é como os fazendeiros do agronegócio da soja e do boi. Nem a fala do presidente Lula para respeitarem a terra indígena estão aceitando. Não tem homem que os façam mudar.

Davi Kopenawa recebendo o título de Doutor Honoris Causa da Universidade Federal de São Paulo. (Foto: Alex Reipert | Unifesp)

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.

cinco × quatro =