No dia 8 de janeiro de 2023, o Brasil assistiu consternado a uma série de atos violentos e antidemocráticos que visavam desestabilizar o sistema democrático do país. Uma multidão de extremistas, em uma tentativa audaciosa, instigou um golpe contra o governo Lula, promovendo invasões e depredações do patrimônio público, invadindo a sede dos três poderes. Diante desse cenário alarmante, a Procuradoria-Geral da República (PGR) não tardou em enviar ao Supremo Tribunal Federal (STF) denúncias contra mais de 200 pessoas implicadas nesses atos.
A competência do STF para julgar os atos, no entanto, especialmente no que tange aos réus comuns, tornou-se um ponto de intensa discussão jurídica. Inclusive, o ministro André Mendonça, na tarde de quinta-feira (14/9), fez ecoar suas dúvidas sobre a competência do Supremo nesse contexto específico. Para esclarecer essa questão, é imperativo analisar detalhadamente a legislação vigente e os princípios que norteiam o sistema judiciário brasileiro.
Primeiramente, é vital destacar a competência originária do STF para instaurar inquéritos em casos de infrações penais cometidas em suas dependências, conforme estabelece o artigo 43 do seu Regimento Interno. O dispositivo confere ao presidente do STF a prerrogativa de instaurar inquérito quando a infração envolver “autoridade ou pessoa sujeita à sua jurisdição”, uma norma diretamente aplicável aos atos cometidos nas dependências do STF durante os eventos de 8 de janeiro.
A PGR, com uma visão aguçada da gravidade dos acontecimentos, delineou uma denúncia robusta e detalhada, segmentando as responsabilidades em quatro categorias distintas e que embasou a abertura de uma série de inquéritos: os financiadores dos atos antidemocráticos, que contribuíram material e financeiramente para a tentativa de golpe; os participantes por instigação, que de alguma forma incentivaram a prática dos atos; os autores intelectuais e executores, que ingressaram em área proibida e praticaram atos de vandalismo e destruição do patrimônio público; e as autoridades do estado responsáveis por omissão.
Esta denúncia minuciosa sublinha a complexidade dos atos e reforça a necessidade de um julgamento conduzido pelo STF. Além dos cidadãos comuns que participaram ativamente nos atos de depredação, o rol de investigados em razão das distintas categorias apresentadas pela PGR se estende a figuras notáveis, incluindo autoridades militares e parlamentares, que supostamente desempenharam papéis cruciais, seja na execução direta ou como mentores intelectuais dos delitos.
Entre os nomes citados nas investigações estão os parlamentares André Fernandes (PL-CE – Inq 4.919), Sílvia Waiãpi (PL-AP – Inq 4.918) e Clarissa Tércio (PP-PE – Inq 4.917), que agora encontram-se sob escrutínio rigoroso por suas alegadas participações nos eventos perturbadores que marcaram aquele dia.
A Constituição, em seu artigo 102, estabelece que o STF é o órgão competente para julgar membros do Congresso que possuem foro por prerrogativa de função. O dispositivo reitera a função do STF como guardião da Constituição, sendo responsável por julgar infrações penais comuns cometidas por altas autoridades do país, incluindo membros do Congresso implicados nos atos de 8 de janeiro.
No entanto, a competência do STF estende-se além do julgamento de autoridades com foro por prerrogativa de função. Os artigos 76 e 77 do Código de Processo Penal estabelecem que a competência do STF neste caso deve ser determinada pelos princípios da conexão e continência, atraindo para sua jurisdição réus comuns que estiveram envolvidos em infrações simultâneas ou em concurso com autoridades com foro privilegiado. A regra garante um julgamento unificado e coerente, evitando a dispersão do processo por várias instâncias judiciais e garantindo que todos os envolvidos sejam julgados equitativamente.
Ademais, a Súmula 704 da corte buscou pacificar a questão, afirmando que não viola as garantias do juiz natural, da ampla defesa e do devido processo legal a atração por continência ou conexão do processo do corréu ao foro por prerrogativa de função de um dos denunciados. Eventual separação dos processos e consequente declinação do julgamento a outra instância deve ser analisada pelo Supremo Tribunal, com base no artigo 80 do CPP. Tratando-se de delitos praticados em concurso de agente, não havendo motivo relevante, o desmembramento não se justifica. — Inq 2.688, relatora ministra Cármen Lúcia, red.p/ o ac. ministro Gilmar Mendes, 2ª T, j. 2-12-2014, DJE 29 de 12-2-2015.
Finalmente, é crucial destacar que o STF possui competência para julgar até mesmo crimes militares relacionados aos atos de 8 de janeiro. Conforme destacado pelo ministro Celso de Mello em importante precedente da corte, “O foro especial da Justiça Militar da União não existe para os crimes dos militares, mas, sim, para os delitos militares, tout court. E o crime militar, comissível por agente militar ou, até mesmo, por civil, só existe quando o autor procede e atua nas circunstâncias taxativamente referidas pelo artigo 9º do Código Penal Militar, que prevê a possibilidade jurídica de configuração de delito castrense eventualmente praticado por civil, mesmo em tempo de paz”. Celso de Mello (HC 106.171, 2ª Turma, 1º de março de 2011).
Inexiste, portanto, competência da Justiça Militar da União para processar e julgar militares das Forças Armadas ou dos Estados pela prática dos crimes ocorridos em 08 de janeiro, notadamente os crimes previstos nos artigos 2º, 3º, 5º e 6º (atos terroristas, inclusive preparatórios) da Lei 13.260/16, e nos artigos 147 (ameaça), 147-A, §1º, III, (perseguição), 163 (dano), artigo 286 (incitação ao crime), artigo 250, §1 º, inciso I, alínea ”b” (incêndio majorado), 288, parágrafo único (associação criminosa armada), 359-L (abolição violenta do Estado Democrático de Direito), 359-M (golpe de Estado), todos do Código Penal, cujos inquéritos tramitam nesse Supremo Tribunal Federal a pedido da Procuradoria Geral da República.
Torna-se evidente que o STF possui, sim, competência para julgar todos os envolvidos nos atos de 8 de janeiro, garantindo que os responsáveis sejam devidamente punidos.
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Ministros André Mendonça e Alexandre de Moraes no julgamento do 8 de Janeiro (Rosinei Coutinho/STF)