Socióloga investiga, desde 2018, a ascensão deste fenômeno na esfera política. Quais as motivações deste “paradoxo” e sua força no Congresso? Por que ele é estimulado pelos partidos? E como o sentimento de “amparo” do patriarcado se converte em votos?
Camila Galetti em entrevista Kelly Ribeiro, no Portal Catarinas
Camila Galetti, doutora em sociologia pela Universidade de Brasília (UNB) e pesquisadora de antifeminismo e extrema direita, iniciou nas eleições de 2018 a análise do crescente discurso antifeminista entre parlamentares mulheres de direita e centro-direita.
Naquele ano, a significativa mudança na Câmara dos Deputados, que passou de uma representatividade feminina de 10% para 15%, impulsionada principalmente pela eleição de parlamentares de partidos de direita e extrema direita, chamou sua atenção e foi um dos pontos de partida de sua pesquisa.
Galetti investigou os afetos e motivações que permeiam a aversão à agenda feminista entre as parlamentares desse campo, considerando diversos recortes sociais, como classe, raça, grau de instrução e relação com a política. Seu objetivo era compreender como essas mulheres se apoiam em discursos que, paradoxalmente, prejudicam seus próprios direitos.
No último pleito, o número de parlamentares mulheres também aumentou. Atualmente, a Câmara é composta por 90 deputadas e 423 deputados federais. O PL tem a maior bancada com 99 cadeiras, seguido da bancada PT-PV-PC do B com 81, segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
Em entrevista ao Catarinas, a socióloga destaca que é importante estudar movimentos antidemocráticos e avalia como a presença de mulheres é usada em projetos que vão contra os direitos das próprias mulheres, como é o caso do PL 1904 assinado por 12 parlamentares. Além disso, ela chama a atenção para a necessidade de partidos progressistas formarem mais quadros femininos e progressistas.
“Mulheres progressistas são invalidadas em seus partidos, sofrem violência política de gênero, exercem o trabalho de cuidado, não são incentivadas para integrarem quadros políticos. Quem que vai querer estar na política para sofrer? A mulher entra na política para sofrer violência praticamente. Isso é muito grave”. Confira a entrevista.
Como podemos definir o antifeminismo e quais as relações e interfaces que ele tem com a afirmação do machismo?
Ele é uma reação aos movimentos feministas. Ele tem como finalidade diluir, amenizar todas as pautas que perpassam as questões das mulheres, sobretudo por se compreender, a partir dessa perspectiva, que os feminismos são uma ameaça à categoria mulher, aos discursos essencialistas, a um projeto político de Estado, de cultura, que estão baseados nos papeis sociais de gênero. Sua finalidade é diluir a pauta das mulheres e fazer um contramovimento, fazer essa disputa de narrativas.
Ele pode ser considerado um movimento?
Eu não o considero um movimento social porque ele se apresenta como um contramovimento e ainda não tem características que o tornem um movimento social. Apesar de ter uma agenda em comum com movimentos masculinistas, que é a destruição das pautas e da visibilidade dos movimentos feministas, ele não está organizado a esse ponto.
Os redpill, incels, por exemplo, têm organização, têm ação, enquanto o antifeminismo, no momento, é uma resposta. Ele é embrionário, tem suas figuras centrais, porém não é organizado ao ponto de ser considerado um movimento social. Ele está muito atrelado à ideologia da extrema direita, então ele é uma ramificação dessa extrema direita e vai se manifestar nesse espectro ideológico. É um dos fios condutores.
Você comentou sobre ele estar atrelado a essa questão da ideologia, ele é exclusivo da extrema direita?
Ele é exclusivo de governos autoritários.
A historiadora Charu Gupta fala que a primeira experiência de antifeminismo no mundo foi a do nazismo. Esses discursos essencialistas, as ideias do que é uma mulher, do que é um homem e quais as funções sociais que eles vão desempenhar. Então, percebemos que ele está atrelado ao autoritarismo e esse autoritarismo se manifesta na extrema direita.
Então, ele surge nesse período marcado por governos autoritários?
Sim. Na experiência da Alemanha nazista, na experiência do fascismo na Itália. E aí tem algo que é fundamental quando falamos nesse assunto. Eu demorei bastante tempo para chegar até isso porque me perguntava “Como uma mulher tem esse discurso tão atrelado a um pensamento patriarcal?”.
Analisando as deputadas federais de extrema direita, percebi que elas são recompensadas por estarem naquela posição e falarem o que elas falam. Primeiro, porque majoritariamente são mulheres brancas, então há uma questão racial muito forte. Essas mulheres se atrelam a esses discursos porque, de fato, acreditam num discurso homogêneo, de limpeza mesmo. Elas acreditam numa categoria única de ser mulher e sabemos que não existe só um jeito de ser mulher porque há recortes de raça, etnia, de classe social.
As deputadas federais de extrema direita são recompensadas por estarem naquela posição. Primeiro, porque majoritariamente são mulheres brancas, então há uma questão racial muito forte. Essas mulheres se atrelam a esses discursos porque, de fato, acreditam num discurso homogêneo, de limpeza mesmo. Elas acreditam numa categoria única de ser mulher e sabemos que não existe só um jeito de ser mulher porque há recortes de raça, etnia, de classe social.
O antifeminismo captura questões que são caras ao movimento feminista quando diz que as mulheres são guerreiras, que elas não precisaram do movimento feminista para terem direito ao voto, que não precisam deles para estarem na política institucional. Essa é a maior narrativa delas. E muitas vezes tiramos a agência e a autonomia dessas mulheres por acharmos que elas são cortinas de ferro. Mas elas possuem autonomia e são recompensadas por serem como elas são.
Pode comentar mais sobre essa relação entre o discurso antifeminista e o discurso fascista?
O fascismo, seja ele Itália ou em outro lugar, promoveu a ideia de que as mulheres são desprovidas de racionalidade, são seres apenas emocionais e, portanto, incapazes de liderarem ou planejarem assassinatos em massa, por exemplo. Então, elas precisam ser mantidas nesse lugar de inferioridade porque são incapazes. Trata-se de um discurso essencialista. [Benito] Mussolini, por exemplo, tinha uma frente chamada “Deus, Pátria e Família” formada por mulheres católicas com quem ele negociou o direito ao voto em troca de apoio, contudo ele só as deixava votar com a permissão dos homens.
Ou seja, ele entendeu que as mulheres eram importantes para o seu projeto político, mas existia uma hierarquia. Então, o fascismo vai se estabelecendo a partir dessa lógica patriarcal. Por isso é possível, sim, fazer essa associação, e, sobretudo, entendendo que o fascismo foi estruturado a partir das desigualdades e hierarquias sociais de gênero. Por ter se estabelecido assim, as mulheres têm um papel secundário na sociedade
As mulheres só têm visibilidade, como já mencionei, se elas estiverem reproduzindo o discurso patriarcal. O que é contraditório porque elas falam de família, de cuidado, mas elas estão lá no Planalto, na Câmara dos Deputados, 12 horas por dia, e não estão exercendo o cuidado, fugindo do papel destinado pela lógica que elas mesmas acreditam. Por isso que elas também resgatam o discurso de “Vou cuidar da nação”, “Vou cuidar do Brasil”, “Quem ama cuida”, “Eu tenho família, tenho filhos”.
Levam essa questão do cuidado para esse espaço sem realmente estarem preocupadas com ela, como a gente bem sabe.
Voltando ao que leva uma mulher a adotar o discurso antifeminista, seria a questão da recompensa?
Também. Mas há o sentimento de amparo que o patriarcado produz. Eu também pesquiso o fenômeno pela chave dos afetos e a nossa sociedade, da maneira como está estruturada, gera medo e insegurança para as mulheres. Seja na rua ou no ambiente de trabalho, existe o medo de sofrer assédio, a questão de decidir sobre o seu próprio corpo, etc. Então, se eu tiver um companheiro homem, um provedor do lar, eu vou me sentir segura. Se eu estou na política institucional, sou antifeminista, mas tenho um companheiro, eu tenho coisas que contribuem para que eu me sinta segura e validada na sociedade.
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A deputada federal Júlia Zanatta (PL)