O encontro discutiu os desafios enfrentados pelos povos indígenas brasileiros e destacou a Lei que institui o marco temporal como uma das maiores ameaças às populações originárias
Na última quarta-feira (04), em encontro com o Representante Especial da União Europeia (UE) para os Direitos Humanos, Olof Skoog, organizações indígenas e indigenistas denunciaram a inconstitucionalidade da Lei 14.70/2023, também conhecida como a ‘Lei do Marco Temporal”. A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 48/2023, que busca alterar os artigos 231 e 232 da Constituição Federal de 1988 também foi pautada como alvo de preocupação das organizações. Os artigos explicitam o reconhecimento à identidade cultural própria e diferenciada dos povos indígenas, bem como, os seus direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam.
A reunião realizada na sede da Delegação da União Europeia no Brasil, em Brasília, buscou discutir com o Representante Especial os diversos desafios enfrentados pela sociedade brasileira na área dos direitos humanos. Dentre os principais desafios debatidos na reunião, evidenciou-se os direitos dos povos indígenas, das pessoas LGBTI+, a igualdade de raça e gênero, o empoderamento de mulheres e defensores e defensoras dos direitos humanos e do meio ambiente.
“O encontro buscou discutir com o Representante Especial os diversos desafios enfrentados pela sociedade brasileira na área dos direitos humanos”
As ações antidemocráticas e anti-indígenas do Congresso Nacional foram a centralidade das denúncias realizadas pelas organizações presentes no encontro. Participaram do diálogo representantes da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib); do Conselho Indigenista Missionário (Cimi); Sociedade Maranhense de Direitos Humanos (SMDH); VoteLGBT; Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc); e do Instituto Democracia e Sustentabilidade (IDS).
O processo de escuta realizado pela Delegação da União Europeia é providencial, avalia Dinamam Tuxá, da coordenação executiva da Apib. Apesar da eleição de Lula, mantem-se um “Congresso reacionário que atenta contra os direitos dos povos indígenas e os direitos sociais. A exemplo da recente criação da ‘Lei do Marco Temporal’, a Lei 14.701, e da PEC 48 que tem gerado um aumento significativo na insegurança jurídica e nos conflitos socioambientais”, completa.
“Apesar da eleição de Lula, mantem-se um Congresso reacionário que atenta contra os direitos dos povos indígenas e os direitos sociais”
A promulgação da Lei e a atual movimentação da PEC 48 se dão à revelia da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), que em setembro de 2023 fixou o entendimento de que o “marco temporal” para a demarcação de terras indígenas é inconstitucional. No mesmo dia, algumas horas após a sessão da Corte, o Senado Federal protocolou a Proposta de Emenda Constitucional de nº48 (PEC 48/2023) que busca alterar o inciso 1º do artigo 231 da Constituição Federal, na tentativa de constitucionalizar a tese ruralista. Em dezembro do mesmo ano, já durante o recesso legislativo, o Senado Federal promulgou a Lei 14.701/2023, que além de instituir o marco temporal, abre caminho para outros graves retrocessos.
Em vigor, a Lei tem causando insegurança física e jurídica para os povos indígenas do Brasil e instaurado uma situação de conflito constitucional: a ação do Congresso inseriu no ordenamento legal brasileiro uma norma legislativa que é inconstitucional em seu conteúdo e em sua forma.
“A Lei tem causando insegurança física e jurídica para os povos indígenas do Brasil e instaurado uma situação de conflito constitucional”
Com a aplicabilidade da lei, “há uma paralização total dos processos de demarcações dos territórios indígenas, um aumento da violência, principalmente na região amazônica, que vivenciam a exploração ilegal de minérios e as invasões dos territórios pelo agronegócio”, explica a secretária adjunta do Cimi, Ivanilda Torres dos Santos. Além disso, a Lei desencadeia um aumento nos casos de esbulho possessório das terras indígenas, houve um aumento nas reintegrações de posse, desencadeando um cenário de vulnerabilidade para os povos originários em todo país, estando em áreas demarcadas ou não, completa Ivanilda.
“No contexto dessa insegurança jurídica, que é promovida pelo Congresso Nacional, nós temos ações que são financiadas por setores econômicos, essas ofensivas estão tramitando no Congresso Nacional. Dentre esses interesses econômicos, destaco o agronegócio e as grandes mineradoras”, denuncia Dinamam.
“Há uma paralisação dos processos de demarcações dos territórios indígenas, um aumento da violência, da exploração ilegal de minérios e as invasões pelo agronegócio”
Sobre o tema, o coordenador executivo da Apib ainda alerta haver um processo de negociação entre os três Poderes (Legislativo, Executivo e Judiciário), exercido por meio de lobby de empresas mineradoras para flexibilizar a exploração das terras indígenas.
Na avaliação do coordenador da Apib, “infelizmente, o governo brasileiro tem pactuado com essas negociações. O Judiciário criou uma Câmara de Conciliação, onde vai debater questões relacionadas à mineração das terras indígenas e nós estamos preocupados, porque há um consenso entre os três Poderes. Ou seja, de todas as formas, os povos indígenas estão sendo objeto de barganha, objeto de negociação se valendo dos nossos direitos e dos nossos territórios”, afirma Dinamam. Há necessidade de se criar mecanismos legais para assegurar os direitos dos povos indígenas nessa discussão, inclusive, no acordo do Mercosul na União Europeia, completou.
“Há um processo de negociação entre os três Poderes exercido por meio de lobby de empresas mineradoras para flexibilizar a exploração das terras indígenas”
Alvo de denúncias por parte das demais organizações, o atual Congresso Nacional foi listado como “o mais contrário” aos direitos indígenas, ambientais, das pessoas LGBTI+, igualdade de raça e gênero e de defensores e defensoras dos direitos humanos em geral. Até mesmo o diálogo foi posto como um desafio.
Ao ouvir as organizações, o Embaixador destacou que a sua delegação se reunirá “com o governo [brasileiro] o dia inteiro amanhã. É por isso que é tão importante ouvir vocês antes disso, e eu ouço muito atentamente vocês, sobre as preocupações que vocês têm e qual é o tipo de mensagem que precisamos transmitir”, assegurou Skoog, ao falar da importância da comitiva ouvir as organizações brasileiras e acolher suas denúncias.
“Eu ouço muito atentamente vocês, sobre as preocupações que vocês têm e qual é o tipo de mensagem que precisamos transmitir”
O objetivo do encontro, segundo o embaixador, não é apenas ouvir as organizações, o que é muito importante para que possam ser criadas políticas que venham suprir as medidas denunciadas, mas também por ser um fenômeno crucial para que qualquer sociedade ou democracia funcione. Para Skoog, é fundamental o respeito aos direitos indígenas, o direito à terra, a melhores condições de trabalho e à proteção dos direitos humanos.
“Nós sempre protegeremos o espaço para que a sociedade civil possa fazer seu trabalho com segurança. Nós sempre insistiremos com os governos ao redor do mundo para que eles incluam a sociedade civil na sua formulação de políticas, devem proteger aqueles que são afastados dos direitos humanos, que sabemos, em muitos países estão passando por situações muito difíceis”, reforça o Embaixador.
“É fundamental o respeito aos direitos indígenas, o direito à terra, a melhores condições de trabalho e à proteção dos direitos humanos”
Embora a definição de Direitos Humanos seja bastante ampla, também contempla os direitos indígenas e de comunidades étnicas a não discriminação. “Conversar com vocês, antes de conversar com o governo, é fundamental para ouvi-los em um diálogo franco e honesto, e acolher as coisas que vocês querem que nós façamos junto ao governo, e também com a comunidade internacional, a União Europeia pode apoiar o país a se movimentar sobre esses assuntos”, reforça Representante Especial da UE para os Direitos Humanos.
Em sua visita ao Brasil, o Embaixador e sua comitiva também se reuniram com representantes do Estado brasileiro, a fim de levar suas preocupações quanto aos relatos colhidos dos encontros com as organizações da sociedade civil brasileira.
“É fundamental ouvi-los e acolher as coisas que vocês querem que nós façamos junto ao governo, e também com a comunidade internacional, a União Europeia”
Ao STF, o pedido é pela suspensão da Lei 14.701
Na quarta-feira (03), a Delegação da EU também esteve em audiência com o ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal (STF). O encontro se deu em meio a diversas manifestações dos povos indígenas e suas organizações de base, que pediam a suspensão da Lei 14.701/2023.
A Suprema Corte já declarou inconstitucional a tese do marco temporal no ano de 2023 no processo RE 1017365 (Tema 1031), de relatoria do Ministro Edson Fachin. “Em clara afronta a decisão do STF, o Congresso Nacional aprovou a Lei 14.701/2023, em período de recesso parlamentar, que institui o marco temporal, além dessa Lei tornar o processo de demarcação ainda mais burocrático e mais moroso”, explica o Cimi em documento entregue ao Embaixador.
“Além de instituir o marco temporal, a Lei tornar o processo de demarcação ainda mais burocrático e mais moroso”
O povo Xokleng ingressou nesse mesmo processo, com um pedido cautelar de suspensão da Lei 14.701/2023. Cabe ao Ministro Edson Fachin, na condição de Relator, decidir por suspender a Lei que tem gerado enormes prejuízos aos povos indígenas do Brasil.
O impacto da Lei é percebido entre os indígenas com o aumento da violência, a invasão de terras que já foram demarcadas e a expulsão de comunidades de áreas que ocupam. “A Lei paralisou todos os processos de demarcação, deixando as comunidades em uma situação ainda mais difícil, pois aguardam a demarcação em acampamentos precários nas margens de rodovias, em fundos de fazendas ou nas periferias das cidades, sem acesso a água potável, a alimentação, saúde e educação”, reforça o Cimi.
“A Lei paralisou todos os processos de demarcação, deixando as comunidades em uma situação ainda mais difícil”
Em mobilizações recentes em Brasílias, lideranças indígenas têm pedido à Corte que o ministro Fachin seja relator de outras ações que discutem a inconstitucionalidade da Lei 14.701. “O pedido é para que ele possa reivindicar a relatoria dessas ações, e reuni-las em torno do RE 1017365 e evitar decisões conflitantes. É urgente, que seja suspensa imediatamente os efeitos da Lei 14.701 de 2023”, explicou Kretã Kaigang, um dos coordenadores do Levante pela Terra, realizado na última semana de junho, em Brasília.
“Esse encontro é extremamente importante e estratégico neste momento para a garantia dos direitos dos povos indígenas e uma palavra do sr. Skoog ao ministro Fachin seria absolutamente fundamental”, destaca o Cimi.
“Esse encontro é extremamente importante e estratégico neste momento para a garantia dos direitos dos povos indígenas”
Na sexta-feira (05), ocorreu o XII Diálogo de Alto Nível sobre Direitos Humanos entre Brasil e União Europeia. Em Declaração Conjunta, os países afirmam ter “renovado seu compromisso de manter interações regulares e acompanhamento operacional, aprofundando nossa cooperação duradoura”. O próximo Diálogo será realizado em Bruxelas, em 2025. A comitiva esteve no Brasil até o último sábado (06).
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O encontro discutiu os desafios enfrentados pelos povos indígenas brasileiros e destacou a Lei que institui o marco temporal como uma das maiores ameaças às populações originárias. Foto: Adi Spezia | Cimi