Por Paula Rosas, na BBC News Mundo
“Sinto muito pelos espanhóis que discordam, mas hoje, no Brasil, a Espanha é conhecida como um país de racistas.”
As palavras são do jogador de futebol brasileiro do Real Madrid Vinícius Júnior após o jogo de domingo (21/5) contra o Valência, onde o jogador de 22 anos tentou chamar a atenção do árbitro para os insultos racistas que recebeu dos torcedores locais.
Mais tarde, Vinícius publicou em suas redes sociais imagens de outros ataques racistas que recebeu em diferentes estádios espanhóis nos últimos dois anos.
A primeira reação do presidente da liga espanhola de futebol, Javier Tebas, foi crítica ao jogador em uma publicação no Twitter: “Já que os que deveriam não te explicam o que a @LaLiga pode fazer em casos de racismo, tentamos explicar para vocês, mas você não apareceu em nenhuma das duas datas combinadas que solicitou. Antes de criticar e insultar a @LaLiga, você precisa se informar adequadamente”.
Mas depois disse que não pretendia atacar Vinícius e pediu desculpas se sua intenção não foi compreendida, “principalmente no Brasil”.
O debate foi além do futebol e chegou até a reunião do G7 em Hiroshima, no Japão, onde o presidente brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva, disse que “fascismo e racismo” não podem dominar os estádios de futebol.
Com base nessa polêmica, muitas pessoas denunciaram sua experiência como migrantes ou não brancos na Espanha nas redes sociais ou na imprensa, uma série de pequenas e grandes discriminações e ataques, muitas vezes cotidianas.
Os insultos de um torcedor de futebol refletem o clima predominante em um país? É possível determinar se um país é racista? Essas perguntas não têm uma resposta simples, principalmente se não houver informações precisas sobre esse fenômeno social.
Ao contrário de países como o Reino Unido, onde o Estado coleta informações detalhadas sobre a origem étnica ou racial de seus habitantes por razões estatísticas e para promover a diversidade, na Espanha isso não acontece.
Há muito poucos dados confiáveis sobre a diversidade racial do país, mas poucas pesquisas atualizadas que captam globalmente as atitudes ou pensamentos de seu povo.
Registra denúncias de crimes de ódio e, entre elas, as relacionadas a racismo e xenofobia. Em 2021, por exemplo, o Ministério do Interior contabilizou 638 atos de racismo, 24% a mais do que em 2019, antes da pandemia.
No entanto, apenas 12,8% das pessoas que viveram uma situação discriminatória por motivos raciais ou étnicos apresentaram queixa, denúncia ou reclamação, de acordo com o estudo “Percepção da discriminação com base na origem racial ou étnica pelas suas potenciais vítimas em 2020” elaborado pelo Conselho para a Eliminação da Discriminação Racial ou Étnica (Cedre), subordinado ao Ministério da Igualdade.
As vítimas não denunciam porque acreditam que o caso permanecerá impune, porque desconhecem seus direitos ou por medo de que isso possa causar problemas para elas. Um em cada quatro, segundo o estudo, também não o faz porque minimiza ou mesmo justifica esta situação de discriminação.
“Dizem que o racismo na Espanha não está mais normalizado como antes porque há pessoas, governos, instituições conscientes que o denunciam. Mas mesmo nós que sofremos com isso o normalizamos. Nós nos endurecemos para que da próxima vez não doa tanto, mas sempre há uma próxima vez que dói”, escreveu nesta semana, em uma coluna de opinião no jornal Jornal Público, a escritora peruana Gabriela Wiener, que mora na Espanha há anos e descreveu uma agressão racial que sofreu recentemente em uma reunião social.
Sukaina Fares, que trabalha em uma imobiliária, conta à BBC News Mundo que, por exemplo, um em cada três apartamentos alugados vem com um “filtro racista”.
Muitos dos proprietários não querem imigrantes ou não-brancos. Recentemente, um proprietário desistiu no dia da assinatura do contrato porque, embora tivesse previamente combinado por telefone com a potencial inquilina, uma médica e mãe solteira, “na hora de assinar, ele viu que ela era negra e não quis.”
“E não é só o aluguel. Há muito racismo nos bancos com as hipotecas. Os imigrantes têm muito mais dificuldade”, denuncia Fares.
O racismo sofrido por Vinícius, por Wiener, ou o que Fares conta não é novidade.
O jogador de futebol camaronês Pierre Weibó, que passou por Osasuna, Mallorca e Leganés, relembrou esta semana em entrevista ao jornal esportivo Relevo como foi difícil, por exemplo, a pergunta que seu filho lhe fez no início dos anos 2000: “Papai, por que as pessoas fazem esses barulhos quando você toca na bola?”
A questão vai além do futebol, explica David Moscoso Sánchez, professor de Sociologia da Universidade de Córdoba, à BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC.
“Em geral, há uma difusão ocorrendo na Espanha e uma normalização de certos valores racistas que pareciam ter desaparecido e que estão encontrando um lugar de conforto no espaço do futebol”, disse por telefone.
Os estádios de futebol, na opinião dele, “parecem blindados da aplicação de regras, não apenas da cortesia social, convenção social e convivência, mas também de regras legais. No estádio de futebol, as pessoas podem fazer o que quiserem: elas insultam o árbitro, os jogadores… e nunca acontece absolutamente nada. É um espaço de livre expressão desses valores”.
O problema, acrescenta Moscoso, não vem do esporte, mas “de um viveiro ideológico alimentado pela extrema-direita nos últimos anos, que se traduz num ódio intolerável aos estrangeiros, imigrantes ou aos que têm uma cor de pele diferente”.
Quando os líderes políticos de determinados grupos transmitem valores racistas, adverte a investigadora, “abrem as portas a um certo reconhecimento ou aceitação social desses discursos”.
Atualmente, “estamos vivendo um retrocesso”, como reconheceu Antumi Toasijé, presidente do Cedre, à BBC News Brasil.
“O racismo tem uma longa tradição na Espanha”, diz Toasijé, e “à medida que a extrema direita ganha terreno, todos os elementos são criados para o crescimento exponencial do racismo em nossa sociedade, e a qualquer momento pode haver uma explosão”.
As redes sociais e os jovens
Como em muitos outros países, esse terreno fértil se multiplicou com o surgimento das redes sociais.
A Espanha não é um país racista, explica a jornalista e consultora de comunicação Carmela Ríos à BBC News Mundo, “mas é um país onde começamos a ver uma grande parte do discurso de ódio que se espalha pelas redes sociais há pelo menos cinco anos, e com crescente impunidade”.
Embora grandes empresas de tecnologia como Meta ou Google afirmem fazer um esforço para moderar esse conteúdo odioso e de desinformação – “menos Twitter, onde não há mais moderação e onde o ódio corre como espuma”, diz Ríos – não é suficiente.
“Nem todos os espanhóis são racistas, mas há um agenciamento social e tecnológico suficientemente poderoso e pouco monitorado para que isso aconteça”, acrescenta.
Ríos, que há anos analisa as redes sociais, destaca a idade dos detentos no caso dos insultos racistas a Vinícius: “são todos muito jovens, é impressionante. E essa é uma das demonstrações de como o discurso de ódio dentro de certos grupos é uma tendência socialmente aceitável, que também é realimentada nos canais de comunicação de algumas comunidades, como os grupos ultras de futebol”.
Precisamente, um estudo de novembro de 2022 sobre percepções de jovens e racismo do Centro Reina Sofía sobre Adolescência e Juventude (que entrevistou 1.200 jovens entre 15 e 29 anos) concluiu que, embora a maioria das pessoas tivesse opiniões muito distantes a partir de estereótipos e preconceitos racistas, um em cada quatro jovens entrevistados concordava com declarações racistas.
A imprensa também contribui para essa percepção.
Uma das áreas mais estudadas é a do anticiganismo, profundamente enraizada na Espanha.
Segundo sucessivos estudos realizados pelo Instituto Romano de Estudos Sociais e Culturais, os meios de comunicação contribuíram consciente e inconscientemente para divulgá-la, perpetuando estereótipos ou insistindo em determinada linguagem (“clã”, “patriarca”, “briguentos”… ) para descrever as comunidades ciganas.
Embora não haja muitas estatísticas sobre o racismo, as percepções sobre a imigração têm sido mais estudadas e, embora dêem apenas uma visão parcial da discriminação racial na Espanha, servem para orientar uma tendência.
Segundo a pesquisa “Explicando atitudes calmas em relação aos imigrantes na Espanha”, elaborada pelo Instituto de Estudos Sociais Avançados do CSIC no outono de 2020, um quinto dos espanhóis sentia antipatia em relação aos imigrantes como um todo.
Essa proporção subiu para um em cada três no caso dos norte-africanos, enquanto os latino-americanos tiveram um nível de simpatia muito maior. O estudo entrevistou 2.344 pessoas de nacionalidade espanhola.
A Espanha, explica Sebastian Rinken, pesquisador principal do estudo CSIC à BBC News Mundo, vivenciou um boom migratório muito importante nos últimos anos e, apesar disso, “a digestão coletiva dessa mudança demográfica foi muito tranquila. Em geral, há uma boa convivência nos bairros e as crianças dividem centros educativos sem nenhum problema, por exemplo”.
“Na sociedade espanhola, se olharmos para a mudança que ocorreu desde os anos 1990 até aqui, especialmente durante o grande boom, não houve conflito social em torno da questão da diversidade, praticamente nenhum”, diz Rinken.
Essa também é a experiência de Zoubida Boughaba, que trabalha com grupos de mulheres e chegou à Espanha há mais de 30 anos. “Existem pessoas racistas, é claro, é algo universal, mas não sinto racismo no meu dia a dia. Costumo pensar que é classismo, ignorância ou medo do outro”, explicou à BBC.
O que diz a legislação
A legislação espanhola reconhece o direito à igualdade perante a lei e à não discriminação, protegidos tanto pela Constituição de 1978 como por diversas regulamentações específicas nacionais e regionais sobre esportes, educação, trabalho ou liberdade religiosa, assim como disposições específicas do Código Penal por crimes de ódio.
Em 2022, porém, foi aprovada uma lei específica para combater esse tipo de discriminação, a “Lei 15/2022, de 12 de julho, prevê a igualdade de tratamento e a não discriminação”, também conhecida na Espanha como “Lei Zerolo”, em homenagem do deputado e militante pelos direitos LGTBQIA+ Pedro Zerolo, que foi a principal figura a promovê-la desde a apresentação dela em 2008.
A lei, que prevê multas que vão dos 300 (R$ 1.620) aos 500 mil euros (R$ 2,7 milhões), estabelece que ninguém pode ser discriminado em razão do nascimento, origem racial ou étnica, sexo ou religião, convicção ou opinião, idade, deficiência, orientação ou identidade sexual, expressão de gênero, doença, estado de saúde, situação socioeconômica ou qualquer outra condição ou circunstância pessoal ou social.
O Conselho para a Eliminação da Discriminação Racial (Cedre) disponibiliza um telefone gratuito para atender pessoas que sofreram racismo ou têm conhecimento de situações de discriminação racial.
As consultas também podem ser feitas por WhatsApp, e-mail ou pessoalmente em um dos 23 escritórios existentes em diferentes pontos da Espanha.
O serviço presta assessoria jurídica gratuita, informação às vítimas sobre os recursos públicos existentes ou, por exemplo, resolução de conflitos, se as partes assim desejarem, com mediação.
No entanto, o Ministério da Igualdade acredita que a legislação atual não é suficiente, por isso querem aprovar a Lei contra o Racismo o mais rápido possível, explica a pasta à BBC.
Essa proposta, da qual existe apenas um anteprojeto, mas que ainda não se tornou projeto de lei nem chegou ao Conselho de Ministros, visa, entre outras coisas, combater o discurso de ódio nos meios de comunicação e redes sociais.
Pretende ainda estabelecer protocolos contra o assédio racista em centros educativos e que empresas com mais de 250 trabalhadores devem elaborar planos contra o racismo.
No âmbito do esporte, existe uma lei específica de 2007 contra a violência, o racismo, a xenofobia e a intolerância. Também há um órgão estatal: a “Comissão Estatal contra a Violência, o Racismo, a Xenofobia e a Intolerância no Esporte”.
No entanto, como explica David Moscoso, “uma coisa é o aparelho legislativo existir e outra coisa é ele ser aplicado de maneira efetiva”.
No caso de Vinícius Júnior, por exemplo, “foram 10 denúncias em dois anos, mas não deram em nada, como em outras situações semelhantes. E a tendência em alguns casos é culpar o jogador, dizendo que ele provoca muito. É como se uma mulher fosse estuprada e a culpassem. Há um problema mais grave aqui”, acrescenta o sociólogo da Universidade de Córdoba.
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Foto: UmDoisEsporte / EFE