Em meio a novos transtornos provocados pelo aquecimento, ativistas e pesquisadores lançam carta aberta ao governo. Eles sustentam: sem metas e prazos, o Plano de Transformação Ecológica será conversa fiada
por Gabriela Leite, em Outra Saúde
No segundo semestre de 2023, começava a soar repetitiva a notícia de que o mês anterior havia sido o mais quente desde que há registro. Mas mesmo após as imagens de queimadas mundo afora e as fortes ondas de calor que atravessaram também o Brasil, observar o gráfico publicado no jornal New York Times ontem chega a espantar.
Cada risco amarelo ou laranja representa um ano. O que desponta bem acima da curva, deixando todos os outros muito atrás a partir de junho, representa 2023. Os dados são do observatório Copernicus, da Agência Espacial Europeia, e registram que a temperatura média foi 1,48ºC maior que durante o período pré-industrial.
A situação é drástica: foi, possivelmente, o ano mais quente dos últimos 100 mil anos, avaliam os cientistas. “Simplesmente não havia cidades, livros, agricultura ou animais domésticos no planeta, da última vez que a temperatura esteve tão alta”, alertou Carlo Buontempo, diretor do Copernicus.
O Acordo de Paris, firmado em 2015, estipula que os países tomem medidas para restringir o aumento da temperatura a, no máximo, 1,5 ºC, para evitar grandes catástrofes. Mesmo assim, pouco está sendo feito, a nível global – e a debilidade das decisões tomadas na última Conferência do Clima, a COP-28, que aconteceu em dezembro, é um dos indicativos.
O Brasil, sob o novo governo Lula, pode ser um dos principais atores para encabeçar uma mudança real. Mas o que está sendo feito, de fato, para isso? É o que questiona uma carta aberta entregue aos ministros Fernando Haddad, da Fazenda, e Marina Silva, do Meio Ambiente e Mudança do Clima, escrita pela Rede Brasileira de Justiça Ambiental (RBJA). Trata-se de uma articulação de organizações, movimentos sociais e pesquisadores. Eles enumeraram algumas preocupações acerca do Plano de Transformação Ecológica, apresentado pelo governo na COP-28.
Marijane Lisboa, socióloga, professora da PUC-SP e participante da RBJA, conta que participou, em outubro, de um encontro organizado pelos dois ministérios para apresentar o Plano à sociedade civil. Ela relata um estranhamento: não houve, neste evento ou em outras ocasiões, um espaço para debate com a sociedade sobre os detalhes da proposta, nem tampouco um documento completo que explique suas diretrizes.
A primeira observação da carta da RBJA diz respeito à falta de metas e prazos no Plano de Transformação Ecológica. “É preciso falar de números, quantidades e datas. O lançamento de programas de mercado de carbono de nada serve se não estipularmos em quanto e em que velocidade todas as emissões dos diversos ramos do setor manufatureiro, de serviços e extrativo devem ser reduzidas de acordo à sua importância no quadro total”, escrevem os autores.
“Isso não se justifica mais”, critica Marijane em entrevista ao Outra Saúde. “É preciso dizer quanto e quando iremos atingir essas metas”, para que a discussão saia das soluções aparentemente fáceis. A pesquisadora critica saídas falsas, que ampliam a geração de energia limpa sem reduzir o uso de combustíveis fósseis. “O clima não está interessado em proporções”, ironiza. Marijane chama esse tipo de política de “me engana que eu gosto” – “mas os movimentos sociais não gostam de ser enganados”.
Na mesma direção, a carta da RBJA critica a falta de uma política para reduzir a produção de petróleo e gás no país, a insistência em explorar a foz do rio Amazonas, a mineração de urânio no Ceará e o plano de retomar a construção da usina nuclear de Angra 3. “Cremos não ser necessário recordar que além de o petróleo ser um dos principais contribuintes para as mudanças climáticas, sua extração, tanto em terra quanto no mar é extremamente poluidora, causando danos ambientais duradouros e eventualmente grandes acidentes, especialmente quando no mar.”
Marijane também chama atenção à participação “muito estranha” do Brasil na COP-28. “Porque chega pretendendo ter um papel de vanguarda, de propostas avançadas, e, no mesmo dia, aceita o convite para entrar na Opep+. Bom, não me convence, entende? Quer dizer, não nos convenceu a ninguém. Ninguém precisa entrar na Opep+ para convencer os países a largar o petróleo. É o contrário.”
A carta da RBJA adiciona alguns fatores importantes, especialmente ligados à justiça climática. Quem tem acesso aos recursos naturais e quem são as principais vítimas dos impactos negativos de sua exploração? “Usinas hidroelétricas forneceram energia prioritariamente para empresas energointensivas, enquanto povos indígenas e ribeirinhos foram expulsos de suas terras. Grandes empresas mineradoras consomem a água de agricultores e moradores de cidades, eventualmente deixando que grandes acidentes ocorram, como deslizamentos e rompimentos de barragens, enquanto embolsam lucros extraordinários”, enumera.
Há ainda, pontua a carta, um grande risco ao Brasil, de avançar mais uma fase no neoextrativismo. Com abundância de água, vento e minérios, o país pode virar gerador de “energias limpas” para o Norte Global, “ficando conosco, como sempre, apenas os custos ambientais e sociais dessa nova divisão desigual e injusta do mercado internacional”.
Na avaliação de Marijane, a política ambiental do governo Lula 3 está “patinando”. “De fato, conseguiu reduzir bastante o desmatamento na floresta amazônica. Mas o desmatamento no cerrado foi enorme. E, do ponto de vista das mudanças climáticas, é tão grave quanto”, pontua. Com um agravante: o desmatamento do bioma do interior do Brasil serviu em especial à expansão da criação de gado, também provocadora de aquecimento. “A gente não pode dizer que o balanço é positivo”, lamenta a pesquisadora.
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Área desmatada em Nova Xavantina (MT), nos limites entre Amazônia e cerrado. Amanda Perobelli/Reuters