Fome recua, mas ainda afeta uma em cada 15 pessoas no Brasil, diz ONU

Relatório produzido no âmbito das reuniões do G20 aponta ainda que 864 milhões de pessoas em todo o mundo enfrentaram insegurança alimentar grave em 2023. Cenário global é de estagnação nos esforços para erradicação da fome, segundo as Nações Unidas

André Antunes – EPSJV/Fiocruz

O número de pessoas passando fome no Brasil em 2023 foi de 14,3 milhões. Esse foi, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), o número de brasileiros que passaram por situação de insegurança alimentar grave no ano passado. Essa é uma das conclusões do relatório ‘O Estado da Segurança Alimentar e da Nutrição no Mundo’. Conhecido como relatório SOFI e produzido por cinco agências vinculadas às Nações Unidas, o documento foi divulgado na quarta-feira (24), no Rio de Janeiro. O relatório anual foi lançado no contexto de uma reunião da Força Tarefa para uma Aliança Global contra a Fome e a Pobreza. Trata-se do principal projeto do governo brasileiro para o G20, reunião de líderes de 19 países, entre eles o Brasil, mais a União Europeia, que acontece em novembro no Rio.

Segundo o relatório, em 2023 o número de brasileiros em algum grau de insegurança alimentar – que pode ser moderada ou grave, na metodologia da ONU – foi de 39,7 milhões. Números que, apesar de elevados, apontam para uma melhora em relação ao cenário anterior, marcado pelos efeitos da pandemia de covid-19. O relatório anterior, que trouxe dados de 2020 a 2022, apontou que 21,1 milhões de pessoas se encontravam em situação de insegurança alimentar grave no país, de um total de 70,3 milhões de brasileiros com algum nível de insegurança alimentar.

Se no cenário brasileiro os números mostram uma evolução, a perspectiva global não é nada animadora: segundo o relatório desse ano, mais de 864 milhões de pessoas no mundo enfrentaram insegurança alimentar grave em 2023. Somado ao número de pessoas em situação de insegurança alimentar moderada, o quadro desenhado pelo relatório é preocupante: em 2023, cerca de 2,3 bilhões de pessoas enfrentaram algum nível de insegurança alimentar, quase 30% dos cerca de 8 bilhões de habitantes do planeta. Um retrocesso de 15 anos nos níveis de desnutrição mundial atuais, comparáveis aos de 2008-2009 e um cenário distante do cumprimento de uma das metas dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, firmados em 2015, de erradicação da fome até 2030.

“A insegurança alimentar e a má nutrição estão piorando devido a uma combinação de fatores, incluindo a persistente inflação dos preços dos alimentos que continua a corroer os ganhos econômicos de muitas pessoas em muitos países. Os principais fatores desencadeantes, como conflitos, mudanças climáticas e desacelerações econômicas, estão se tornando mais frequentes e severos. Esses problemas, juntamente com fatores subjacentes como dietas saudáveis inacessíveis, ambientes alimentares insalubres e desigualdade persistente, agora estão coincidindo simultaneamente, amplificando seus efeitos individuais”, alerta o documento da ONU.

No final de 2023, o governo brasileiro lançou o Plano Brasil sem Fome, como estratégia para enfrentamento do crescimento da insegurança alimentar observado no país desde 2020. O Plano tem como meta tirar o Brasil do Mapa da Fome da ONU – que reúne os países que têm mais de 2,5% da população passando fome – até 2030, bem como reduzir ano a ano as taxas de pobreza e reduzir a insegurança alimentar. Para isso o plano prevê como estratégias o aumento da renda disponível das famílias para comprar alimentos, o mapeamento e identificação de pessoas em insegurança alimentar para inclusão em políticas de proteção social e acesso à alimentação, e a integração de iniciativas de combate a fome entre governos, poderes públicos e sociedade civil.

Ainda sob os efeitos da pandemia

Segundo as Nações Unidas, o número de pessoas que passam fome no mundo tem se mantido em um patamar elevado ano após ano desde 2020, quando, em meio à pandemia de covid-19, disparou o contingente mundial de pessoas sem ter o que comer. O relatório SOFI de 2021 aponta que após permanecer relativamente estável nos cinco anos anteriores, a prevalência da desnutrição aumentou de 8,4% em 2019 para 9,9% em 2020, o que significa que naquele ano 161 milhões de pessoas somaram-se à população mundial que passava fome. Em meio à pandemia, o número de pessoas sem acesso adequado a alimentação cresceu em 320 milhões de pessoas em relação a 2019, chegando a 2,37 bilhões, quase um em cada três habitantes do planeta, segundo a ONU.

No Brasil não foi diferente. Por aqui, a pandemia eclodiu em um cenário de desemprego elevado, precarização do trabalho e de redução do orçamento de políticas públicas fundamentais para o enfrentamento da insegurança alimentar no país, o que contribuiu substantivamente para o aumento da fome no país. Essa foi uma conclusão do inquérito ‘Insegurança Alimentar e Covid-19 no Brasil’, produzido pela Rede de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Penssan), com dados de 2020. O inquérito identificou 117 milhões de pessoas em algum grau de insegurança alimentar no país em 2020, sendo 19 milhões em estado grave, ou seja, passando fome. Outras 24,2 milhões de pessoas encontravam-se em insegurança alimentar moderada (quando a quantidade de alimentos é insuficiente) e 73,4 milhões no primeiro estágio, considerado leve (quando há incerteza quanto ao acesso a alimentos em um futuro próximo e/ou quando a qualidade da alimentação já está comprometida). Números que representaram um retrocesso aos patamares de 2004.

Passados dois anos, o cenário ficou ainda pior. O 2º Inquérito Insegurança Alimentar e Covid-19 no Brasil’, com dados de 2021 e 2022, da Rede Penssan, identificou que 33 milhões de brasileiros passavam fome, 14 milhões a mais do que em 2019; 32 milhões encontravam em insegurança alimentar moderada e 60 milhões em insegurança alimentar leve. Ao todo, 125 milhões de brasileiros, mais da metade da população, não tinham certeza se teriam o que comer em um futuro próximo, segundo a última pesquisa publicada pela Rede Penssan.

ONU e Rede Penssan: diferenças metodológicas e resultados distintos

Cabe dizer que os dados de 2021-2022 diferem daqueles apresentados pelo Relatório SOFI, da ONU, de 2023, que apresentou uma média dos anos de 2020, 2021 e 2022. Esse, como dito no início da matéria, estimou em 21,1 milhões de pessoas em insegurança alimentar grave no Brasil naquele período, e 49,2 milhões em insegurança alimentar moderada. Ao contrário da Rede Penssan, a ONU não tem uma categoria de insegurança alimentar leve. Outra diferença metodológica, que explica a diferença nos dados, é que a ONU se baseia numa escala chamada Food Insecurity Experience Scale, que tem pontos de corte que estabelecem as categorias de gravidade da insegurança alimentar diferentes da escala adotada pela Rede Penssan, chamada de Escala Brasileira de Insegurança Alimentar. Quando somadas à insegurança alimentar moderada e grave, no entanto, os números apresentados pela ONU relativos ao triênio 2020-2022 e pela Rede Penssan em 2021-2022 se assemelham: 70,3 milhões e 65,5 milhões, respectivamente.

Foto: Clara Aguiar / BdF

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