Em disputa contra a comunidade Rio Preto, empresa Lagoa Dourada integra grupo empresarial que inclui investidores da rede de fast-food Subway e diretores de multinacional espanhola; alvos de pistoleiros, quilombolas acusam empresa de destruir cercas e roçados
Por Carolina Bataier e Tonsk Fialho, em De Olho nos Ruralistas
“Nós tava ali dentro conversando, tocaram fogo aqui, ó”. No vídeo, um homem aponta para o telhado de palha, onde se veem as marcas deixadas pelas chamas. “Nós apagamos a tempo, antes de queimar mais”. O ataque ocorreu dentro do Território Quilombola Rio Preto, em Lagoa do Tocantins (TO), por volta das 19h do dia 24 de setembro. Após atear fogo à moradia, os criminosos fugiram. Um dia antes, no sábado, 23, os moradores do quilombo escutaram tiros vindos da mata.
O medo é uma constante para a comunidade. Desde o início de 2023, ameaças e agressões de pistoleiros tornaram-se parte da rotina. A origem do conflito é uma disputa territorial envolvendo políticos locais e empresários paranaenses, que disputam a posse de duas parcelas do antigo loteamento Caracol. Parte dessa área, formada pelos lotes 172 e 173, é reivindicada como território tradicional quilombola e aguarda a conclusão do processo de demarcação pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).
Um dos acusados é Cristiano Rodrigues de Sousa, proprietário do lote 172 e candidato a vice-prefeito de Lagoa do Tocantins em 2020, pelo MDB. Segundo boletim de ocorrência, ele teria arrancado a cerca do terreno de um morador. O imóvel aparece em sua declaração de bens à Justiça Eleitoral sob o nome Fazenda Conquista e está avaliado em R$ 500 mil.
O conflito mais intenso, no entanto, ocorre com a empresa Lagoa Dourada Participações e Serviços S/C, dona de 11.649,33 hectares no município. A sociedade é encabeçada pelo engenheiro civil Alcir Faustino Marques, que vive em Goiás, e pela advogada paranaense Cristina Maria Ramalho, sócia em outras duas empresas que compõem o capital social da Lagoa Dourada.
De Olho nos Ruralistas investigou o histórico fundiário e societário do grupo e identificou a repetição de um modus operandi. As empresas compram fazendas em áreas de litígio, geralmente ocupadas por posseiros e comunidades tradicionais. Enquanto tentam assegurar a posse da terra na Justiça, os CNPJs são fatiados e suas cotas são vendidas para empresários de Curitiba — com quem Cristina e seu ex-marido, Sebastião Antunes Furtado, já falecido, mantinham relações econômicas e advocatícias.
É o caso da comunidade Rio Preto: em 2015, a Lagoa Dourada comprou a Fazenda Brasil, uma porção de 1.469 hectares no loteamento Caracol, que engloba o lote 173. A área já era habitada pelos quilombolas desde antes da venda das terras. “Até que se resolva o mérito, que se discuta qual é a delimitação do quilombo, os lotes 172 e 173 não podem passar por nenhum tipo de esbulho”, explica a defensora pública Téssia Gomes Carneiro, do Núcleo da Defensoria Pública Agrária do Estado do Tocantins.
Apesar do impedimento legal, funcionários da empresa têm ignorado a determinação. Em imagens divulgadas nas redes sociais, um trator faz a aragem da terra enquanto alguns homens observam o trabalho. “O pau torando”, diz um deles, em tom de comemoração. “Que terra maravilhosa! Lote 173, próximo à divisa”.
Os tratores destruíram roçados e foram usados no carregamento de galhos para fechar as estradas de acesso ao município, deixando os quilombolas isolados. Segundo os moradores da comunidade, a violência aumentou depois que o Tribunal de Justiça do Tocantins revogou, no dia 8 de setembro, um pedido de reintegração de posse movido pelos proprietários da Lagoa Dourada.
Confira no mapa abaixo a região do conflito:
CERCAS DESTRUÍDAS, ESTRADAS BLOQUEADAS
Fora do quilombo, posseiros de Lagoa do Tocantins relatam problemas similares envolvendo a empresa Lagoa Dourada. “Eles quebram porteira, incendeiam os ranchos dos posseiros”, conta Valdomiro de Miranda, integrante da Associação Renascer para o Mundo Melhor (Arpom), grupo que presta assistência jurídica a pequenos agricultores. “O que tiver, a cerca, o arame, eles levam embora”.
Segundo Valdomiro, tratores da Fazenda Lagoa Dourada destruíram cerca de 3 mil pés de mandioca, que seriam vendidos para supermercados da região. O circuito de comércio local constitui a principal fonte de renda da comunidade.
Em um documento elaborado pela Arpom, os agricultores afirmam que a empresa “vem agindo sistematicamente contra os trabalhadores (posseiros), com truculência e violência, inserindo pessoas armadas, fazendo ameaças contra a vida dos agricultores, colocando tronco de árvores nas estradas para impedir a passagem das famílias”. O relato é idêntico ao dos quilombolas de Rio Preto.
Procurado pela reportagem, o advogado da Lagoa Dourada diz que as acusações são mentirosas e questiona a versão dos posseiros:
— (…) Pretensos invasores recentemente se reuniram nesta associação denominada Arpom, a qual foi constituída em 2009 na cidade de Palmas (TO), e recentemente teve sua sede transferida para o município de Lagoa do Tocantins, a fim de justificar algum apelo social e narrativa de “pequenos posseiros” e “vítimas” de agressões, quando em verdade são eles próprios invasores e grileiros de terras alheias.
Na carta, a empresa também questiona a identidade quilombola dos moradores de Rio Preto. Leia aqui a resposta na íntegra.
CORRETOR CURITIBANO ATUOU EM CONFLITO NA GLEBA TAUÁ
Apresentado como “encarregado” da empresa Lagoa Dourada, o corretor imobiliário Pedro Amaro Gomes é apontado pelas comunidades como principal responsável pelas intimidações, que se estendem a outros municípios da região. Ao todo, ele possui cinco processos de posseiros contra si, movidos em três comarcas do Tribunal de Justiça do Tocantins.
Antes de se tornar encarregado de fazendas no Tocantins, Amaro trabalhava no setor gráfico em Curitiba, quando conheceu o advogado Sebastião Antunes Furtado, já falecido. Sebastião mantinha uma união estável com Cristina Ramalho — sócia da Lagoa Dourada — e era dono da editora Gênesis, para quem Amaro prestava serviços de impressão desde 1992. Natural de Lages (SC), o advogado ocupava a cadeira 98 da Academia Brasileira de Direito do Trabalho, área em que se tornou referência nacional, representando clientes como a montadora Renault, a madeireira Madecal e a transportadora Binotto.
Em 2012, uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) conduzida pelos vereadores de Curitiba revelou o envolvimento de Amaro em um esquema de corrupção. A Idealgraf, sua antiga empresa, teria recebido recursos da Câmara para a impressão de materiais que nunca existiram. Durante o processo judicial, Amaro contou com Cristina e Sebastião como seus advogados. Começava aí uma parceria que se estende até os dias de hoje e atravessou as fronteiras estaduais.
Naquele mesmo ano, em 2012, Pedro Amaro se mudou para Barra do Ouro (TO), onde passou a atuar como encarregado de fazendas ligadas ao grupo Binotto, também cliente de Sebastião e Cristina. Segundo o depoimento de um ex-sócio do casal, que consta em um processo judicial relativo à dissolução da parceria entre os advogados, a relação do casal com o grupo “extrapolava as atividades advocatícias” e gerou desvios de condutas éticas na antiga sociedade.
Em maio de 2021, De Olho nos Ruralistas noticiou o caso de agricultores da gleba Tauá, em Barra do Ouro, que sofriam com a destruição de roçados, ameaças e derrubadas de cercas. Entre os agressores, foram citados Amaro e o líder do clã, o catarinense Emílio Binotto. As propriedades administradas por Pedro Amaro na Gleba Tauá foram registradas em nome da empresa Rio do Ouro Agroflorestal, que tinha como advogados Sebastião e Cristina.
NEGÓCIOS NO TOCANTINS ENVOLVEM DIRETORES DE MULTINACIONAL ESPANHOLA
Após defender os interesses do grupo catarinense na Gleba Tauá, o casal de advogados aplicou o método em outras regiões do Tocantins. Outra empresa do grupo, a Terra Limpa Agroflorestal, fundada em 2012, em Barra do Ouro, foi usada para registrar propriedades adquiridas em Goiatins, mais ao norte do estado.
De acordo com o depoimento do ex-sócio do casal, os advogados “captam dinheiro para aquisição de direitos sobre áreas litigiosas no Tocantins junto a clientes e ex-clientes do escritório”. Foi assim que Sebastião Furtado adquiriu a Fazenda Maceió (atual Terra Limpa), em Goiatins, junto com Giovanna Cino, para quem advogou durante o processo de divórcio.
As violências se repetem no local: de acordo com um processo movido pelos agricultores da Fazenda Laginha, parcialmente sobreposta à Fazenda Maceió, tratores da empresa derrubaram mais de 1.500 metros de cerca, incluindo partes de árvores e da reserva legal do imóvel. “Oportuno esclarecer que conforme depoimento prestado pelo Requerido Pedro Amaro, perante a autoridade Policial, o mesmo efetivou derrubada de cerca e vegetação”, afirma o documento. Além de assumir o ato, Pedro informou que estaria agindo a mando de Sebastião.
A Terra Limpa, antiga Fazenda Maceió, foi comprada em 2014 de Myriel Filho, pai de Myriel Neto, cantor gospel e assessor do senador Rodrigo Cunha (Podemos-AL) até setembro de 2023, quando deixou o gabinete do político para assumir a Fundação Municipal de Ação Cultural de Maceió. Como nos outros casos, além de comprar a fazenda sob disputa, Sebastião passou a advogar para Myriel Filho nas ações judiciais relativas à propriedade.
Atualmente, o quadro societário da Terra Limpa inclui, além de Cristina Ramalho, a Calábria Participações Societárias, dos irmãos Francisco Antonio Cino e Giovanna Cino, parceira de Sebastião na compra do imóvel. Francisco é diretor industrial da multinacional espanhola Roca, líder mundial no ramo de artigos para banheiros. Em 2015, o suíço Anton Patrick Lichtsteiner, ex-diretor financeiro da Roca no Brasil, chegou a comprar 4,77% de participação na Terra Limpa. Além da família Cino, compõem a sociedade as empresas Excelência Participações Societárias e Taboão Reflorestamento.
REDE DE SÓCIOS INCLUI INVESTIDORES DA REDE SUBWAY
Sócia da Terra Limpa, a Taboão Reflorestamento pertence à família Zandavalli Debone, herdeira do antigo Curtume Curitiba, empresa do ramo de confecção de artigos em couro, adquirida em 1969 pelas famílias Debone e Caron. Apesar da falência da empresa, o vínculo entre as duas famílias permanece até hoje: Danya Debone, sócia da Taboão Reflorestamento, é casada com Fausto José Caron, que ocupou o cargo de CEO do banco holandês ABN AMRO no Brasil entre 2018 e 2022.
Além do setor de reflorestamento, a família Debone é atualmente uma das principais investidoras da cadeia de fast food Subway. Danya coordenou a inauguração da primeira loja do grupo no Brasil e, ao lado dos irmãos Leandro e Gustavo Debone, é proprietária de diversas franquias da rede, incluindo a do aeroporto de Viracopos, em Campinas (SP).
Gustavo é administrador da Terra Limpa Agroflorestal desde 2015, enquanto Leandro assinou como testemunha uma alteração contratual da Lagoa Dourada em 2020. Da mesma forma, a Excelência Participações, de Gilmar Pertile, outro empresário curitibano, se repete no quadro societário das empresas de Goiatins e Lagoa do Tocantins. Fecha o quadro de sócios da Lagoa Dourada a Tritone Participações, da família Pedro Bom, dona de supermercados e empresas de logística no Paraná.
O grupo de investidores que irriga as ações de Pedro Amaro, Cristina e Sebastião nas diferentes regiões do Tocantins é bastante similar. Para possibilitar essas ações, eles contam com o apoio de Alcir Faustino Marques, que se apresenta como proprietário da Lagoa Dourada e é sócio da Terra Limpa Agroflorestal. Em 2001, a empresa de engenharia de Alcir fez parte de um esquema de superfaturamento de obras públicas envolvendo José Edmar Brito Miranda, então secretário estadual de Infraestrutura do Tocantins.
Pelo menos desde 1999, a empresa vem adquirindo terras do Loteamento Caracol, em Lagoa do Tocantins. À época, quem assinava as escrituras de compra em nome da Lagoa Dourada era Maurício Henrique Inglez Motta, que em 2003 foi assessor parlamentar do então deputado estadual pelo Tocantins Eduardo Machado. Anos depois, em 2010, Eduardo assumiria o cargo de vice-governador na chapa de Carlos Gaguim (União-TO).
QUILOMBOLAS APONTAM AUSÊNCIA DO PODER PÚBLICO
“Quem tinha condições, mudou, foi morar na cidade”, conta Maria*, agricultora e moradora da comunidade. “Teve uma evasão muito grande com essas ameaças. Só ficou quem não tem pra onde correr”. Segundo ela, as investidas violentas dificultaram o modo de vida dos agricultores. “A comunidade vive de caça, pesca, lavoura de subsistência. Agora, não tem acesso ao rio como tinha antes”, lamenta.
Os agricultores que permaneceram nos lotes lutam para manter o direito à terra onde seus antepassados habitaram, há mais de cem anos. De acordo com o Incra, o processo de reconhecimento do Território Quilombola Rio Preto ficou paralisado nos últimos seis anos e está sendo retomado.
Em agosto de 2023, uma equipe da Secretaria dos Povos Originários e Tradicionais do Estado do Tocantins esteve no local para elaborar um relatório. O documento lista elementos como o modo de vida comunitário, as manifestações culturais, o cultivo das roças, os utensílios e os relatos dos moradores. “A identidade negra quilombola da comunidade Rio Preto é indiscutível”, confirma o laudo.
A comprovação da existência de uma comunidade quilombola é um passo importante para que os antigos moradores possam garantir a permanência no território. Desse modo, eles poderão provar que habitam aquelas terras desde antes da elaboração de contratos de compra e venda. O caso da disputa pela terra com a Lagoa Dourada foi repassado à Justiça Federal.
Em resposta à reportagem do De Olho nos Ruralistas, a empresa encaminhou documentos que comprovam a compra da propriedade, adquirida em junho de 2015 do agricultor Simírames Afonso da Silva Junior. Questionada sobre a posse das terras do lote 173, a empresa afirma ter elementos que atestam a presença do antigo proprietário no local:
“Os documentos que comprovam a posse vão desde o antigo proprietário, Sr. Simírames o qual adquiriu o imóvel em 2004, até atualmente, como holerites de funcionários que trabalham e residem no local, contas de energia elétrica, contratos de prestação de serviço de preparação da terra”, afirmou o advogado da empresa, por e-mail.
Junior teria comprado as terras do seu pai, Simirames Afonso da Silva, um fazendeiro dono de outros lotes de terra na região. Em 2011, por exemplo, ele era proprietário da Fazenda Manduca, em Novo Acordo (TO), a cerca de 50 km de Lagoa do Tocantins. Naquele ano, sete pessoas foram resgatadas de uma carvoaria naquela propriedade, onde eram submetidas a trabalho análogo à escravidão.
Enquanto os sócios recebem novos parceiros e investimentos, os moradores veem minguar suas possibilidades de sobrevivência no local. A unidade de ensino que atendia cerca de 30 crianças da comunidade do Rio Preto está fechada desde 2019. “O poder público foi se ausentando do lugar, foi um modo de matar a comunidade. Primeiro, foi a casa de farinha, por último foi a escola”, conta Maria.
* Nome fictício: a agricultora pediu para que sua identidade fosse mantida em sigilo.
Imagem principal (Coeqto): casa de quilombola foi queimada em disputa fundiária em Lagoa do Tocantins.