Escândalos de corrupção. Gestão nebulosa. Ameaças ao Congresso e STF. Aos poucos, a sociedade tem uma menos idealizada e mais real dos militares. Momento deve ser aproveitado para reafirmar o controle civil e garantir transparência
por Glauco Faria, em Outras Palavras
Ainda não se sabe qual o teor da delação do ex-ajudante de ordens de Jair Bolsonaro, o tentente-coronel Mauro Cid, e o grau de comprometimento que seu depoimento pode trazer para alguns generais e oficiais das Forças Armadas tanto no caso das joias como também na preparação para a tentativa de golpe após os resultados das eleições presidenciais de 2022. A Operação Perfídia trouxe ainda um outro dano à imagem de um dos principais nomes do governo anterior, o general Walter Braga Netto, que teve o sigilo telefônico quebrado pela Justiça por conta de uma investigação a respeito de possíveis fraudes no processo de contratação de coletes balísticos.
Os dois casos abalam uma imagem que os militares sempre tentaram cultivar no imaginário popular, a de que, diferentemente dos políticos e civis de uma forma geral, a instituição estaria livre da corrupção, uma praga nacional, zelando sempre pelo interesse público. E podem ainda escancarar a falta de compromisso de parte do generalato com princípios básicos de qualquer regime democrático, como o simples respeito ao resultado eleitoral.
A maior parte dos golpes de Estado no mundo costuma contar com um sentimento antipolítica muito forte em meio à sociedade. Afinal, é necessário ter apoio de segmentos sociais não só para apear quem pode ser tido como adversário do poder, mas também para permanecer nele. E, em geral, desmoralizar o oponente por meio do exaurido lema da luta contra corrupção é uma das principais armas de quem quer usurpar o poder de modo ilegal.
No Brasil, foi assim que o udenismo combateu o segundo governo de Vargas, sem conseguir êxito por conta do suicídio do presidente. Mais adiante, o mesmo segmento se aliou aos integrantes das Forças Armadas – que já ensaiavam o golpe contra o governo getulista – para derrubar João Goulart em 1964, agora investindo pesadamente também em um anticomunismo radical, o que o unia mais ao ideário da caserna. Uma vez no governo, os militares buscaram passar durante boa parte do tempo uma imagem de busca pelo conhecimento técnico para governar, como se fossem quase apolíticos, apoiados em gestores tecnocratas civis para gerir a área econômica.
Em 2018, todos estes elementos que forjaram parte da história do autoritarismo e do golpismo no Brasil estavam presentes nas eleições presidenciais: o anticomunismo, o “técnico” que cuidaria da economia (sempre bem apoiado por parte da mídia tradicional e pelo chamado mercado) e também pelo discurso anticorrupção. Tudo embalado num discurso contrário à política e aos políticos, ainda que capitaneado por alguém que viveu quase três décadas praticamente inerte na Câmara dos Deputados.
Se os nomes dos partidos e das figuras que os representavam mudou nesta linha do tempo, parte dos protagonistas continuou vestindo farda. A falta de uma Justiça de Transição e a estrutura autoritária da sociedade brasileira fez com que durante muito tempo este militares saíssem incólumes, sem responder pelas suas ações como aconteceu nos países vizinhos. Isso os protegeu também de arcarem com os custos simbólicos, já que, para boa parte da população, os integrantes das Forças, uma vez no poder, não teriam praticado atos de corrupção como os presidentes civis.
Nada mais falso. É evidente que qualquer ditadura que se preze não só não tem transparência nos atos administrativos como pratica a censura e controla, por diversos meios, a possível eclosão de escândalos e divulgação de malfeitos.
Como lembrou o professor de História Pedro Henrique Pedreira de Campos, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Pedro Campos, nesta entrevista, “a ditadura militar foi um celeiro de corrupção”. Também autor do livro Estranhas Catedrais (Eduff), lançado em 2014, houve então “um ambiente extremamente propício de escalada dos interesses empresariais e privados sobre o Estado brasileiro, tendo em vista o cerceamento dos mecanismos de fiscalização e o aparelhamento do Estado por agentes do setor empresarial privado”.
“Os militares se locupletaram nesse processo. Eles se favoreceram muito na atuação empresarial naqueles anos. Era uma ditadura empresarial-militar e eles ganharam postos nas empresas e há várias denúncias de que eles recebiam propinas”, pontua.
Longe e perto dos holofotes
Após o fim da ditadura, os militares continuaram atuando no cenário político, mas de forma muito mais discreta, em especial para defender a história da própria instituição e, principalmente, seus generais. Nem mesmo os ex-políticos que haviam feito parte do regime defendiam publicamente as supostas virtudes do regime que se encerrava. A ausência na transição do trabalho de memória e justiça fez com que, décadas depois, o panorama mudasse e o regime autoritário passou a ser exaltado por parte da classe política e, obviamente, pelos integrantes das Forças Armadas abertamente. Mesmo a tortura, antes negada ou tratada dentro da seara de fatos isolados, agora era assumida orgulhosamente por muitos, com torturadores sendo elogiados inclusive por aquele que viria a se eleger presidente em 2018.
Mas é a eleição de 2018 que traz a farda de novo ao centro do palco. Relatório elaborado em 2021 pelo Tribunal de Contas da União (TCU) apontou que na gestão Bolsonaro o governo federal mais que dobrou o número de militares em cargos antes ocupados por civis. No último ano do governo Temer, 2.765 militares ocupavam cargos do governo federal e, em 2021, chegavam a 6.175.
Se havia ocupação na máquina do Estado, isto era ainda mais pronunciado em postos-chave da administração do Executivo. Em fevereiro de 2020, os militares controlavam oito dos 22 ministérios, proporção maior que a de alguns presidentes da ditadura.
No Planalto, o círculo de confiança do presidente era verde-oliva. Um levantamento feito pelo The Intercept e divulgado em agosto mostra ainda que Bolsonaro trouxe nada menos que 79 alunos da sua turma, graduados no mesmo ano ou que conviveram com ele nos quatro anos de curso na Academia Militar das Agulhas Negras (Aman), para seu governo. No rol, nomes como o do próprio Braga Neto, e o de Luiz Eduardo Ramos, ex-ministro da Casa Civil, das Secretarias Geral e de Governo, um dos articuladores da criação do malfadado orçamento secreto, talvez o mais emblemático retrocesso institucional ocorrido durante aquela gestão.
Com tal exposição e graças a mecanismos de transparência, fiscalização e controle que foram construídos e consolidados após o fim da ditadura, os militares passaram a se ver envolvidos de forma direta ou indireta em diversos casos de denúncias de corrupção ou similares, que envolviam desde episódios de negociações de compra de vacina com preços 1.000% maiores do que os anunciados pelo fabricante, uso irregular de recursos voltados ao combate da pandemia e compra superfaturada de Viagra. Agora, sem possibilidade de o Executivo barrar investigações e com a tentativa de golpe do 8 de janeiro sendo apurada, mais nomes vêm à tona.
Transparência e isonomia
Se o envolvimento de militares no governo Bolsonaro traz para a sociedade uma imagem menos idealizada e mais real de que disciplina, hierarquia e uma dita tradição não impedem corrupção, o verdadeiro remédio que a combate precisa ser também aplicado à caserna. E aqui não se trata especificamente de punição, também necessária quando prevista em lei, e sim de prevenção.
Relatório produzido pelo grupo de transição do atual governo responsabilizou as Forças Armadas pelo que considerou um verdadeiro apagão da transparência no governo federal durante a gestão Bolsonaro, com casos reiterados de descumprimento da Lei de Acesso à Informação. De acordo com o documento, houve uma “forte tendência de sempre ou quase sempre se considerar ‘pessoais’ informações sobre integrantes do Exército que não seriam informações pessoais para servidores civis”. Isso envolve o impedimento de se acessar, por exemplo, notas fiscais de compras públicas, documentos de pregões eletrônicos, empresas que firmaram contratos com a Força, e negativa de acesso à lista de passageiros e a custo de voos oficiais feitos pela Aeronáutica.
Por isso, mas não só, o controle civil sobre as Forças Armadas, como preconiza a Constituição, é essencial. Para garantir tratamento isonômico em relação ao resto da estrutura do Estado e garantir transparência nos atos. E, ainda mais fundamental, para não ter a democracia formal sob ameaça constante de um poder armado.
Ainda hoje existe uma tolerância muito grande à intromissão fardada em assuntos que não seriam do seu escopo. A interferência na vida pública talvez tenha tido uma de suas ilustrações mais vivas em um episódio de julho de 2021, da CPI da Covid, quando o então presidente do colegiado, senador Omar Aziz (PSD-AM), afirmou que “os bons das Forças Armadas devem estar muito envergonhados com algumas pessoas que hoje estão na mídia, porque fazia muito tempo, fazia muitos anos que o Brasil não via membros do lado podre das Forças Armadas envolvidos com falcatrua dentro do governo”.
Em seguida, o Ministério da Defesa chefiado por Braga Netto e os comandantes das Forças Armadas divulgaram nota oficial apontando que Aziz teria dado declarações “desrespeitando as Forcas Amadas e generalizando esquemas de corrupção”. “As Forças Armadas não aceitarão qualquer ataque leviano às instituições que defendem a democracia e a liberdade do povo brasileiro”, dizia ainda o documento.
Mesmo com Aziz destacando que havia “bons” e separando uma “banda podre”, a reação institucional foi desproporcional e em tom intimidatório. O presidente da CPI cobrou uma posição do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, que no mesmo dia da nota prestou homenagem às Forças Armadas, sem citar o episódio. Aziz reagiu: “Pode fazer 50 notas contra mim, só não me intimidem. Porque quando estão me intimidando, Vossa Excelência não falou isso, estão intimidando essa Casa aqui também. Vossa Excelência não se referiu à intimidação que foi feita pela nota das Forças Armadas.”
Generais também ameaçaram outras instituições, como à época em que o general Villas-Bôas, então comandante do Exército mandou recado ao Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o julgamento da prisão após condenação em segunda instância. O fato de, em ambos os casos, a resposta ter sido tímida ou nula do ponto de vista institucional, evidencia o tamanho da ingerência militar e a dimensão do problema que o Brasil ainda não resolveu.
A desconstrução da imagem de um poder infalível que a participação da caserna no governo Bolsonaro trouxe para muitos é positiva, apontando que militares, em especial os de alta patente, não podem estar acima da lei. A mudança de parte da opinião pública pode ser uma oportunidade para iniciar, ao menos, um outro tipo de cenário em que cumpra simplesmente o que se prevê na Constituição, onde o papel das Forças é desenhado. Sem isso, a tutela que nasceu já na construção da própria República seguirá como fardo que impede a construção de uma real democracia.
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Foto: Bruno Spada/Câmara dos Deputados