Pyelito Kue: os relatos e a geografia dos ataques aos Guarani e Kaiowá em Iguatemi (MS)

Assista ao vídeo com o relato dos indígenas e veja o mapa do local onde ocorreram os ataques aos indígenas do tekoha Pyelito Kue e aos jornalistas que foram registrar a violência na região

POR TIAGO MIOTTO (TEXTO) E RUY SPOSATI (VÍDEO), DA ASSESSORIA DE COMUNICAÇÃO DO CIMI

No dia 22 de novembro, a violência contra a antropóloga Carolina Mira Porto e o jornalista Renaud Philippe, interceptados e agredidos por homens encapuzados em caminhonetes numa estrada estadual no interior de Iguatemi (MS), ganhou repercussão nacional e internacional. No mesmo dia, a poucos quilômetros do local das agressões, indígenas Guarani e Kaiowá do tekoha Pyelito Kue também foram alvo de um intenso ataque.

Os indígenas foram expulsos naquela data da fazenda Maringá, retomada por eles quatro dias antes. Eles relatam terem sido alvo de disparos de arma de fogo, cárcere privado e intensas agressões. Os detalhes do caso, relatados pelos indígenas, revelam a brutalidade da ação.

Três semanas depois, sem encaminhamentos em relação à demarcação de sua terra, os Guarani e Kaiowá realizaram uma nova retomada – e sofreram um novo ataque.

A retomada

Na madrugada do dia 18 de novembro, um sábado, um grupo de famílias do tekoha Pyelito Kue ocupou uma área de mata localizada no interior da fazenda Maringá, de 425 hectares. Essa propriedade fica dentro do perímetro da Terra Indígena (TI) Iguatemipegua I, que abrange os tekoha Pyelito Kue e Mbaraka’y.

“Nós estamos vivendo aqui na aldeia Pyelito, um lugar apertado para quem tem família grande. Já não tem mais espaço aqui para nós. E a gente sempre ouve as pessoas falando: por que nossa terra não está pronta ainda? Por que a gente não ocupa lá? Decidimos ir e fomos”, relata o Ava Te’e. Por segurança, ele e as demais pessoas da comunidade serão identificadas apenas por seus nomes indígenas.

Segundo ele, cerca de quarenta pessoas, com mulheres e crianças, participaram da retomada. “Chegamos ali no mato e ficamos cinco dias ali. Resolvemos ir no coração do Pyelito”, relata Jaguarete, homem Guarani Nhandeva de 26 anos.

Primeiros disparos

A professora Kunhã’i Nhandeva não participou da retomada. De sua casa na aldeia Pyelito, ela aguardava por informações do grupo que estava na mata. Foi ficando mais apreensiva à medida que os dias e noites transcorriam e os tiro, ouvidos à distância, se sucediam.

Poucos quilômetros, cobertos por grandes e contínuas pastagens, separam a casa da professora da área de mata onde seus vizinhos e parentes inicialmente acamparam. Por volta das onze horas da noite de sábado (18), ouviu, à distância, os primeiros disparos.

Da aldeia, com internet limitada e poucas informações sobre a situação na retomada, Kunhã’i fazia o possível para acionar órgãos públicos e aliados, como o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), e pedir a presença de forças de segurança e da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) na região.

“Tem que vir o mais rápido possível, é urgente”, relatou ela, em áudio enviado às 23h52 do dia 18 de novembro. “Escutei muito barulho, armas, tiros”.

“Imediatamente, acionamos a Funai e o Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos”, relata Matias Benno, coordenador do Cimi Regional Mato Grosso do Sul. “Pela manhã, também informamos as Defensorias Públicas da União [DPU] e do Estado [DPE], que passaram a acompanhar a situação”.

Demora

Apesar dos pedidos constantes, a Polícia Federal e a Força Nacional só chegaram à região quatro dias depois, quando os ataques já haviam se intensificado, quatro indígenas haviam sido capturados pelos seguranças das fazendas e os jornalistas já haviam sido agredidos.

Os indígenas relatam que, ao longo destes dias, caminhonetes de seguranças privados circularam constantemente pela região, mantendo os Guarani e Kaiowá cercados e disparando eventualmente sobre a mata.

Na noite de terça-feira (21), a comunidade decidiu ir até a sede da fazenda. Encontraram-na vazia, conforme relata Ava Te’e, e resolveram pernoitar no local. “Amanhecemos lá, esperando a Funai aparecer”, lembra o indígena.

As informações, dispersas, chegam até Kunhã’i, que se preocupa. Envia diversos áudios, a partir das onze horas da noite, pedindo apoio e a presença de autoridades.

“A gente não dormiu ainda, porque a gente ficou desesperado”, diz ela, no áudio enviado à 1h30 da manhã. “Será que as pessoas querem primeiro ferir [os indígenas], para depois chegar a Polícia Federal?”, questiona.

“Não teve conversa, já chegaram atirando”

O ataque

São cerca de oito horas da manhã quando o ataque inicia – primeiro com quatro homens em uma caminhonete, que depois recebem reforço de mais carros e seguranças. “Vimos a [caminhonete] Hilux chegando e fomos em direção a ela, para conversar. Mas não teve conversa, já chegaram atirando”, relata Ava Te’e.

Segundo os relatos, registrados também no boletim de ocorrência feito na delegacia de Polícia Civil de Iguatemi (MS) no dia seguinte, foram muitos disparos e pelo menos vinte homens armados, parte deles com os rostos cobertos por máscaras do tipo balaclava.

Com os tiros, o grupo se dispersa e uma parte consegue retornar à mata, onde se refugia e aguarda por uma ocasião propícia para retornar à aldeia. Pelo menos cinco pessoas, contudo, ficam para trás: três mulheres e um homem, que são capturados pelos agressores, e uma quarta mulher, grávida, que fica escondida.

As primeiras informações sobre a captura, ainda incompletas, chegam até Kunhã’i. Às 9h23, a professora dispara áudios pedindo ajuda: “pegaram três pessoas, a segurança dos fazendeiros que pegou. Por que [as autoridades] estão demorando tanto para chegar?”

Cárcere

As quatro pessoas que foram capturadas relatam que passaram algumas horas em poder dos seguranças. Contam que foram amarradas, agredidas e ameaçadas.

“Eles nos levaram embaixo da árvore, pegaram o formigueiro e esparraram, para a formiga sair, e colocaram meu rosto lá”, conta Ava Te’e. Ynambupy Tán e Jatyta, de 48 anos, relataram à Polícia Civil terem sofrido o mesmo tipo de agressão.

A outra pessoa que ficou para trás foi Kunha Vera Rendy, de 25 anos, gestante de três meses. Ela conta que cobriu seu corpo com a lama do brejo e ficou imóvel, sem forças para fugir.

“Eu tentei correr, mas não consigo correr direito, fico muito cansada. Então, eu caí. Fiquei lá, com medo, sozinha, no meio da lama. Fechei meus olhos, parecia um rio balançando…”, recorda-se. “Acho que desmaiei”.

“Um segurança falou para mim: ‘se não fosse o meu patrão tão bonzinho, eu ia meter [um tiro de] doze nas tuas costas”

Ameaças e abusos

A violência contra os indígenas foi também psicológica. Os Guarani e Kaiowá relatam que, em diversos momentos, os homens que os mantinham sob seu poder comentavam que gostariam de matá-los.

Os agressores discutiam como o fariam e onde jogariam seus corpos: no rio ou no Paraguai – prática que tem antecedentes na região, como no recente caso de Alex, assassinado em Coronel Sapucaia, em 2022. Os indígenas também relatam que um dos homens que acompanhava as agressões era paraguaio e se comunicava com eles em Guarani.

“Se você levar no Paraguai, ninguém vai saber. Se você matar esses quatro, ninguém vai saber”, conta ter ouvido Piririta Nhandeva, de 23 anos. Ela foi uma das três mulheres mantidas sob cárcere durante algumas horas.

“Um segurança falou para mim: ‘se não fosse o meu patrão tão bonzinho, eu ia meter [um tiro de] doze nas tuas costas. Ia fazer um buraco”, conta Ava Te’e.

Além das agressões e das ofensas, as mulheres do grupo também relatam que foram alvo de violência sexual, com ameaças de estupro. “Nos bateram, tocaram na gente e fizeram várias ameaças”, lembra Ynambupy Tán, mulher indígena de 26 anos.

Da Aty Guasu a Iguatemi

Pela manhã, em torno das dez horas, a informação de que havia pelo menos três indígenas presos pelos pistoleiros começa a circular pelo whatsapp. O relato também chegou até a reunião da Aty Guasu, a Grande Assembleia Guarani e Kaiowá, que havia iniciado no dia 21 de novembro em Caarapó (MS), a 150 quilômetros dali.

É neste momento que o jornalista canadense Renaud Philippe e a antropóloga visual Ana Carolina Mira Porto ficam sabendo da situação no tekoha Pyelito Kue.

Ambos, que registram há dois anos a realidade das retomadas e dos conflitos envolvendo os Kaiowá e Guarani na região, decidem ir até o Iguatemi (MS), para averiguar e documentar a situação. Dão carona a dois homens, um deles o marido de Kunhã’i.

Saindo em torno de 13h30, eles percorrem o trajeto em aproximadamente duas horas. Passam pelo centro de Iguatemi e percorrem cerca de seis quilômetros pela MS-386. Em torno das 15h30, param às margens da rodovia estadual – na verdade, uma estrada de chão batido –, poucos metros antes da entrada de uma vicinal, e encontram Kunhã’i.

Abordagem do DOF

Quando conversavam sobre a situação, o grupo foi abordado por um veículo do Departamento de Operações de Fronteira (DOF), vinculado à Polícia Militar (PM) de Mato Grosso do Sul. Segundo os jornalistas, a abordagem foi ríspida.

“Eles nos perguntaram o que estávamos fazendo ali. Explicamos que éramos jornalistas e estávamos ali para cobrir o conflito que estava acontecendo na região”, lembra Mira Porto. A resposta dos policiais foi de que “não havia nada acontecendo” lá.

Apreensivos, os dois deixaram os indígenas e decidiram voltar até a zona urbana de Iguatemi (MS), onde acessaram a internet e tentaram obter informações sobre a presença da Força Nacional na região.

Entre o local da abordagem e o centro da cidade, são cerca de 14 quilômetros e pouco mais de 20 minutos, de carro. Depois de alguns minutos na cidade, sem sucesso nas tentativas de contato com a Funai e o Ministério Público Federal (MPF), decidiram retornar à rodovia para ver se havia movimentação de forças de segurança.

“Desde que começamos esse projeto, nós ouvimos muitas pessoas falarem sobre esta violência. Víamos as consequências dela, mas eu jamais poderia ter imaginado o ódio que vimos”

“Jamais poderia ter imaginado o ódio que vimos”

Menos de uma hora depois de serem abordados pelo DOF, a antropóloga e o jornalista encontraram um cenário muito diferente ao chegar de volta ao local: diversas caminhonetes bloqueavam a estrada.

“A gente explicou, ‘a gente é jornalista’, e aí um senhor atrás [numa das caminhonetes] abriu a janela e falou: ‘eu recomendo que vocês vão embora, aqui vai ficar muito perigoso’”, relata Carolina. Eles estimam que havia cerca de trinta homens, muitos com os rostos cobertos e alguns portando armas.

“A gente começou a ir correndo para o carro e eles, esses homens encapuzados, vieram correndo e começaram a bater na gente. Me jogaram no chão. Quando eu vi, eles estavam batendo muito nele [Renaud]. Eu tentava falar: ‘a gente é jornalista, tem o cartão de imprensa’”, recorda.

“É difícil saber [quantos eram], com as máscaras. Houve muita violência”, diz Renaud. “Desde que começamos esse projeto, nós ouvimos muitas pessoas falarem sobre esta violência. Víamos as consequências dela, mas eu jamais poderia ter imaginado o ódio que vimos”, completa Renaud.

“Tinha um cara com uma faca, ele queria cortar meu cabelo. Depois, ele veio com a faca perto do meu rosto e alguém, um outro que estava mais calmo, segurou ele”, conta Carolina. Ela e Renaud relatam que os agressores também roubaram os pertences que estavam no carro deles, inclusive câmeras, celulares e documentos.

Os relatos dos indígenas apontam que a libertação do grupo detido provavelmente só ocorreu quando circulou, entre os agressores, a informação de que havia jornalistas na região.

“Chegou outro carro e chamou o pessoal. Eu não sei se receberam ligações ou mensagens de que os jornalistas estavam vindo para cá. Vi um dos indivíduos falando ‘vamos soltar eles’, e o paraguaio falou para mim: ‘as roupas e o celular vai ser tudo queimado, você vai embora sem nada’”, conta Ava Te’e.

“Existe um histórico de cooperação entre fazendeiros e policiais, principalmente do DOF [Departamento de Operações de Fronteira]”

“Eles deram a volta”

Enquanto estavam sendo agredidos, o jornalista e a antropóloga tiveram sua segunda interação com a PM de Mato Grosso do Sul. Ambos relatam ter visto uma viatura policial passar pela rodovia onde eram agredidos, indo em direção a Iguatemi (MS).

“Quando vimos a viatura da Polícia Militar, sentimos um alívio”, lembra Renaud. Carolina conta que acenou aos policiais, ostensivamente, pedindo ajuda.

“Eu fiz sinal para eles, ‘pelo amor de deus’”, relata ela. “Eles deram a volta e foram embora. Aí a gente entendeu que a gente tinha que fugir”.

Naquele ponto, só havia dois caminhos possíveis para a viatura chegar até ali: pela própria MS-386, passando em frente ao tekoha Pyelito Kue; ou pela vicinal que passa por trás da fazenda Cachoeira e dá acesso direto à fazenda Maringá – e, portanto, ao local da retomada, onde quatro indígenas relatam ter sido mantidos durante horas sob poder dos agressores.

“O que a viatura estava fazendo ali? Por que não interrompeu as agressões? Como os seguranças ficaram sabendo da chegada dos jornalistas ao local?”, questiona Matias Benno.

“Existe um histórico de cooperação entre fazendeiros e policiais, principalmente do DOF. Entre 2015 e 2016, registramos ao menos trinta ataques paramilitares contra comunidades Guarani e Kaiowá. Em muitos deles, o DOF atuou bloqueando o acesso aos locais onde ocorriam ataques, dando apoio aos agressores e até dissuadindo forças de segurança federais”, lembra o missionário.

Interrogada, a PM de Mato Grosso do Sul respondeu por email que “não recebeu, através do seu canal de contato com a população (190), nenhuma solicitação de apoio de jornalista na região de Iguatemi. Uma equipe do DOF chegou a abordar os profissionais que gravaram um vídeo denunciando agressão, mas não foi informada dos fatos durante tal abordagem”.

A PM também afirma que os jornalistas não relataram, no boletim de ocorrência registrado em Amambai (MS), “nenhum fato em desfavor tanto do DOF quanto da PM, apenas informando que haviam sido abordados no percurso, fato que será devidamente apurado”.

As fazendas

Entre a noite e a madrugada dos dias 22 e 23, servidores da Funai e agentes da Polícia Federal e da Força Nacional realizaram buscas nas fazendas da região.

Na propriedade identificada pelos agentes como Pássaro Preto, os policiais encontraram 88 munições de grosso calibre, principalmente 12. O proprietário foi preso em flagrante por posse irregular de munição e arma de fogo.

Esta mesma fazenda é referida por dois nomes distintos em fontes oficiais. No Sistema Nacional de Cadastro Rural (SNCR), do Incra, a fazenda denominada “Pássaro Preto”, pertence a uma pessoa cujo primeiro nome é “Rubem”.

O mesmo código de imóvel atribuído à fazenda Pássaro Preto no SNCR identifica, em outra base do Incra, a fazenda Saturno II. Essa base é o Sistema de Certificação de Imóveis Rurais (SNCI), que é georreferenciado. A propriedade foi certificada neste sistema no ano de 2009.

A fazenda Maringá atualmente pertence a Ranieli Pitol e a seu pai, Valter Pitol, fundador e presidente da Copacol, segundo levantamento do portal De Olho nos Ruralistas. O portal aponta que a empresa é uma das cem maiores do agronegócio brasileiro.

Segundo o observatório, o proprietário da fazenda Saturno II também tem ligações com a família Pitol e com a Copacol: Rubem Marco de Salles Santos, dono da fazenda, é ex-gerente de unidades e superintendente agrícola da cooperativa.

Os indígenas também relataram à polícia que seguranças das fazendas Santa Rita, de 2.194 hectares, Vera Cruz, com 2.073 hectares, e Cachoeira, com 2.387 hectares, teriam participado dos ataques. Todas são total ou parcialmente sobrepostas à TI Iguatemipegua I.

Durante as buscas, os agentes também encontraram durante as buscas uma área com terra remexida. Eles acreditam que neste local, provavelmente, foram queimados celulares e pertences dos indígenas.

Iguatemipegua I

O território formado pelos tekoha Pyelito Kue e Mbaraka’y, localizado no cone sul do Mato Grosso do Sul, foi a origem de uma situação que alçou os Guarani e Kaiowá ao centro do debate público, em 2012. À época, a Justiça Federal de Naviraí (MS) havia determinado o despejo dos indígenas, que ocupavam uma pequena área da fazenda Cambará, sobreposta à TI.

A comunidade escreveu uma carta coletiva denunciando a decisão judicial e afirmando sua disposição de morrer lutando por seu território. “Decretem a nossa morte coletiva Guarani e Kaiowá de Pyelito Kue/Mbarakay e enterrem-nos aqui. Visto que decidimos não sairmos daqui com vida e nem mortos”, afirmava a carta.

Interpretado – equivocadamente – como uma declaração de suicídio coletivo, o manifesto gerou enorme comoção. Milhares de pessoas passaram a incluir a alcunha “Guarani-Kaiowá” em seus nomes nas redes sociais.

Dias depois, após a grande repercussão do caso, o Tribunal Regional Federal da Terceira Região (TRF-3) suspendeu o despejo. A decisão garantiu a permanência da comunidade, formada então por cerca de 200 pessoas, em apenas um dos 761 hectares da fazenda, numa das poucas áreas do território em que a mata não foi totalmente suprimida para dar lugar ao gado e às pastagens.

O tekoha Pyelito Kue/Mbaraka’y foi um dos incluídos no Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) assinado entre o MPF e a Funai, em 2007. O acordo estabelecia um prazo de três anos para a publicação dos estudos de um conjunto de TIs Guarani e Kaiowá no estado.

O Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação (RCID) de Pyelito Kue/Mbaraka’y só foi publicado pela Funai em 2013. A TI foi denominada Iguatemipegua I e delimitada com 41,5 mil hectares.

Dez anos sem avanços

Desde então, a demarcação do território estagnou. Os indígenas aguardam há mais de dez anos a publicação da portaria declaratória da TI, atribuição do Ministério da Justiça.

“Não há nenhum impedimento legal para a emissão da portaria”, explica Anderson Santos, assessor jurídico do Cimi Regional Mato Grosso do Sul. “Segundo informações do Ministério dos Povos Indígenas, o processo administrativo está na mesa do ministro da Justiça, aguardando assinatura”.

Atualmente, a comunidade vive numa área de aproximadamente 100 hectares da fazenda Cambará. A área foi cedida por meio de um TAC firmado pela Justiça Federal de Mato Grosso do Sul em 2014.

Sob risco de despejo e sem perspectiva de reaverem a totalidade de seu território, os Guarani e Kaiowá se viram forçados a aceitarem os termos restritivos do acordo, que os forçou a viver numa área correspondente a 0,2% da terra já reconhecida como sua.

Histórico de violência

Neste período, acumulam-se violações e casos de violência extrema contra a comunidade, que buscou garantir condições mínimas de subsistência ocupando pequenas áreas de mata no interior das fazendas sobrepostas a sua terra.

Em muitos dos casos, os ataques contra a comunidade de Pyelito Kue envolveram crueldade extrema. Num dos casos mais brutais, poucos meses após a carta-denúncia que gerou comoção nacional, uma indígena foi vítima de um estupro coletivo.

Apenas entre 2014 e 2015, foram registrados ao menos dez ataques de pistoleiros contra a comunidade. Num deles, um jovem teve sua perna alvejada por um projétil de borracha quando buscava frutas nas matas da região.

Em outro caso, uma nova retomada realizada pelos indígenas na fazenda Maringá foi alvo de um ataque a tiros, que deixou dez pessoas feridas.

Apesar do longo histórico de violência, a comunidade de Pyelito Kue nunca desistiu de garantir a ocupação da totalidade de seu território. Uma das motivações é a fome, decorrente da falta de espaço para o plantio de alimentos na área destinada à comunidade.

“Não dá mais para plantar aqui. Eu penso em plantar lá [na retomada] para alimentar meus netos e netas”, enumera Jatyta, uma das indígenas que foi mantida sob cárcere.

Nova retomada

Além da questão prática da sobrevivência e da fome, outra questão, mais profunda, motiva a incessante disposição das famílias de Pyelito Kue/Mbaraka’y de reaverem seu território.

“A gente se sente obrigado a voltar para aquela aldeia. Aquela é a nossa casa. Lá está o cemitério onde estão enterradas minha mãe, minha avó, minha bisavó”, garante Jatyta.

No dia 16 de dezembro, um grupo da aldeia Pyelito Kue partiu para uma nova retomada, desta vez na fazenda Cachoeira. No mesmo dia, foram alvo de um ataque armado de seguranças.

Em ofício enviado ao governo federal no dia 18 de dezembro, DPU e DPE solicitaram “providências urgentes para a manutenção da Força Nacional – com efetivo adequado para o policiamento ostensivo – e para que a Polícia Federal investigue a presença de milícias”.

Mulheres e criança Guarani e Kaiowá do tekoha Pyelito Kue, novembro de 2023. Foto: Tiago Miotto/Cimi

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