Coletivo aguarda diálogo com Casagrande, prometido na COP 28, sobre combate ao racismo ambiental
FERNANDA COUZEMENCO, em Século Diário
“A contaminação dos alimentos é só ‘a ponta do iceberg'”. A afirmação é de Luciana Souza, representante do Espírito Santo no Coletivo Vozes Negras pelo Clima, e se refere à confirmação de contaminação grave do pescado e produtos agropecuários produzido ao longo da Bacia do Rio Doce, com metais oriundos do crime da Samarco/Vale-BHP de 2015.
A contaminação foi confirmada em dois relatórios da Aecom, perita judicial do caso do crime da Samarco/Vale-BHP, e na Nota Técnica nº 21/2023, produzida conjuntamente pelo Ministério e Secretarias de Estado da Saúde do Espírito Santo e Minas Gerais, no início de novembro, publicados com exclusividade por Século Diário.
Os documentos recomendam expressamente que “os entes responsáveis para as comunidades e populações abrangidas [atingidas]” comuniquem os laudos apresentados de forma inteligível para que as mesmas estejam cientes dos riscos a que estão impostas ao se alimentarem desses produtos. Mas, ao contrário das recomendações, a divulgação dos dados tem ocorrido informalmente, entre grupos de atingidos e pesquisadores envolvidos no caso, havendo inclusive uma Nota Técnica da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), anterior à do Ministério e secretarias de Saúde, que ainda é guardada em sigilo na autarquia. O acesso a ela, solicitado pela reportagem via Lei de Acesso à Informação (LAI), foi negado, sob a justificativa de tratar-se de “documento preparatório com nível de acesso restrito aos usuários internos das unidades responsáveis”. Já a Sesa, demandada pela reportagem sobre ações que estariam conduzindo nesse sentido, não respondeu até o fechamento desta edição.
“Os relatórios falam que as instituições devem entrar nos territórios e traduzir esse relatório para os atingidos. E quando isso não acontece, elas corroboram o negacionismo da Fundação Renova, de que a água está propícia para o banho, que o pescado e os produtos agropecuários estão propícios para consumo. Por que é tão difícil para nós ter acesso a essas informações? Será que é porque, tendo acesso, a gente pode questionar até judicialmente a invisibilidade a que estamos sendo colocados nesses oito anos e isso impactar até na repactuação?”, questiona Luciana Souza.
A atingida e ativista também aguarda a abertura de diálogo com o governador Renato Casagrande (PSB) conforme prometido há um mês, na última Conferência das Partes (COP 28), o órgão máximo das ONU sobre mudanças climáticas, realizado em Dubai, nos Emirados Árabes, no início de dezembro passado. Na ocasião, Casagrande recebeu o relatório “Nada sobre nós sem nós”, com recomendações para combater o racismo ambiental e de gênero que caracteriza o frágil enfrentamento à crise climática realizado pelos governos, incluindo os brasileiros, que têm no chefe capixaba a liderança mais proeminente, como presidente da Consórcio Brasil Verde, que congrega governadores em planejamentos e ações climáticas. “Ele disse que um assessor ia nos procurar para marcar uma agenda, mas não ligou até hoje”, conta.
Representante da Bacia do Rio Doce no Coletivo – como membro da Comissão de Atingidos de Regência e Entre Rios, do Conselho Municipal de Cultura de Linhares e representante das minorias no Comitê Estadual de Vulnerabilidade Social do Espírito Santo e integrante das instâncias de governança da Câmara Técnica de Participação, Diálogo e Controle Social –, Luciana aponta no relatório também o racismo ambiental e de gênero na gestão das medidas de compensação e reparação do crime.
O relatório ressalta que “mais de 80% das pessoas atingidas pelo rompimento da barragem de Fundão, em novembro de 2015, são negras e tem enfrentado barreiras para acessar o processo de reparação dos danos. As mulheres não foram consideradas atingidas ou produtoras da cadeia da pesca, mas vistas, pela Samarco/Vale, como ‘donas de casa’ e ‘dependentes’ de seus maridos- o que aprofundou as desigualdades e violências de gênero”.
Ações em saúde não acontecem
Luciana conta que até hoje, passados oito anos do crime, não foi implementado um programa de atendimento às demandas de saúde específicas das populações atingidas na Foz do Rio Doce, não havendo sequer uma investigação e um monitoramento sistemático dos problemas de saúde advindos da exposição das pessoas ao rejeito, seja por meio da água, dos alimentos ou do ar, além das agressões indiretas à saúde, como as perdas econômicas, culturais e sociais sofridas pelas comunidades.
O máximo que se avançou, relata, foi a aprovação, em dezembro de 2022, na Câmara Técnica de Saúde (CT Saúde) – instância que integra o Comitê Interfederativo (CIF), responsável por fiscalizar a execução dos programas de reparação e compensação pela Fundação Renova – de um plano de avaliação de risco a saúde humana para o município de Linhares, com ações de pesquisa, prevenção e resolução na saúde do atingido, incluindo realização de análises biológicas sobre contaminação, serviços de farmácia e especialidades médicas, como ginecologia, dermatologia e pediatria, além de reestruturação das Unidades Básicas de Saúde (UBSs).
“A Renova judicializou o programa e até hoje não foi implementado”, afirma. “A gente está brigando com a maior mineradora do mundo e do outro lado, no jurídico, a gente tem uma Força Tarefa, com Ministério Público e Defensoria, que não cuidam só disso, têm outras atribuições e não consegue dar conta da quantidade de judicializações que a Renova faz, para atrasar tudo. Ou os advogados particulares, que não querem nos ajudar, querem ganhar dinheiro com toda essa situação”, indigna-se.
“É muito sério e as pessoas não pararam para entender isso. A gente fala, denuncia, mas não ecoa, continuam decidindo as nossas vidas em cima de cifrão e as melhorias não chegam nas comunidades. É uma tentativa de erradicação do ser caboclo, ser quilombola, ser indígena, foi uma tentativa de extermínio da nossa cultura, todo esse sistema é uma tentativa de destruição da nossa existência. Mas somos resilientes”, posiciona.
Recomendações
O relatório Nada sobre nós sem nós traz doze recomendações para que “o Estado brasileiro” possa elaborar “políticas climáticas mais sensíveis às necessidades das mulheres negras e garantir uma efetiva justiça climática baseada na justiça racial e de gênero”. Entre elas: a produção de “recortes de raça e gênero” sobre dados, informações, programas e políticas relativas a meio ambiente e clima; implantação de um Plano Nacional de Combate ao Racismo Ambiental; titulação imediata de territórios dos povos e comunidades tradicionais; participação social na elaboração de políticas e programas voltadas à transformação da matriz energética, com adoção dos protocolos de consulta livre, prévia, informada e vinculante (Convenção 169 da OIT); políticas de produção agroecológica e extrativismo de base liderada por mulheres; reformulação do Programa Nacional de Proteção aos Defensoras/es de Direitos Humanos e climáticos, com recorte de raça e gênero e garantia de ampla participação social; Ratificação e implementação imediata do Acordo de Escazú pelo Brasil; acesso direto e transparente ao Fundo de Perdas e Danos; participação social nos planos de contingência; programas e políticas que visem a efetivação de cidades carbono neutro até 2050; garantia de financiamento e fortalecimento do Sistema Único de Saúde (SUS)”.
Para acessar o relatório na íntegra, clique aqui.
Democracia
Luciana afirma que há uma expectativa de que o diálogo com Casagrande aconteça, tendo como pauta o enfrentamento à crise climática e a tentativa de exploração de sal-gema em Conceição da Barra. “Nós queremos fazer parte da solução e o mínimo que se espera de um governo democrático é a escuta”.