Para as lideranças, há outras barreiras, além da Lei do Marco Temporal, que tem atravancado a demarcação de suas terras
Na última semana, as salas, os auditórios e os corredores dos órgãos públicos federais de Brasília (DF) foram movimentados pela presença indígena dos povos Xokleng, Kaingang e Guarani Mbya e Nhandeva.
Mais de 40 lideranças dos estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná e São Paulo desembarcaram na capital federal para reivindicar a demarcação de suas terras e pedir a inconstitucionalidade da Lei 14.701/2023, promulgada no final do ano passado e que ficou famigeradamente conhecida como a “Lei do Marco Temporal”.
Mais de 40 lideranças dos estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná e São Paulo desembarcaram na capital federal
Acostumados às longas jornadas de mobilização,os indígenas percorreram ao longo da semana mais de uma dezena de órgãos dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Dentre eles, Ministério da Justiça (MJ), Secretaria Geral da Presidência da República, Ministério dos Povos Indígenas (MPI), Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), Câmara Federal, Supremo Tribunal Federal (STF), Procuradoria Geral da República (PGR), Advocacia Geral da União (AGU) e 6ª Câmara de Coordenação e Revisão de Populações Indígenas e Comunidades tradicionais do Ministério Público Federal (MPF).
Na passagem por Brasília, as lideranças também participaram de uma reunião com a Relatora Especial das Nações Unidas sobre a Situação de Pessoas Defensoras de Direitos Humanos e mobilizaram atos em frente ao Palácio do Planalto e ao STF.
Acostumados às longas jornadas de mobilização, os indígenas percorreram ao longo da semana mais de uma dezena de órgãos
Em ambas as manifestações, o pedido era o mesmo: a demarcação de suas terras e a inconstitucionalidade da Lei 14.701, cuja vigência passa a obrigar os órgãos públicos responsáveis pelo andamento dos procedimentos demarcatórios a cumprir a nova normativa.
A vigência da Lei, que possui em seu conteúdo, entre outros retrocessos, a tese do marco temporal, trava o andamento de diversos procedimentos administrativos de demarcação de terras indígenas em todo o país. Por isso, a importância do STF declarar sua inconstitucionalidade.
Em ambas as manifestações, o pedido era o mesmo: a demarcação de suas terras e a inconstitucionalidade da Lei 14.701
A Lei do Marco Temporal possui três Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI) aguardando análise da Suprema Corte. As ADIs estão sob a relatoria do ministro Gilmar Mendes, que ainda não se manifestou sobre os pedidos.
Em setembro do ano passado, o STF, em recurso extraordinário de repercussão geral, decidiu por afastar a tese anti-indígena do marco temporal, confirmando o direito originário dos povos garantido pela Constituição Federal. Cabe, agora, à Suprema Corte reafirmar sua decisão nas ações em curso.
As demarcações não podem parar
Enquanto o STF não decide pela invalidade da lei, os indígenas reivindicam a continuidade das demarcações. Para as lideranças, não há razão para que as demarcações parem diante de uma lei que se sobrepõe, em seu conteúdo e sua forma, à Constituição Federal.
Para os indígenas, mesmo com a lei em vigor, há terras em demarcação cuja aplicação do marco temporal, um dos pontos de maior preocupação da lei, não possui efeito prático. “A gente sabe que tem terras que não entram dentro da tese do marco temporal”, explicou Saulo, Guarani Mbya da região do Vale do Ribeira, em São Paulo. ”Essas terras já podem ser vistas”, continuou uma outra liderança presente na reunião realizada na última quinta-feira (11) com membros da equipe do MPI.
“A gente sabe que tem terras que não entram dentro da tese do marco temporal”
É o caso da Terra Indígena (TI) Tupinambá de Olivença, que aguarda há 15 anos a publicação de portaria declaratória, cuja emissão é incumbência do Ministério da Justiça. Em nota técnica publicada em junho de 2018 pela Procuradoria Federal Especializada (PFE) da Funai, em resposta a uma diligência requerida pelo próprio MJ, a PFE atestou a existência de comprovação documental sobre “um processo histórico de esbulho dos indígenas das parcelas do seu território, bem como documentos que comprovam a ocupação da comunidade indígena Tupinambá em 1988 na Terra Indígena (TI) Tupinambá de Olivença”, afirmou no documento.
Além da paralisação dos processos demarcatórios, a Lei 14.701 tem se tornado o mote de violência e morte nos territórios, o que vem afligindo as comunidades indígenas do Sul e Sudeste pela derrubada da lei e pela continuidade dos processos de demarcação. ”A gente não pode ficar aguardando nosso povo ser morto a tiros e ser enganado pelo povo juruá”, afirmou Saulo.
a Lei 14.701 tem se tornado o mote de violência e morte nos territórios
Mas não são só os entraves interpostos pela referida lei que tem causado preocupação às lideranças indígenas. Para Kretã Kaingang, membro da coordenação executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) representando a Articulação dos Povos Indígenas da Região Sul (ArpinSul), há um outro “entrave no governo federal chamado Rui Costa, que não tem trazido nada de positivo para nós, povos indígenas”.
Durante o ato realizado em frente ao Palácio do Planalto, a liderança fez duras críticas ao atual ministro da Casa Civil, que possui a atribuição, dentro do processo demarcatório, de analisar a documentação dos procedimentos para a homologação das terras indígenas, ato administrativo que é de responsabilidade do Presidente da República. “Ele que orienta toda a estrutura do governo para demarcação das terras, inclusive orienta o próprio Presidente da República se pode ou não demarcar terra indígena. Então, esse Rui Costa, da Casa Civil, pode ser sim considerado um inimigo dos povos indígenas”, manifestou a liderança em ato realizado na terça-feira (9), em frente ao Palácio do Planalto.
“Não podemos mais esperar”
A vinda dos povos do Sul e Sudeste à Brasília antecede em algumas semanas o Acampamento Terra Livre (ATL), a maior mobilização indígena do país, que ocorrerá entre os dias 22 e 26 de Abril.
As lideranças, contudo, decidiram não esperar o final do mês para ter alguma notícia sobre a demarcação de suas terras, uma vez que “essa jornada é uma jornada estratégica para saber como vamos caminhar depois do ATL”, considerou Kretã.
“Essa jornada é uma jornada estratégica para saber como vamos caminhar depois do ATL”
O mês que marca a celebração do Abril Indígena costuma ser aguardado pelos povos, dada a promessa de campanha do presidente Lula de fazer avançar, em seu governo, as demarcações de terras indígenas.
As últimas demarcações se deram em abril do ano passado, quando o presidente assinou os decretos de homologação de seis Terras Indígenas e criou cinco novos Grupos de Trabalho (GTs) de identificação e delimitação dessas áreas. Desde então, não houveram avanços nos procedimentos de demarcação, que encontram um gargalo ainda maior na etapa de declaração das terras indígenas, penúltima no âmbito demarcatório.
As últimas demarcações se deram em abril do ano passado
Desde 2018, os povos sofrem com uma total paralisia na emissão de portarias declaratórias, principal ponto de discussão na reunião realizada com o MJ, que cumpre a atribuição de declarar as terras indígenas.
Em meados do ano passado, o Congresso Nacional tirou do MPI a competência de reconhecer e declarar as terras indígenas, função que voltou a ficar ao encargo do MJ. A pasta, no entanto, em quase um ano de gestão não conseguiu apresentar nenhum progresso na etapa de declaração de terras indígenas.
Os povos sofrem há alguns anos com uma total paralisia na emissão de portarias declaratórias
Dos 61 pedidos de demarcação demandados pelos povos Xokleng, Kaingang e Guarani Mbya, 12 ainda aguardam a emissão de portaria declaratória, 17 precisam do decreto de homologação e 11 esperam a conclusão dos estudos de identificação e delimitação. A criação de GTs de identificação e delimitação é também ansiada em outros 16 processos.
Para as lideranças, há uma prática de abandono exercida pelo Estado. “É nesse desespero que estamos aqui”, expressou Saulo, que aguarda resposta sobre a emissão de portaria declaratória de nove territórios de seu povo.
“A gente respeitou o governo por 12 meses. Mas não podemos esperar mais um ano sem ter avanço na demarcação de terras”, exigiu Kretã na ocasião do encontro com a equipe da Secretaria de Acesso à Justiça do MJ.
Barco sem rumo
Para as lideranças, é preciso um alinhamento entre os órgãos do governo federal para se fazer avançar com as demarcações das terras indígenas. “Esses setores que trabalham pelas demarcações precisam se unir”, considerou Geomar Xokleng que, assim como as demais lideranças, notam a explícita desarticulação entre o MPI, a Funai, o MJ e a Casa Civil, órgãos do Estado responsáveis por demarcar, declarar e homologar as terras indígenas.
“É como se todo mundo estivesse perdido. A gente sente que cada um [dos órgãos] tem um remo e cada um está remando para um lado diferente e a gente não está conseguindo se juntar na mesa. Assim o barco não vai para frente”, afirmou Kretã em reunião MPI.
“É como se todo mundo estivesse perdido”
A desarticulação, agravada com a Lei 14.701, tem implicado em um novo ciclo de paralisia nos processos de demarcação que requer, segundo a liderança, “uma posição [do governo] que oriente o trabalho das instituições [responsáveis] pelas demarcações” no sentido de seguir ou não as determinações da Constituição Federal.
“A lei está impedindo a nossa demarcação, então é nosso papel cobrar uma posição, considerou Brasílio Pripá, liderança do povo Xokleng, em reunião com assessores da Procuradoria Geral da República (PGR), realizada um dia antes da emissão do parecer que pediu ao STF a inconstitucionalidade de alguns trechos da lei. A manifestação da PGR se insere na Ação Cível Originária (ACO) 1.100, que trata da demarcação da TI Ibirama La-Klãnõ, do povo Xokleng.
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Ato realizado em frente ao Palácio do Planalto por indígenas Xokleng, Kaingang e Guarani Mbya e Nhandeva. Foto: Maiara Dourado/Cimi