Nas últimas semanas, organizações sociais têm ocupado reuniões e imprensa para questionar a viabilidade de um Projeto de Lei que visa oficializar a redução das Áreas de Preservação Permanente, permitindo presença de novos empreendimentos nas mesmas
Por Érica Daiane, ASACom
No final de 2021, o então presidente Jair Bolsonaro sancionou a Lei 14.285/2021, que determina que municípios terão o poder de definir o tamanho das faixas de restrição nas margens de rios, córregos, lagos e lagoas nos seus limites urbanos. Esta decisão altera o Código Florestal e flexibiliza regras que acabam por regulamentar crimes ambientais históricos como o uso imobiliário ou agrícola do solo na beira desses corpos d’água.
A partir desta mudança na legislação, a Prefeitura de Juazeiro, no Semiárido baiano, elaborou o Projeto de Lei com mensagem nº 012/2023 que “estabelece a delimitação da Área de Preservação Permanente – APP do rio São Francisco no perímetro urbano de Juazeiro-BA e dá outras providências”. O documento já pronto foi apresentado ao Conselho Municipal de Meio Ambiente com indicativo de que deveria ser votado na Câmara antes do recesso parlamentar que inicia no próximo dia 22.
Ao receber a informação, representantes da sociedade civil, universidade e órgãos públicos que integram o Conselho municipal questionaram o conteúdo do projeto, a falta de transparência e democracia na elaboração do mesmo, bem como a pressão feita pelo governo municipal para que fosse apreciado com urgência.
Para ambientalistas e ativistas sociais, o PL precisa ser objeto de ampla discussão popular, uma vez que se trata de decisões que impactam a vida do rio e das pessoas de forma direta. Em reunião ordinária do Conselho no último dia 14, representantes do Instituto Regional da Pequena Agropecuária Apropriada (Irpaa), da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e da Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf), com respaldo de outras organizações na condição de ouvinte, defenderam a realização de audiência pública, proposta que foi derrotada ao final da reunião pelo voto de minerva do presidente, o secretário municipal de Meio Ambiente, Islédio Bandeira.
Em Juazeiro, assim como na maior parte dos municípios brasileiros, os 500 metros que eram previstos no Código Florestal há muito tempo não são respeitados, um problema ambiental que só cresce a cada ano. Um estudo do MapBiomas, ao analisar imagens de satélites, identificou que, entre 1985 e 2020, subiu de 61,6 mil hectares para 121 mil hectares o total das áreas cobertas por construções e infraestruturas a pelo menos 30 metros de distância dos corpos hídricos.
As novas leis, ao invés de buscarem corrigir e compensar tais falhas, acabam alargando ainda mais o problema. O PL em questão propõe diminuir para 30 ou 100 metros a APP do Velho Chico na área urbana, sendo que, de acordo com estudo apresentado ao Conselho, a maior parte do perímetro já não dispõe destas medidas preservadas.
Um dos pontos centrais que vêm sendo questionados à gestão da prefeita Suzana Ramos (PSDB) são os artigos que versam sobre a possibilidade de novos empreendimentos imobiliários dentro da APP. Para o ambientalista Roberto Malvezzi (Gogó), é uma forma de regulamentar o antigo problema da construção de condomínios nas margens do São Francisco, sem apontar soluções para compensar e, mais que isso, abrindo margem para seguir ocupando de forma indevida, porém agora legalizada, caso o PL venha a ser aprovado. O que deveria se fazer era “cobrar as compensações e a recuperação ambiental das áreas ainda não ocupadas, e não ocupá-las com novos empreendimentos”, defende Gogó.
A equipe técnica da Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Ordenamento Urbano (Semaurb) alega que hoje não se respeita nem os 100 metros propostos no PL e que boa parte já se encontra degradada ou conta com ações antrópicas. “O município busca com essa lei recuperar e preservar toda essa margem e busca também o avanço, claro, mas de forma responsável”, argumenta Islédio.
A respeito da contradição no que se refere à legitimar construções dentro do limite da APP, o secretário adianta que “conforme o empreendimento (…), vai ser discutido de forma individual” se a licença será ou não concedida. Quando for aprovada intervenção na APP, ele complementa que “vai ser uma área totalmente compensada, no que ainda tiver e for suprimida, a gente vai buscar ferramentas de compensar toda essa área em outros lugares”, finalizou.
Após mobilização da sociedade civil na imprensa regional, a Semaurb disponibilizou para membros do Conselho, em formato digital, o levantamento de “Caracterização ambiental das áreas margeadas pelo Rio São Francisco ao longo do perímetro urbano do município de Juazeiro – BA”. Contudo, o material não informa que critérios foram utilizados para definir o limite de 100 metros previstos no PL.
Diante da não aprovação da audiência pública, a sociedade civil se mobiliza para fazer uma audiência popular ainda este mês. Ao mesmo tempo, as organizações seguem atentas à possibilidade da prefeitura desrespeitar o encaminhamento do Conselho – de que o projeto deverá contar com uma relatora e um sub-relator para receber contribuições ao texto – e enviar o projeto à Câmara. O Ministério Público já está sendo acionado pelas organizações mobilizadas, informaram os advogados que integram a comissão contrária ao PL. Foi solicitada uma posição do MP Regional sobre o assunto, mas até o fechamento desta matéria não houve retorno.
Este debate em Juazeiro, no centro do Semiárido brasileiro e às margens do rio da integração nacional, é um alerta à sociedade no sentido de se apropriar dos espaços que definem os rumos da política ambiental nos municípios, conforme destaca um dos coordenadores da Articulação Semiárido Brasileiro (ASA), Cícero Félix. Para ele, a Lei Federal 14.285/2021 é uma das heranças desastrosas do governo Bolsonaro e a população precisa seguir reivindicando o direito constitucional de participar dos debates de interesse público.
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Foto: João Zinclar