População em situação de rua: “É necessário repensar o direito à cidade”. Entrevista especial com Maria Gabriela Godoy e Monika Dowbor

No último ano, a população em situação de rua aumentou em torno de 38% no Brasil, afirmam as pesquisadoras

Por: João Vitor Santos, em IHU

A prioridade dos governos para projetos de revitalização e valorização imobiliária e a falta de informações numéricas sobre o número de pessoas em situação de rua trazem à tona a discussão sobre o modelo de cidade que está em curso no país. Segundo a pesquisadora Maria Gabriela Godoy, Porto Alegre é um exemplo de município que prioriza a “valorização imobiliária de determinadas regiões como o Centro Histórico, o 4º Distrito e a Orla, em detrimento de ações voltadas para as necessidades de segmentos como a população em situação de rua – PSR que circula por esses bairros, tratada como indesejável por determinados setores da gestão municipal”. As remoções forçadas e a insuficiência de serviços nos bairros periféricos fazem parte de políticas criminalizadoras e punitivas que favorecem o aumento da população em situação de rua.

Para Monika Dowbor, desde a pandemia “famílias inteiras foram para a rua”. “Não temos informações numéricas sobre isso em Porto Alegre. Nossa pesquisa sobre novas vagas e serviços disponibilizados para a PSR nesse município no primeiro ano da pandemia, ou seja, uma situação de emergência humanitária, além de apontar a insuficiência, também revelou a fragmentação das informações a respeito das políticas em diversos documentos e fontes, cujo acesso exige perícia no manejo de plataformas e disponibilidade de tempo”, relata. A falta de transparência na divulgação de informações e números de modo geral, observa, na entrevista concedida por e-mail, “dificulta dimensionar o problema público bem como monitorar as políticas”.

Efeitos climáticos, como ciclones e enchentes que ocorreram em várias cidades do Rio Grande do Sul neste mês de junho, impactam diretamente a população em situação de rua e tornam a situação das famílias ainda mais complexa. “É importante observar que essas situações de desastre tendem a aumentar a PSR, com pessoas e famílias inteiras perdendo suas casas. E geralmente essas pessoas e famílias já estão na berlinda, vivendo em áreas pobres e de risco”, adverte Maria Gabriela Godoy. Este cenário, reitera, reforça a discussão sobre a moradia digna como direito fundamental da pessoa humana. “Para não aumentar e nem perpetuar a situação de rua, é necessário repensar o direito à cidade de maneira a lidar com as desigualdades históricas e sociais do Brasil, com a formulação de políticas de moradia que abranjam tanto a PSR quanto as populações pobres vivendo em áreas de risco e em moradias precárias”.

A entrevista foi concedida ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, por email.

Monika Dowbor possui doutorado em Ciência Política, mestrado em Sociologia e graduação em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo – USP. É professora dos PPGs em Ciências Sociais e Saúde Coletiva da Unisinos, coordenadora do Núcleo Democracia e Ação Coletiva do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento – CEBRAP e uma das coordenadoras do Grupo de Pesquisa e Extensão Passa Repassa.

Maria Gabriela Godoy é graduada em Medicina pela Fundação Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre, mestre e doutora em Saúde Coletiva pela Universidade Federal do Ceará – UFC. É professora adjunta da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Também é uma das coordenadoras do Grupo de Pesquisa e Extensão Passa Repassa.

Confira a entrevista.
IHU – Como caracterizam a população em situação de rua hoje, mais especificamente em Porto Alegre?

Maria Gabriela Godoy – A população em situação de rua (PSR) é bastante heterogênea em termos de perfil. É composta por uma grande maioria de homens, pretos ou pardos, entre 20 e 49 anos, de baixa escolaridade e com uma menor parcela de ocupados em trabalhos informais. Uma minoria é pedinte. Essas características se repetem nos censos realizados em algumas grandes capitais. É uma população não incluída os censos do IBGE, voltados para pessoas domiciliadas. Então, os dados que temos para o Brasil são estimativas.

Além disso, no caso de Porto Alegre, deixamos de ter censos regulares. O último foi em 2016, e os dados estão defasados. As informações que temos são de cadastros de pessoas em Situação de Rua no SUS. Ou seja, no número que afirmamos, de 5.788 pessoas, estão apenas os cadastrados. Esse número, portanto, é maior.

Precisamos melhorar e articular os sistemas de informação que acompanham a população de rua, articulando a saúde e a assistência social para acompanhar as mudanças ao longo do tempo. Por exemplo, em 2008 foram identificadas 1.203 pessoas em situação de rua em Porto Alegre. Em 2012, 1.347 pessoas – o que equivale a um aumento de 11,9% dessa população em quatro anos. E, em 2016, houve um total de 2.115 pessoas, correspondendo a um aumento de 57% dessa população, também em quatro anos.

No censo de 2016 houve, houve a participação de facilitadores da rua contribuindo com os recenseadores. Eram pessoas com trajetória de rua que conheciam e conseguiam entrar em locais nos quais os recenseadores não entrariam. Entretanto, houve também críticas a esse censo, por considerar que não abrangeu toda a PSR de Porto Alegre, pois, segundo representantes do Movimento Nacional da População de Rua – MNPR/POA, determinados locais deixaram de ser visitados.

É importante lembrar, portanto, que um censo serve para estabelecer um patamar quantitativo mínimo referente à população em questão, assumindo-se, de antemão, a possibilidade de ocorrer subnotificação, ainda mais com as características dinâmicas e itinerantes da PSR.

Monika Dowbor – Como disse Gabriela, a PSR é heterogênea. Aqui é importante voltar à sua definição aprovada em 2009 no decreto presidencial 7.053 e cuja elaboração contou com a participação do Movimento Nacional de População de Rua – MNPR. Para além da extrema pobreza e vínculos familiares rompidos ou fragilizados, a definição inclui tanto as pessoas que fazem da rua seu lugar de pernoite como as pessoas que estão nas unidades de acolhimento ou em situação de moradia provisória. Essa definição reconhece, portanto, que as moradias provisórias, como aluguel social ou auxílio moradia, não significam que a pessoa não esteja mais em situação de rua. Esta é a definição legalmente vigente e legitimada pela comunidade política no país.

Ainda assim, é necessário realizar censos regulares que possam revelar as diversidades de situações de modo que as políticas públicas sejam efetivas sobretudo do ponto de vista do usuário.

IHU – Durante a pandemia de Covid-19 e os meses seguintes, houve um aumento da população de rua em muitas cidades. Hoje, os números seguem aumentando? Como estão aquelas famílias inteiras que em 2020 e 2021 foram forçadas a morar na rua?

Maria Gabriela Godoy – O Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada – IPEA lançou uma nota técnica em 2022 na qual estima que a PSR subiu em torno de 38% no Brasil. Municípios que fizeram censos da sua PSR, como São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte, confirmaram o aumento.

Já em Porto Alegre os números foram confusos. Não houve um novo censo para calcular o aumento da PSR com a pandemia. A Fundação de Assistência Social e Cidadania – FASC disse que em 2019 havia 2.775 pessoas em situação de rua. Em março de 2021, a FASC disse que teria havido um aumento de 38,75% com a pandemia. Como eu disse antes, representantes do MNPR já consideravam esse número defasado.

A gestão municipal anterior assumiu, no Plano de Superação da Situação de Rua, que haveria cerca de 4.000 pessoas em situação de rua em Porto Alegre em 2018, com cerca de 5.000 cadastros da FASC. Isso nos coloca diante de discrepâncias encontradas em diferentes setores da própria gestão, pois cada qual usa seus números para a PSR.

Subdimensionamentos na política pública
O problema é que as políticas têm sido pensadas pela FASC a partir do menor número e, inclusive, da redução de números. Em agosto de 2021, foi lançada a política para a PSR pela gestão atual, o Plano Ação Rua, que afirmou haver 2.518 pessoas em situação de rua em Porto Alegre naquela época. Ou seja, em poucos meses reduziram a PSR de 3.850 para 2.518 pessoas. E isso contrasta muito as tendências observadas em outras capitais.

Monika Dowbor – Com a pandemia, famílias inteiras foram para a rua, mas não temos informações numéricas sobre isso em Porto Alegre. Nossa pesquisa sobre novas vagas e serviços disponibilizados para a PSR nesse município no primeiro ano da pandemia, ou seja, uma situação de emergência humanitária, além de apontar a insuficiência, também revelou a fragmentação das informações a respeito das políticas em diversos documentos e fontes, cujo acesso exige perícia no manejo de plataformas e disponibilidade de tempo.

Há falta de transparência na divulgação de informações e números de modo geral, o que dificulta dimensionar o problema público bem como monitorar as políticas.

IHU – A pesquisa da qual participaram indica essa discrepância nos dados, pois vocês constatam, na capital gaúcha, 5.788 pessoas em situação de rua, mas segundo a Prefeitura são 2.371. Gostaria que detalhassem como chegam a esse número e a que atribuem a divergência percebida.

Monika Dowbor – Nosso grupo teve acesso a esse dado que foi produzido a partir dos prontuários eletrônicos do e-SUS do Ministério de Saúde com a ajuda do Área Técnica Estadual de Saúde da População em Situação de Rua. O novo dado foi extraído, mais especificamente, do Sistema de Informações de Atenção Básica na Atenção Primária e elaborado pela Coordenação do Acesso e Qualidade do Ministério da Saúde. Essa fonte, portanto, é oficial e seu último registro indica a existência, em dezembro de 2022, em Porto Alegre, de 5.788 pessoas em situação de rua cadastradas e ativas.

A caracterização “ativas” é relevante, pois mostra que foram excluídas do banco pessoas que não foram atendidas nenhuma vez nos últimos dois anos. Foram também excluídas as duplicações de cadastros. O dado abrange as pessoas que usaram o SUS na Atenção Primária à Saúde – APS, considerando todas as equipes: Estratégia de Saúde da Família (eSF), Equipe de Consultório na Rua (eCR) e Equipe de Atenção Primária (eAP).

Outra informação importante deste banco é que tais dados podem ser solicitados por qualquer cidadão ou órgão público por meio da Lei de Acesso à Informação.

Maria Gabriela Godoy – O referido banco de dados também revelou que nos últimos três anos foram realizados novos cadastros, o que apontaria para o aumento parecido ocorrido nas outras cidades: em 2020 – 519; em 2021 – 1.060; e em 2022 – 2.217 novos cadastros.

Estes dados colocam um ponto de interrogação nos números da gestão municipal. Vale frisar que provavelmente temos mais pessoas ainda, pois estimativas da Fiocruz apontam que, em 2021, cerca de 45% da PSR estaria cadastrada no e-SUS, inclusive com o aumento da população feminina em situação de rua de 18 para 37,4% (GAMEIRO, 2021).

IHU – O que essa divergência estatística revela em termos da gestão e atenção a pessoas em situação de rua em Porto Alegre? Em que medida essa mesma lógica de Porto Alegre se repete em outras cidades?

Monika Dowbor – Podemos chamar isso, por hora, de divergência estatística, mas essa diferença de números, ambos públicos, um gerado pelo SUS e outro pela atual gestão municipal, escancara a necessidade e a urgência do censo. São os municípios que, em grande parte, decidem sobre as políticas para a PSR. A redução do número da PSR pode gerar um artifício que leva à redução de oferta de serviços, piorando a insuficiência historicamente observada de ações e políticas para essa população.

Se a prefeitura de Porto Alegre trabalha apenas com 2.518 pessoas, significa que as políticas de assistência social, moradia, trabalho e renda etc. tendem a operar com este número. As explicações da gestão municipal em relação ao número oficialmente divulgado passam pelo uso de uma definição própria que não foi levada ao debate público e está sendo usada de forma “técnica”, em dissonância com o conceito nacional do Decreto 7.053.

IHU – Em dias muito frios, típicos do inverno no Rio Grande do Sul, é comum vermos ações do poder público em abrir novas vagas em albergues e criar albergues temporários em ginásios. O que é feito, em termos de política pública, para além destas situações? Por que o poder público acaba quase sempre agindo somente nestas situações emergenciais?

Maria Gabriela Godoy – Essa é uma questão complexa. Começarei pela análise da Operação Inverno, que anualmente amplia as vagas temporárias em albergues, pousadas e ginásios. Primeiro, é importante destacar que a oferta de espaços protegidos para o frio em Porto Alegre tem passado por um deslocamento de vagas em abrigos, albergues e pousadas para a abertura de ginásios. Todos esses espaços oferecem vagas transitórias.

A Operação Inverno divulgada para 2023 tem sido confusa, pois a FASC falou em 33 vagas em albergues, nova casa de passagem com 50 vagas e abertura de ginásios. Entretanto, além de essas vagas não serem suficientes para o total da PSR, também observamos o discurso de alguns representantes da FASC – como o que ocorreu na Audiência Pública da Câmara em 13-06-23 – de que haveria uma “suficiência” de vagas em função do não preenchimento ou lotação de albergues, por exemplo. Só que a FASC deveria reler os resultados dos censos que pagou, como o de 2016, retomando a questão referente aos principais motivos de a PSR não usar albergues/abrigos com frequência, o que inclui: regras rígidas, falta de liberdade, suspensão (21,2 %); forma de tratamento pelos administradores/hostilidade interna (vítima de racismo, maus-tratos e violência, arrogância dos administradores, desorganização, brigas, roubos, preconceito…) (15,6%); dificuldade em conseguir vagas/longe/localização (12,8%); horários (12,2%) (FASC/UFRGS, 2016, p. 55-56). Ou seja, o não preenchimento das vagas ofertadas à PSR não ocorre pela suficiência delas, mas pela sua inadequação às necessidades da PSR.

Uma segunda questão colocada é que as duas políticas da atual gestão, o Programa de Metas 2021-2024 (PROMETA) e, especificamente para a PSR, o Plano Ação Rua, não têm nada sobre moradia permanente para a PSR.

Essa política da urgência, que atende a PSR com vagas transitórias, é conhecida como cronopolítica pontual. Ela é descrita na literatura como uma ação irresolutiva e perpetuadora da situação de rua.

IHU – Como o poder público tem chegado a essas pessoas em situação de rua? Como avaliam as políticas públicas de atenção a essas pessoas?

Maria Gabriela Godoy – O que sabemos é que o primeiro contato com essas pessoas é feito por equipes de abordagem da FASC e dos Consultórios na Rua, da Saúde. As pessoas em situação de rua costumam se vincular a trabalhadores específicos. O vínculo é pessoal. E a precarização das relações de trabalho com o fim da administração direta dos serviços gera rotatividade nesses postos e, consequentemente, ruptura de vínculos com a saída e troca de trabalhadores.

Em relação à avaliação das políticas públicas e dos serviços, o ideal é ouvir a própria PSR. O censo de 2016 fez essa pergunta e serviços públicos com nota acima de 7,0 incluíram: equipes de abordagem social; restaurante popular; consultório na rua; EMEF Porto Alegre; hospitais, escolas; Pronto Socorro; Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos Ilê Mulher; postos de saúde, albergues; clínicas dentárias; CRAS; CREAS.

Abaixo de 7,0, estavam, em ordem decrescente: Centro Pop; hospital psiquiátrico; Defensoria Pública; aluguel social (não existe mais, foi substituído pelo Auxílio Moradia); Ministério Público; Polícia Civil; Guarda Municipal; Brigada Militar. Observam-se, portanto, uma melhor avaliação em serviços de assistência social e saúde e uma pior avaliação em serviços de justiça e segurança pública.

Monika Dowbor – Uma forma do poder público chegar a essa população consiste na promoção de espaços de escuta e de participação. Isso deveria ocorrer no plano municipal por meio da reinstalação do Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento da Política Municipal para a População em Situação de Rua – CIAMP, instituído pelo Decreto 19.087/2015.

Neste espaço colegiado, o poder público não só pode escutar como também deve prestar contas aos representantes dos coletivos da PSR e a grupos que trabalham em prol dessa população, como a Pastoral do Povo da Rua. Os conselhos e as conferências setoriais, como o de saúde e de assistência social, também são relevantes fóruns para essa construção conjunta. Por exemplo, os representantes do Movimento Nacional da População de Rua – MNPR-RS participaram da Conferência Municipal de Saúde deste ano e foram eleitos delegados para a Conferência Nacional.

Nossa pesquisa mostrou a importância dos espaços de participação nos próprios serviços como assembleias ou grupos de discussão. São espaços em que os indivíduos em situação de rua podem expressar suas preocupações, apresentar suas queixas e, com isso, trazer soluções e aprimoramentos aos serviços. Na última década, todos estes espaços foram sendo enfraquecidos e desmontados, e o CIAMP de Porto Alegre ainda não foi reinstalado pela gestão municipal, apesar da pressão da sociedade civil.

IHU – No caso específico de Porto Alegre, a pesquisa de vocês também constatou uma rede de assistência insuficiente para essa população em situação de rua. Como essa rede vem atuando e o que justifica essas ações?

Maria Gabriela Godoy – Nosso estudo enfocou ações possíveis de identificar a partir das ofertas documentadas oficialmente em contratos, termos de colaboração e apostilamento, que devem ser publicizados obrigatoriamente segundo a lei. Há dois anos estamos acompanhando as ofertas de alimentação e de vagas de permanência noturna e 24 horas, e a hospedagem social.

Nosso levantamento aponta que, em maio de 2023, estávamos com 240 vagas em albergues para pernoite, nos quais as pessoas podem ficar até 15 dias e todo dia, para entrar, devem ir para a fila: 90 vagas no Albergue Dias da Cruz; 75 vagas no Albergue Acolher I; e 75 vagas no Albergue Acolher II. Tínhamos 120 vagas em abrigos, que são 24 horas e de maior tempo de permanência: 50 vagas no antigo Bom Jesus, atualmente com a Agência Adventista; 50 vagas no Abrigo Marlene; 20 vagas no Abrigo de Família. Ainda há 450 vagas em Hospedagem Social em pousadas e 650 benefícios para Auxílio Moradia.

Entretanto, estes dois últimos não são apenas para a PSR e não há clareza de quantas dessas vagas são realmente ofertadas especificamente para a PSR. A Secretaria de Saúde tem 40 vagas em quatro Serviços Residenciais Terapêuticos, para pessoas com transtornos mentais, muitas das quais são da PSR, mas não se sabe exatamente quantas. A FASC ainda contabiliza a Casa Lilás, para mulheres em situação de violência, mas esta tampouco é específica para a PSR.

Na Audiência Pública da Câmara de Vereadores de 13-06-2023, a representante da FASC anunciou que, atualmente, existem 1.030 vagas disponíveis. Nosso levantamento contabiliza 1.500, mas como a Hospedagem Social, o Auxílio Moradia e a Casa Lilás não são específicos para a PSR, o número que apresentamos está superestimado. Se nos basearmos por ele, 75% da PSR permanece ao relento, mas esse percentual provavelmente é ainda maior.

Monika Dowbor – Em relação à alimentação, estudamos todos os serviços que oferecem algum tipo de refeição, incluindo Restaurantes Populares (700 refeições/dia), Centros Pop (220 lanches/dia); abrigos e Serviço Residencial Terapêutico (160 pessoas com mais de 4 refeições/dia); albergues (240 pessoas com janta e café da manhã em 24 horas), somando 1.320 pessoas, o que equivale a 23% da PSR com algum tipo de refeição por dia. Destacamos que apenas as 160 pessoas que estão em abrigos ou Serviço Residencial Terapêutico têm garantida à sua segurança alimentar, que equivale a uma quantidade e qualidade suficiente de alimentos que corresponde a uma média de 2.200 kcal para uma pessoa adulta de porte médio.

O almoço dos Restaurantes Populares equivale a 1.200 Kcal e não basta para garantir quantitativamente a segurança alimentar diária. Além disso, a FASC distribui um cartão alimentação equivalente a 200 reais mensais. Não sabemos quantos destes cartões beneficiam pessoas em situação de rua. E o seu valor alcança para comprar alimento para uma dieta de 2.200 kcal diárias durante 23 dias, sendo insuficiente para garantir a segurança alimentar de uma pessoa adulta de porte médio ao longo de um mês completo.

Como conclusão, observamos que a população em situação de rua permanece com fome e insegurança alimentar, dependendo da boa vontade da doação de alimentos por parte da população geral e dos grupos de voluntários que distribuem as refeições de forma sistemática em diversos lugares da cidade.

IHU – Hoje, em pleno século XXI, ainda vivemos processos de higienização social? Como compreender isto a partir do caso de Porto Alegre?

Maria Gabriela Godoy – No caso de Porto Alegre, observa-se uma priorização em projetos de revitalização e valorização imobiliária de determinadas regiões como o Centro Histórico, o 4º Distrito e a Orla, em detrimento de ações voltadas para as necessidades de segmentos como a PSR que circula por esses bairros, tratada como indesejável por determinados setores da gestão municipal. Observa-se, portanto, uma lógica criminalizadora e punitiva da PSR, com a continuidade de remoções forçadas, perdas de pertences, insuficiência de serviços e deslocamento de ofertas para bairros periféricos, onde já habita a população mais pobre e socialmente excluída da cidade.

Deste modo, o que está em questão é que modelo de cidade queremos e quem tem direito a essa cidade. Este processo de financeirização imobiliária não atinge apenas Porto Alegre, mas muitas outras cidades do Brasil e do mundo, agregando interesses do grande capital financeiro e imobiliário, das construtoras e de gestões governamentais parceiras a esse processo.

IHU – O Rio Grande do Sul viveu uma tragédia em decorrência da passagem do ciclone há cerca de duas semanas. Como esses eventos extremos impactam a população de rua? Em que medida as forças-tarefas para atender famílias impactadas pelos temporais acabam invisibilizando ainda mais a população em situação de rua?

Maria Gabriela Godoy – Situações de desastre como o ciclone impactam de diversas maneiras a PSR. Não temos dados para afirmar que haja um deslocamento de recursos que seriam para a PSR a fim de atender outras atingidas pelo desastre. Mas é importante observar que essas situações de desastre tendem a aumentar a PSR, com pessoas e famílias inteiras perdendo suas casas. E geralmente essas pessoas e famílias já estão na berlinda, vivendo em áreas pobres e de risco.

Por isso, a questão da moradia digna é um direito fundamental defendido pela ONU desde 1948. Para não aumentar e nem perpetuar a situação de rua, é necessário repensar o direito à cidade de maneira a lidar com as desigualdades históricas e sociais do Brasil, com a formulação de políticas de moradia que abranjam tanto a PSR quanto as populações pobres vivendo em áreas de risco e em moradias precárias.

Segundo a própria FASC, em 2022 Porto Alegre possuía 202 mil pessoas pobres, das quais 37,2% eram miseráveis, vivendo abaixo da linha da pobreza. Segundo um estudo do Serviço Geológico do Brasil – SGB, entre 2012 e 2022, aumentou em 525% o número de pessoas em áreas de “risco muito alto” em Porto Alegre. O número total de habitantes em setores de risco cresceu 90% no município e chegou a 84 mil (BELLETTINI et al., 2023).

Essas questões se relacionam com o risco de termos a chegada de mais pessoas para viver em situação de rua, pois temos políticas que “empurram” para a rua, que perpetuam e pioram a situação de rua com vetores muitas vezes mais fortes do que as políticas que tentam reduzir a situação. Se a isso associarmos a tendência cada vez maior de desastres naturais com as mudanças climáticas, veremos que a situação é urgente e complexa.

IHU – A construção de políticas públicas para atenção e redução da população em situação de rua passa essencialmente pelo quê?

Maria Gabriela Godoy – Desde a década de 2000, há estudos e experiências que defendem o Princípio da Continuidade como política de moradia que deve ser estável e permanente para resolver a situação de rua. E há também estudos mais recentes que defendem uma tríade de ações embasadas na garantia de moradia permanente + geração de trabalho e renda ou garantia de benefícios de renda + acompanhamento continuado e regular de equipes de saúde e assistência social para esses grupos populacionais. Tanto é que em países ricos do Norte Global está em voga o projeto Housing First (Moradia Primeiro), que teve uma experiência-piloto em Porto Alegre de pequena monta, mas que foi transitória, o que está na contramão dessa proposta.

Monika Dowbor – Outro aspecto que essas políticas incorporam é a importância de vínculos afetivos e de confiança entre os/as trabalhadores/as dos serviços junto com a PSR para que as ações sejam efetivas. Em Porto Alegre, esse princípio é negado quando a pessoa em situação de rua acessa um benefício de hospedagem social, pois, com isso, deixa de ser atendida pela rede de serviços exclusiva da PSR. Além do serviço, perdem-se os vínculos e afetos.

Outro elemento importante na nova onda de políticas é a coparticipação do indivíduo na definição das suas necessidades de cuidados. Assim funciona o Moradia Primeiro nos países europeus. Ao resgatar a autonomia e a voz da PSR nessas definições, tanto na escolha dos serviços quanto na sua implementação, podemos nos aproximar daquilo que se chama a efetividade dos direitos humanos, isto é, quando a própria pessoa reconhece a sua vivência como efetiva.

IHU – Como avaliam esses seis primeiros meses da gestão federal em termos de políticas de assistência social? Quais os maiores avanços e quais os limites que já se revelam?

Monika Dowbor – Ainda é cedo para dizer, mas já observamos uma abertura importante para o diálogo, a participação e a inclusão de lideranças de movimentos sociais na elaboração de políticas. Houve a retomada de instâncias participativas como o Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento da Política Nacional para População em Situação de Rua.

Pelo Decreto 11.341/2023, foi constituída a Diretoria de Promoção dos Direitos da População em Situação de Rua no Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, ao qual cabe atuar na elaboração dos planos, programas e projetos relacionados à Política Nacional para a População em Situação de Rua e na articulação intersetorial, bem como assegurar o cumprimento dos princípios, das diretrizes e dos objetivos estabelecidos na Política Nacional.

Em 12 de maio ocorreu a 1ª Conferência Livre Nacional de Saúde com a População em Situação de Rua – CLNSPopRua que debateu, na capital paulista, as diretrizes para políticas de saúde voltadas a esse grupo a serem levadas à 17ª Conferência Nacional de Saúde. Essa mobilização e institucionalização constituem importantes condições para a visibilização das pautas da PSR e sua inclusão nas políticas, programas e dotações orçamentárias.

IHU – Desejam acrescentar algo?

Monika Dowbor – O Brasil já foi considerado um grande celeiro de inovações democráticas com a instituição de conselhos, conferências e orçamento participativo, que envolvem centenas de milhares de cidadãos e cidadãs no debate e na deliberação sobre as políticas públicas. Essa tendência participacionista também se traduziu nas políticas para a PSR com a instalação do Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento no nível nacional e seu fomento em dois outros níveis federativos.

O Brasil também tem a PSR organizada em movimentos e coletivos e que fazem parte dessa arquitetura de participação. Essa riqueza de instituições e ação coletiva precisa ser fomentada e valorizada, pois traz a potência das vozes dos grupos vulnerabilizados que historicamente são caladas no país. Vale também ressaltar que a participação da PSR no Brasil se constitui como uma raridade em comparação a outros países, onde as organizações em que trabalham em prol da PSR são protagonistas nas arenas públicas.

Referências:

BELLETTINI et al. 2023. Setorização de áreas de risco geológico: Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Disponível aqui.

FASC/UFRGS. Cadastro e mundo da população adulta em situação de rua de Porto Alegre/RS. Relatório final. Porto Alegre, dezembro de 2016. Disponível aqui.

GAMEIRO, N. Cuidado e acesso à saúde da população em situação de rua foi tema de debate. Fiocruz, Brasília, 2021. Disponível aqui.

NATALINO, M.A.C. Estimativa da população em situação de rua no Brasil – 2012 a 2022. Rio de Janeiro: IPEA, 2020 (Nota Técnica n. 103).

 

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