Ensino sobre eventos extremos ajudou comunidade a se proteger em Pernambuco e reforça importância de educação climática
Por Gabriel Gama | Edição: Giovana Girardi, em Agência Pública
Em maio de 2022, Jaboatão dos Guararapes, na região metropolitana do Recife, enfrentou fortes chuvas que resultaram em 64 mortes. No entanto, na comunidade do Retiro, a história foi diferente dos outros bairros: o local não registrou nenhum óbito. A razão para essa discrepância não estava nas condições socioeconômicas ou na infraestrutura das moradias, mas sim em outro fator: a educação dos jovens e adultos sobre as mudanças climáticas e os riscos dos desastres.
Após quatro meses de treinamento e práticas educacionais em parceria com o Núcleo Comunitário de Proteção e Defesa Civil (Nupdec) da cidade e o programa de Educação do Centro Nacional de Alertas e Monitoramento de Desastres Naturais (Cemaden Educação), estudantes da comunidade do Retiro adotaram ações preventivas e foram capazes de orientar a evacuação dos vizinhos que viviam em regiões sujeitas a deslizamentos. No fim das contas, salvaram vidas.
Por que isso importa?
- Aumento da ocorrência de eventos extremos no país escancara a importância de haver programas de educação sobre o clima nas escolas para o enfrentamento dos desastres e para construir a resiliência das comunidades
- Projetos bem-sucedidos com estudantes que vivem em áreas de risco mostram que ensino pode ser estratégia de adaptação às mudanças climáticas e de combate ao negacionismo
Havia chovido a madrugada inteira. Quando Aléxys Gabriel Ferreira, então com 16 anos, acordou, ele notou pelo pluviômetro caseiro – que tinha aprendido a construir e a analisar durante o treinamento – que o cenário era de preocupação. Saiu, então, batendo na vizinhança para pedir que os moradores deixassem suas casas.
“Segui as recomendações que ouvi no projeto e falei para as pessoas saírem da área de risco, para tomarem cuidado, e me coloquei à disposição para tirar dúvidas dos moradores e passar as perguntas deles para o pessoal da Defesa Civil”, conta. Conseguiu remover oito vizinhos. Mais tarde, ao menos cinco casas desabaram no entorno. Em três dias, o acumulado de chuva foi de 359,4 mm, superior ao esperado para o mês de maio inteiro.
Aléxys se refere ao projeto Dados à Prova D’Água. Idealizada pelo Cemaden Educação em colaboração com universidades do Brasil, Alemanha e Reino Unido, a iniciativa fomenta a instalação de pluviômetros artesanais de garrafa pet para medir o volume das chuvas. O projeto possui um aplicativo que reúne as informações coletadas em todos os pluviômetros da rede, compondo um banco de dados de precipitação.
Ao longo do desenvolvimento do projeto, as crianças aprenderam conceitos sobre as mudanças climáticas e os desastres. O estudo não ficou só na teoria: a turma de 29 estudantes jaboatonenses foi a campo, mapeou os riscos e vulnerabilidades da própria comunidade e traçou rotas de fuga para o caso de deslizamentos de terra – o tipo de tragédia mais recorrente na região.
Aléxys decidiu participar do projeto a convite do professor Jurandy Clementino, coordenador do Centro Educacional, Social e Cultural João Martins (CESCJM), em Jaboatão, e um dos responsáveis pelo projeto na comunidade. “Fizemos atividades sobre as mudanças climáticas, o que elas são, o que a Defesa Civil faz, como nós podemos utilizar o pluviômetro para ajudar a nossa comunidade e promover o nosso crescimento pessoal também”, afirma.
“Hoje, existem aplicativos que mostram dados climáticos, e a Defesa Civil alerta a quantidade de chuva que está caindo, mas você ver [no pluviômetro caseiro] é uma coisa totalmente diferente. Eu levo para a minha vida esse conhecimento, aumentou muito meu pensamento crítico sobre o que está acontecendo no mundo. As mudanças climáticas estão no nosso cotidiano, e aprendi que a gente pode tomar ações para resolver e que ajudem a comunidade”, complementa o estudante.
Além dos jovens, adultos também se interessaram em participar da iniciativa. Josilene de Souza, hoje aos 49 anos, entrou no projeto movida pela curiosidade. “A gente pode fazer a mudança se tiver noção das coisas. Por exemplo, muita gente planta bananeira nos quintais e não sabe que ela é perigosa para os deslizamentos”, diz a estudante de pedagogia. Essas árvores acumulam água nas raízes e encharcam o solo, o que aumenta a probabilidade de desmoronamentos.
Assim como Aléxys, ela também se engajou em convencer as pessoas a deixar suas casas depois de observar o nível alarmante da chuva coletada no seu pluviômetro na tempestade de 2022. “Eu consegui, na conversa, que dois moradores cabeça-dura, que não queriam sair da sua residência, saíssem. Dois dias depois a casa deles realmente veio a cair, e eu fiquei pensando: ‘Meu Deus, se eu não tivesse passado por esse processo, se não tivesse conhecido [o projeto], eu estaria alheia a essas coisas’”, afirma Josilene.
Para Rejane Lucena, professora da rede estadual de Jaboatão dos Guararapes e que também levou a iniciativa para as escolas Adelaide Pessoa Câmara e Alberto Santos Dumont, a educação sobre o clima para o enfrentamento dos desastres é importante para construir a resiliência das comunidades, além de ser uma forma de adaptação às mudanças climáticas.
“O objetivo do projeto era multiplicar o conhecimento e construir a autoproteção da população, para que as pessoas tenham uma percepção mais aguçada das condições de risco, independentemente de haver um órgão de segurança dando orientações do tipo ‘saia da sua casa’. As escolas onde desenvolvemos o projeto estão dentro de comunidades que ficam em áreas de risco, então o trabalho ajuda a dialogar com o poder público e cobrar direitos”, afirma.
O projeto Dados à Prova D’Água, premiado pelo Conselho de Pesquisa Econômica e Social do Reino Unido, é uma das atividades desenvolvidas pelo Cemaden Educação, que existe desde 2014. A coordenadora Rachel Trajber explica que a missão do órgão é fomentar a criação de comunidades escolares sustentáveis e resilientes: “Cada escola que faz parte da nossa rede se transforma em um Cemaden microlocal, um pequeno instituto de pesquisa que trabalha com a ciência cidadã, faz o monitoramento e dá alertas para prevenção de risco de desastres”.
Trajber lembra que a educação climática também ajudou a prevenir um desastre em Cunha (SP), em 2017, no Vale do Paraíba. Em uma escola estadual da cidade que fazia parte da rede do Cemaden Educação, os estudantes se engajaram na jornada pedagógica “Nossa escola é vulnerável?” e descobriram fragilidades estruturais em creches espalhadas pelo município.
Como se trata de uma região com relevo bastante acidentado, chuvas mais fortes poderiam causar o colapso das construções e vitimar dezenas de crianças. Mas isso não ocorreu. “A Câmara Municipal ficou sabendo disso, os estudantes apresentaram os riscos para o prefeito e acabou virando uma política pública de reforço nas estruturas das creches”, conta Trajber.
Diretrizes para uma educação ambiental climática transformadora
Essas experiências concretas com estudantes, aliadas ao aumento da ocorrência de eventos extremos no Brasil, têm ajudado a impulsionar um movimento para a adoção de programas de educação climática nas escolas, com iniciativas da sociedade civil e projetos de lei sobre o tema. Nesta reportagem, a Pública ouviu professores, políticos e membros do governo para entender o que falta ser feito para que o ensino da emergência climática se torne uma realidade no país.
“Não dá para esperar que só a conscientização dos professores ou da coordenação das escolas será suficiente para trabalhar a educação climática. O registro explícito no currículo é uma garantia de que o tema será mais abordado. Se a educação climática for oficializada, também reduz a abertura para notícias falsas, porque é mais difícil de você ser enganado se você tem uma formação consistente sobre o tema”, avalia Cheila Baião, da rede estadual de ensino de São José dos Campos (SP), que desenvolveu uma disciplina eletiva de Ensino Médio sobre clima e desastres.
Para ela, é fundamental incluir a temática de mudanças climáticas no programa educacional das escolas. Sua experiência em sala de aula reforça essa visão. “Fora a negligência estatal e governamental, muitos dos desastres também envolvem a falta de percepção de risco das pessoas. Quando pergunto aos alunos se eles conhecem alguém que já sofreu um desastre ou se eles mesmos já sofreram, sempre surge algum relato. Eles começam a perceber que todos nós, de alguma forma, estamos vulneráveis”, diz.
Não é um desafio só do Brasil. Dados de 2021 da Unesco, agência das Nações Unidas para a educação, apontam que apenas metade dos currículos educacionais de cem países pesquisados fazmenção às mudanças climáticas e somente 40% dos professores sentem confiança para ensinar sobre o tema.
Em 1999 foi instituída no país a Política Nacional de Educação Ambiental (PNEA), que determina a obrigatoriedade da inclusão de conteúdos pedagógicos sobre meio ambiente nos vários níveis da educação formal no país, de forma transversal nas disciplinas da grade curricular. Porém, especialistas na área enxergam uma falha em aproximar a educação ambiental do ensino das mudanças climáticas.
“A educação ambiental dá conta de várias questões e problemas importantes, mas ela está um pouco distante da temática da emergência climática em si. É importante colocar mais força nos currículos sobre a educação climática”, defende Thaís Brianezi, professora de educomunicação da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP).
Brianezi também é presidente do Fundo Brasileiro de Educação Ambiental (FunBEA), instituição que lançou o relatório Diretrizes de Educação Ambiental Climática, em setembro de 2023, em conjunto com o Cemaden Educação e o Instituto Clima e Sociedade (iCS). O documento, que foi entregue à ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva, durante a COP28, elenca dez recomendações para o fortalecimento da educação sobre as alterações climáticas no Brasil, sendo a primeira delas a estruturação do Programa Nacional de Educação Ambiental Climática.
No texto, as organizações estabelecem que o objetivo é destinar recursos suficientes para a implantação de processos de formação à altura da emergência e do desafio que as mudanças climáticas representam. “Essa questão [a estruturação da educação climática] entrou no radar do governo federal, em nível estratégico, depois de quatro anos paralisada. É algo que me anima bastante”, celebra a pesquisadora.
A paralisação a que Brianezi se refere começou em janeiro de 2019, logo no início da gestão de Jair Bolsonaro, quando foram extintos o Departamento de Educação Ambiental do Ministério do Meio Ambiente (MMA) e a Coordenação Geral de Educação Ambiental do Ministério da Educação (MEC).
Em audiência pública no Senado em 2021, organizações da sociedade civil apresentaram um dossiê sobre o Desmonte das Políticas Públicas de Educação Ambiental no Governo Bolsonaro. Conforme descrito no documento, estava em curso “uma paralisação da quase totalidade das obrigações, atribuições e demandas do governo federal em relação à Política Nacional de Educação Ambiental (PNEA)”.
Essa política foi retomada no governo Lula e houve a recomposição de cargos públicos da área. Rita Silvana, atual coordenadora de educação ambiental do MEC, explica que as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Ambiental abrangem o ensino das mudanças climáticas, embora a PNEA não trate explicitamente do assunto.
“Acrescentar o termo ‘mudança do clima’ numa política não é suficiente para garantir a educação ambiental necessária para que as pessoas entendam a complexidade da mudança do clima e saibam ter atitudes resilientes diante das situações que estão colocadas”, diz a coordenadora.
Segundo ela, a 6ª Conferência Nacional Infantojuvenil pelo Meio Ambiente, prevista para acontecer entre junho e julho, será focada na justiça climática: “É importante que qualquer documento ou proposta que trabalhe com a mudança do clima não esqueça de pensar e atuar com os grupos que mais vivenciam os efeitos da crise climática e estão em condições piores, não só pela estrutura, mas pelo pouco espaço de escuta das vozes dessas pessoas”.
“Dizem que são muito democráticos os desastres e as mudanças climáticas. Mais ou menos. Está todo mundo no mesmo barco, só que em camarotes completamente diferentes, e tem camarotes muito mais vulneráveis. É com esses camarotes que temos que trabalhar, com as pessoas mais vulneráveis. Como a gente faz isso? É não paralisando, é se sentindo potente”, reforça Rachel Trajber, coordenadora do Cemaden Educação.
Educar para prevenir
Para Jurandy Clementino, professor de Jaboatão dos Guararapes que ajudou os estudantes a evitar mortes nas fortes chuvas de 2022, o ensino sobre as mudanças climáticas e os riscos dos desastres deve ser feito da forma mais lúdica possível, visto que o medo sempre será um fator presente. “As crianças aprendem brincando, com marionetes e peças humanas, simbolizando que são eles mesmos em risco. Desenhos, pinturas, vídeos, tudo para conscientizar a criançada e as famílias do que é um desastre e de que forma é possível prevenir”, diz o educador.
“Quando aconteceu o desastre [das chuvas em 2022], as crianças tinham medo, mas sabiam os cuidados que era necessário ter. Estavam preparadas, da maneira infantil delas, mas tinham a ciência de como sobreviver a esse evento climático”, complementa.
Logo após um desastre climático, é comum que as aulas sejam suspensas e as escolas sirvam de abrigo para a população atingida. “Isso não deveria acontecer sempre, porque as escolas deixam de ser escolas naquele momento crítico. O planejamento para as emergências precisa acontecer antes do desastre, a escola deve ser um espaço protegido, preservado e cuidado, para que outros locais possam servir de acolhimento em situação extremas”, comenta a professora Rejane Lucena, de Jaboatão dos Guararapes.
Projetos de lei para incluir mudanças climáticas na educação enfrentam dificuldades
Ao menos cinco estados brasileiros possuem projetos de lei para incluir as temáticas da mudança do clima no conteúdo programático das escolas: Ceará, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte e São Paulo. Até o momento, apenas dois foram bem-sucedidos: no Rio de Janeiro, a legislação apresentada pela deputada Monica Francisco (Psol) foi aprovada em janeiro de 2023 e é válida para todas as unidades da rede estadual de educação, e em Natal o projeto de inclusão das mudanças climáticas no currículo das escolas públicas foi aprovado pelos vereadores em novembro.
Em São Paulo, o deputado Guilherme Cortez (Psol) apresentou um projeto de lei (PL) sobre o tema, mas que ainda não avançou na Assembleia Legislativa (Alesp). “Qualquer política pública que for apresentada nos próximos anos deve levar em conta o contexto atual de eventos extremos e do aquecimento global. A educação sobre os efeitos da mudança climática e as causas da emergência que vivemos pode impulsionar e incentivar que as novas gerações tomem nas suas mãos as decisões políticas, se mobilizem e atuem na sociedade para mudar esse cenário”, justifica o deputado.
Em Minas Gerais, o PL apresentado pelo deputado Elismar Prado (Solidariedade) tem como objetivo instituir o Programa Estadual de Educação Climática, ficando a cargo da Secretaria de Educação a implantação das diretrizes para a realização de palestras e ciclos formativos aos educadores sobre as mudanças climáticas. A proposta foi anexada a outro projeto de lei que trata da educação ambiental no estado e aguarda parecer no plenário desde outubro.
No Ceará, o PL do deputado Renato Roseno (Psol) que institui a educação sobre clima nas escolas estaduais está parado na Comissão de Constituição e Justiça da Assembleia Legislativa e não há previsão de quando será pautado, conforme reportagem de O Eco.
No Congresso Nacional, uma proposição tramita na Câmara e outra no Senado. O PL nº 1873/2022, de autoria da Comissão de Meio Ambiente do Senado, inclui a conscientização sobre mudanças climáticas na Política Nacional de Educação Ambiental e estabelece a criação, pelo governo federal, do Programa Nacional de Promoção de Escolas Sustentáveis.
Entretanto, a proposta tem enfrentado resistência. Em novembro, o senador bolsonarista Zequinha Marinho (Podemos-PA) solicitou a realização de uma audiência pública com a finalidade de “aprofundar discussões” sobre o PL. No requerimento, o senador escreveu: “Apesar de nobre objetivo, entendemos a necessidade de garantir que a educação ambiental seja objetiva, imparcial e equilibrada, sem permitir que seja utilizada como uma ferramenta para promover ideologias específicas”.
Na Câmara, o deputado Pedro Aihara (Patriotas-MG) apresentou o PL nº 1.236/2023, que faz um conjunto de ajustes na PNEA ao adicionar as mudanças climáticas nos objetivos do documento. “A PNEA possui várias virtudes na sua base, porém entendemos a necessidade de aperfeiçoamentos constantes, em especial na conscientização das pessoas e na elaboração de pesquisas e estudos avançados sobre o clima”, afirmou Aihara à Pública. Em dezembro, a relatora da proposta, deputada Socorro Neri, deu parecer favorável ao PL, que aguarda o prazo de apresentação de emendas.
–
Turma de estudantes com pluviômetro caseiro. Arquivo pessoal/Jurandy Clementino