RS: A tragédia (também) da “pós-verdade”

A espetacularização da dor, como ocorria nos anos 90, parece ter dado lugar às fake news. Velhas mídias distorcem fatos e redes bolsonaristas convertem solidariedade em ódio. Neste contexto, quais os caminhos para construir uma eficiente comunicação pública?

por Rodrigo Maurício Freire Soares, em Outras Palavras

O governo Lula não se comunica bem. Essa talvez seja uma das frases mais lidas em postagens de especialistas anônimos em comunicação pública nas redes sociais ou ditas em longuíssimos podcasts que discutem política. A competência em estar nas redes sociais tem sido debatida para além do conteúdo do acontecimento em si, e este definitivamente é um dos grandes fenômenos da política contemporânea e dos novos parâmetros que norteiam a comunicação pública. Basta sair uma pesquisa sobre popularidade do governo federal com uma redução de 2 ou 3 pontos percentuais do “ótimo ou bom” para que a frase seja prontamente evocada: “É, o governo não está sabendo se comunicar com a sociedade, com seus pares, com o Congresso”. Em meio aos eventos decorrentes do aquecimento global que se evidenciaram no sul do país, o controle da narrativa oficial da tragédia gaúcha põe em xeque a comunicação do governo, que se ocupa em informar o que faz e reforçar repetidamente que está informando o que faz, em um duplo esforço de guerrilha midiática.

Vivemos tempos estranhos. O governador do Rio Grande do Sul pediu ajuda ao governo federal para lidar com as consequências do aquecimento global em seu Estado por meio do twitter. Este é o X da questão, ou talvez um deles. A arena pública fora virtualizada e tem trazido para este campo digital o caráter oficial da comunicação governamental. Não bastaria ao governador apenas comunicar-se com o presidente por telefone, de forma direta e igualmente instantânea, era preciso ter os holofotes para suas postagens e para os comentários em réplica infinita, era preciso ter a eternidade prometida pela possibilidade de print da postagem. Soma-se a este primado do digital, a mudança dos figurinos dos governantes, saem as gravatas e entram em cena as jaquetas que emulam as vestimentas dos socorristas. Vimos isso durante a pandemia de covid-19 nas coletivas de imprensa e podemos acompanhar ainda com um Zelensky, na Ucrânia. Ou seja, para além do acontecimento em si, a imagem. Fatos históricos como este que estamos vivendo, de proporções não mensuráveis, são definidores de como o cidadão comum contará essa história no futuro. Que atores foram omissos? Quais estiveram presentes? Quais fugiram do epicentro da crise (do estado do RS ou mesmo do país)?

Se voltarmos um pouco no tempo, nas décadas de 80 e 90 a televisão ainda ocupava um lugar no imaginário social de principal ente promotor da espetacularização da realidade, sobretudo por essa dimensão da imagem. Hoje, em um contexto midiático mais ampliado e com diferentes canais e formas de comunicação, temos um misto de espetacularização, desinformação e desregulação sobre o que é permitido ou proibido na comunicação pública, fazendo com quem sempre estejamos buscando abrigo em alguma última trincheira da verdade. Decerto, os meios de comunicação carregam um dilema histórico: serem empresas com seus interesses econômicos e visão de sociedade versus informarem o cidadão (sem que esta sua natureza organizacional e ideológica interfira na mensagem). Este dilema se evidenciou recentemente quando, mesmo em meio à divulgação pelo governo federal de recursos na ordem de bilhões para reconstrução do Rio Grande do Sul, um canal de televisão inventou deliberadamente uma situação em que os caminhões de ajuda estariam sendo barrados, ou mesmo um jornal que noticiou uma recusa de ajuda uruguaia ao Brasil. Nitidamente, não há aqui o interesse público preconizado e esperado na esfera da comunicação pública, mas sim interesses de natureza menos nobre. Aparentemente não temos mais a espetacularização da dor nos mesmos moldes de como se via nas décadas de 80 e 90, que fora substituída em alguns casos por um jornalismo de verdades flexíveis.

Então, quando ouvimos que o governo [Lula] não se comunica bem, sobre qual comunicação estamos falando? A comunicação política? A comunicação publicitária? O que seria uma boa comunicação governamental? Há como se ter boa comunicação governamental ou a crítica que tem sido feita configura-se apenas em um mero exercício de retórica de cunho ideológico e econômico? As condições para uma comunicação governamental eficaz têm sido depreciadas frente ao esfacelamento das condições ideais de ambiência da comunicação pública. E, neste sentido, é difícil falarmos em uma comunicação governamental ruim se há um ambiente mais amplo da comunicação pública pautado pela desinformação deliberada e intencional e ataques à própria democracia. O debate sobre comunicação pública desloca-se, neste contexto, para o campo do direito, da regulamentação sobre notícias falsas, do cometimento de crimes de parte de influenciadores e imprensa que replicam informações falsas. É preciso que haja responsabilização e aplicação da lei para estes casos.

Estamos em um momento em que os parâmetros históricos que perfazem a comunicação governamental e a comunicação pública, em verdade, enfrentam um “negacionismo informacional”. Neste capítulo dramático da história do Rio Grande do Sul e do Brasil, parece evidente que, embora os governos busquem divulgar o que pretendem fazer, temos um ambiente da comunicação pública contaminado pela desinformação e que dificulta a comunicação emergencial em meio à crise. Se a tragédia ambiental nos conduzirá a repensar as nossas práticas e como organizamos e gerimos as nossas cidades, talvez devêssemos refletir sobre esta comunicação pública de fato mas compromissada com o interesse coletivo, sendo igualmente uma urgência relacionada a como nos organizamos em sociedade.

Foto: Florian Plaucheur/AFP

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