MP precisa liderar investigações sobre crimes de policiais, afirma Human Rights Watch

Organização internacional defende que procuradores conduzam investigações, colham depoimentos e possibilitem que as vítimas tenham acesso aos autos do processo

A Ponte

A polícia matou 6.430 pessoas no Brasil no último ano, o que dá uma média de 17,6 mortes por dia, segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Os casos são investigados na mesma logística de inquéritos comuns: a Polícia Civil investiga os próprios agentes e o Ministério Público decide se avança ou não na penalização dos envolvidos. O sistema não tem se mostrado eficiente, diz a Human Rights Watch. Para a organização internacional é preciso que os procuradores coordenem esse tipo de investigação, atuando nos interrogatórios e perícias, por exemplo.

“O que nós temos visto na Human Rights Watch e temos documentado durante muito anos, é que as investigações de casos de mortes causadas pela polícia frequentemente têm falhas muito graves”, diz César Muñoz, diretor-adjunto da organização internacional.

Dados do estudo Letalidade Policial no Rio de Janeiro e Respostas do Ministério Público, elaborado pelo Fórum Justiça, endossam essa visão. No ano de 2021, entre as mortes cometidas por policiais no estado do Rio de Janeiro, 61% não foram investigadas.

A pesquisa analisou 4.527 casos no período de 2011 a 2021. Do total, 39% resultaram em denúncias feitas pelo Ministério Público. Os demais casos foram arquivados porque foi reconhecida legítima defesa ou por falta de provas.

Em março, o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) criou um grupo de trabalho para elaborar uma proposta de resolução para dar diretrizes ao trabalho dos procuradores em casos de morte ou violência praticadas por policiais. Uma minuta do texto já foi esboçada, segundo o procurador Antônio Henrique Graciano Suxberger, que coordena o GT.

O trabalho, conta Suxberger, tem levado em conta recomendações de organizações sociais e também de tratados internacionais de direitos humanos, como o Protocolo de Minnesota — que reúne um conjunto de diretrizes para investigações de mortes potencialmente suspeitas, entre elas, a garantia de que não haja influência institucional na apuração de crimes.

A resolução em construção irá, se aprovada, atualizar outra diretriz em vigor desde 2015 (a nº 129). O texto em vigor diz que em casos de morte decorrente de intervenção policial, cabe à autoridade policial o comparecimento no local dos fatos e que seja requisitada perícia e exame necroscópico.

Ainda conforme com a resolução de 2015, o local dos fatos tem de ser periciado com ou sem a presença do cadáver. Outro ponto é que o inquérito policial contenha informações sobre registro de comunicação, imagens e movimentação de viaturas envolvidas; que as armas dos agentes envolvidos sejam recolhidas; que haja no boletim de ocorrência uma denominação específica para esse tipo de crime.

Sobre o trabalho específico do MP nesses casos, a resolução aponta que é preciso que promotores estejam atentos a possíveis fraudes processuais no inquérito e que adotem métodos investigativos próprios, sem deixar claro de que forma isso poderia ser feito.

Mesmo recomendando que o MP tenha um setor capaz de concentrar dados sobre esses casos, a determinação ainda designa a força policial no papel de apurar os casos, deixando o MP em segundo plano.

Cobrando dos procuradores mais protagonismo nas investigações, a Human Rights Watch elaborou uma carta tendo como destinatário o atual Procurador-Geral de Justiça Augusto Aras e também o CNMP. O documento pede que o Ministério Público atue como o órgão independente que é e conduza investigações a fim de garantir o efetivo andamento dos inquéritos.

“O nosso pedido é que os promotores façam as investigações, que liderem as investigações. Por exemplo, é muito difícil para muitas testemunhas falar na delegacia, porque não confiam na polícia, temem represálias”, defende Muñoz.

Uma das sugestões é que o órgão capacite equipes para atuar especialmente nesses casos e que elas tenham peritos próprios, dando autonomia para que de fato o MP consiga conduzir as investigações no lugar da polícia.

Essa separação, defende Muñoz, possibilitará investigações mais aprofundadas e independentes, o que não ocorre na totalidade dos inquéritos hoje em dia, argumenta o diretor-adjunto.

“Temos casos onde as roupas da vítima não foram preservadas que é importante para determinar a distância do disparo, outros em que onde não houve perícia no local, onde o lugar do tiroteio não foi preservado. Temos inquéritos muito pobres onde, por exemplo, os únicos depoimentos que você tem são os da própria polícia”, explica.

O grande problema disso, argumenta, é que o impacto de investigações deficitárias reflete no arquivamento de casos que contribuem para a sensação da população afetada de impunidade e injustiça. “É um problema porque você não pode determinar se houve abusos ou não com base em investigações que não são completas. Essas investigações são feitas pela Polícia Civil, então, temos a polícia investigando a si mesma.”.

A carta da Human Right Watch recomenda que os promotores visitem os locais de crimes imediatamente após os fatos. A organização pede também que o MP colha os depoimentos de testemunhas e vítimas em local seguro e privado.

Em 2019, a resolução em vigor já tinha sido atualizada, incluindo a necessidade, ainda na fase de investigação, de que promotores escutem testemunhas e vítimas e recebam possíveis sugestões, informações, provas e alegações que devem ser apuradas.

Para a nova resolução, a Human Right Watch sugere ainda que seja fornecida à população mecanismos acessíveis de denúncia de violações cometidas por forças policiais e também que os promotores consigam atuar em regime de plantão a fim de responder em tempo real às notificações — em especial nos casos de operações em andamento.

Na quarta-feira (13/9), o GT do CNMP se reuniu com organizações sociais, ONGs e representantes do Ministério Público da União (MPU) para tratar da resolução. Segundo Suxberger, que coordena o trabalho, as recomendações da HRW serão consideradas para a redação final, que deve ser finalizada em pelo menos 30 dias.

“Uma atuação especializada, que é o que está na preocupação maior do documento de Human Rights Watch, isso deve ser contemplado no texto”, afirma o procurador.
Grupos especiais

Depois de quase cinco anos de pressão de movimentos sociais, o Ministério Público do Estado de São Paulo (MPSP) criou um grupo para fiscalizar a atuação das policiais. O Grupo de Atuação Especial da Segurança Pública e Controle Externo da Atividade Policial (Gaesp) tem como objetivo monitorar, planejar e propor políticas de segurança pública.

O modelo é considerado positivo pelo diretor da Human Right Watch, César Muñoz, porque os promotores mais especializados podem propor com maior celeridade e assertividade ações civis e trabalhar em conjunto com as polícias para elaborar protocolos de atuação.

“Esses grupos são muito importantes, nós somos totalmente a favor, mas ele não vai resolver todos os problemas. Eles não dão conta do volume de casos de mortes causadas pela polícia, essa é a realidade. Só no Rio de Janeiro você tem mais de 1 mil mortes por ano, são muitos casos para um grupo especializado atuar sozinho”, pontua.

Ele defende a atuação dos grupos em casos emblemáticos, como a Operação Escudo, que levou cerca de 600 policiais para a Baixada Santista, no litoral paulista.

“A letalidade não é desejável”, declarou o procurador-geral de Justiça de São Paulo, Mario Sarrubbo, à TV Globo, no dia 15 de agosto. A fala ocorreu em meio a questionamentos sobre a ação do Ministério Público diante das 16 mortes registradas até a data em intervenções policiais da Operação Escudo.

No caso da Operação Escudo, o procurador-geral designou três procuradores para analisar a atuação dos policiais ao lado do Gaesp quatro dias após o início da operação e quando as violações já eram denunciadas por moradores das regiões sitiadas.

Para Muñoz, além das revisões de atribuição do MP, é necessária uma atuação conjunta das forças de segurança e que casos de violência policial sejam punidos.

“O Brasil é um país complexo, no sentido de ter vários órgãos que têm competências (governo federal, estadual) e precisa de um plano de ação coletivo. É necessário sentar e discutir como fazer uma polícia mais eficiente que proteja os cidadãos, que respeite a lei. Quando tem abusos policiais, isso tem que ser investigado, porque se não se cria um clima de impunidade que prejudica todos os policiais que querem fazer bem as coisas”, defende Muñoz.

“Precisamos de um plano nacional de segurança pública que inclua a redução da letalidade com metas específicas e um plano de ação com medidas. Uma medida fundamental para nós é que o Ministério Público investigue os casos. Isso é muito importante, porque se você não pune, os abusos vão continuar”, completa.

Imagem: Human Right Watch elaborou carta com recomendações para nova resolução do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP)| Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

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