“Em termos práticos, esse movimento de pinças significa que devemos evitar confundir tudo se quisermos discernir as razões que favorecem o triunfo – ou eventual derrota – da extrema-direita e, ao mesmo tempo, medir o que as conecta. Isso requer que identifiquemos os movimentos e genealogias que existem entre elas, mesmo que os contextos nacionais sejam, é claro, sempre específicos”
por Joseph Confavreux e Ellen Salvi*, em Nueva Sociedad / IHU
A extrema-direita constitui um mundo heterogêneo, que põe em tensão as estruturas analíticas progressistas e se coloca como o instrumento para enfrentar o status quo. O ‘Não passarão’ parece hoje insuficiente para deter esses movimentos. Por onde poderia começar o rearmamento progressista nesse contexto de grande confusão política e ideológica?
O fascismo arco-íris de Milo Yiannopoulos, figura gay da Alt-right [1] americana que se envolveu na abortada campanha presidencial do rapper afro-americano Kanye West, juntamente com o jornalista supremacista branco Nick Fuentes. O “turbocapitalismo” do partido polonês Konfederacja [Confederação], à direita do Partido Lei e Justiça (PIS, pela sigla em polonês), que vê nas criptomoedas a panaceia e cujo lema é “uma casa, um churrasco, gramado, dois carros e férias”. A motosserra, símbolo da vitoriosa campanha do libertário Javier Milei na Argentina.
A marca de roupas Pivert, favorita do movimento juvenil neofascista italiano Blocco Studentesco, agrupamento que combina a tradição ultradireitista de luta nas ruas com a recuperação de códigos da extrema-esquerda, por exemplo, abrindo “centros sociais”[2]. Os impecáveis tailleurs, os ternos escuros e as estratégias parlamentares a longo prazo de uma Giorgia Meloni na Itália, um Geert Wilders na Holanda ou uma Marine Le Pen na França, que lhes deram as credenciais de respeitabilidade que precisam para conquistar o poder ou se aproximar dele. O massacre em Gaza, alimentado pelos ministros supremacistas judeus Itamar Ben-Gvir e Bezalel Smotrich.
As manifestações e sinais enviados pela extrema-direita nos últimos tempos podem parecer heterogêneos, com 50 tons de cinza que não formam um padrão ou um conjunto coerente. Mesmo quando se trata de rejeitar estrangeiros, a alteridade ou imigrantes – um dos temas tradicionais da extrema-direita –, o discurso varia de uma organização para outra e de um país para outro. Enquanto a maioria das organizações de extrema-direita rejeita firmemente a acusação de racismo, desviam o foco para a estigmatização do Islã ou reformulam a acusação em termos de diferenças “culturais”; algumas delas, particularmente os libertários[3], não fazem da “preferência nacional”, do fechamento de fronteiras ou da homogeneidade étnica um componente essencial de sua doutrina, ou ao menos não o exibem como tal.
Uma dinâmica global
Em seu discurso de posse, o atual presidente argentino, Javier Milei, autoproclamado libertário, fez uma leitura decadentista da história do país. E seu referencial teórico, o economista americano Murray Rothbard (1926-1995), se apaixonou pela genética para justificar as desigualdades sociais com base em disposições biológicas e “étnicas”. Apesar de sua heterogeneidade, a extrema-direita mundial é tão dinâmica que pode dar a impressão de uma onda marrom que combina diferentes elementos, doutrinas, corpus, modos de ação e espaços políticos, mas que irrompe como um tsunami da Hungria, Rússia, Argentina ou Israel até a Índia, Estados Unidos ou Países Baixos.
Fora das urnas ou dentro dos recintos eleitorais, a amplitude do espectro ideológico da extrema-direita é realmente impressionante. Isso é exacerbado pela propensão de um amplo setor da direita tradicional, e até mesmo de vários representantes e eleitores de uma democracia liberal degradada, a se unir em torno das ideias da extrema-direita e, às vezes, também em torno de seus candidatos mais desmedidos. Foi o que aconteceu com o Partido Republicano nos EUA em torno de Donald Trump em 2016, e o que pode ocorrer novamente em 2024. Foi também o que aconteceu com o eleitorado argentino que, no primeiro turno das eleições presidenciais de 2023, votou pela direita apresentável do partido do ex-presidente Mauricio Macri e, no segundo turno, se juntou quase unanimemente ao candidato que extrai sua doutrina de uma fração do corpus libertário americano e que, segundo uma de suas biografias, consulta seu cachorro morto e clonado como um oráculo[4].
Portanto, a estupefação é legítima e devemos dar o alarme sobre a possibilidade de que o pior aconteça, seja em relação à catástrofe ecológica anunciada, à exacerbação das divisões raciais ou às infinitas consequências da contestação do que resta do Estado de Bem-Estar e dos princípios fundamentais do Estado de Direito, embora tudo isso já tenha sido prejudicado pelas políticas “sistêmicas” aplicadas nas últimas décadas.
Três erros frente à nova extrema-direita
Certamente, dar o alarme pode parecer com o grito de “¡No pasarán!”, cuja eficácia foi amplamente desmentida pela história política e eleitoral. No entanto, é preferível à tendência oposta, que se recusa a se preocupar, apoiando-se em raciocínios unilaterais ou até mesmo falaciosos. Sim, há contraexemplos, como o da Polônia, onde o centro liberal conseguiu recentemente derrotar a direita radical do PIS; ou o do Brasil, onde a esquerda de Luiz Inácio Lula da Silva recuperou, por meio de uma ampla coalizão, o poder frente a Jair Bolsonaro; ou o da Espanha, onde a aliança entre a direita tradicional e a extrema-direita do Vox foi contrabalançada por uma aliança entre a social-democracia e a esquerda radical, aberta a nacionalistas bascos e catalães.
Isso é um lembrete importante porque assumir que a extrema-direita tomará inevitavelmente o poder em todo o mundo não é suficiente. O exemplo de Joe Biden, que teve que renunciar à sua candidatura diante do risco de uma derrota para Trump, mostra que a maioria dessas vitórias contra a extrema-direita ou contra as alianças entre a direita e a extrema-direita foram conquistadas na beira da navalha eleitoral. E não foram acompanhadas de uma política que pudesse constituir um antídoto suficiente contra as ameaças contemporâneas.
Outra linha de raciocínio frequentemente utilizada é que, no fundo, a maioria dos líderes dessas direitas que se apresentam como alternativas não são mais do que palhaços que chegaram ao poder por acidente. São personagens cujas capacidades podemos continuar a zombar, publicando montagens nas redes sociais com imagens paralelas do cabelo de Trump, Milei e Wilders.
No entanto, a probabilidade vertiginosa de que Trump possa recuperar a Casa Branca em 2024 deveria, por si só, nos afastar da crença em uma sucessão de processos eleitorais malsucedidos. Porque isso nos impede de ver a continuidade – e a força crescente – da ameaça à democracia e nos leva a nos surpreender a cada votação quando as pesquisas erram e pessoas que encarnam uma racionalidade distante da “decência comum” (common decency) (agora muito difícil de encontrar) vencem nas urnas. Um terceiro argumento pressupõe que as organizações políticas e seu corpus ideológico são estruturalmente estanques. Não consegue ver o momento particular representado por esses casos de “fusões de direita”, estudados na França pela cientista política Florence Haegel[5], bem como a penetração mais geral das ideias da extrema-direita em uma parte do campo político que continua convencida de que está construindo uma barreira, enquanto, na realidade, age como um trampolim. Na França, o vocabulário e as propostas do Reagrupamento Nacional (RN) já calaram profundamente no espectro político convencional, como demonstrado pela aprovação em dezembro de 2023 da Lei de Imigração, que introduz uma forma de “preferência nacional” na concessão de certas prestações sociais. Com 88 deputados cada vez mais “normalizados”, o partido de Marine Le Pen é agora considerado pelos ministros de Emmanuel Macron como “muito mais republicano” do que alguns representantes da esquerda.
Linhas de tensão
Para sair da comiseração e da angústia do tsunami marrom sem cair na ingenuidade, é preciso considerar que estamos efetivamente diante de uma maré que arrasa nossos fundamentos democráticos e sociais, mas que isso não significa que seja um rolo compressor irresistível.
Primeiramente, porque a extrema-direita não é homogênea, como já dissemos, embora haja articulações entre seus diferentes componentes, às vezes reivindicadas abertamente e mostradas ao público, outras vezes clandestinas, e que, portanto, é necessário desbravar se quisermos enfrentá-la. Em segundo lugar, porque uma das principais razões para seu sucesso – o fato de que parte dessas direitas responde a um desejo de transgressão – não é considerada suficientemente por aqueles que buscam combatê-la.
O livro pioneiro “A rebeldia se tornou de direita?” [6], do ensaísta e jornalista argentino Pablo Stefanoni, permite compreender que o caráter heterogêneo desta extrema-direita não exclui as convergências que alimentam seu ascenso ao poder. Nele, constata-se a existência de pelo menos “três linhas de tensão entre as diferentes sensibilidades da nova direita radical”.
A primeira é “a tensão entre estatismo e antiestatismo, que afeta por igual a libertários e neorreacionários, passando por diversas combinações intermediárias”.
A segunda é a que enfrenta “ocidentalismo e antiocidentalismo”, na medida em que “uma ala da Alt-right busca proteger o Ocidente de seus inimigos – é culturalmente cristã, frequentemente pró-Israel e combate o ‘perigo’ islâmico – enquanto outra é ‘antissemita’ e mais ou menos neopagã” e culpa “o próprio Ocidente, e a sociedade industrial que criou, pelos problemas do mundo atual”. “Nessa última sensibilidade se enraízam tendências como o ecofascismo e diversas utopias primitivistas”, escreve Stefanoni.
A terceira tensão é geopolítica: Matteo Salvini, Marine Le Pen e Viktor Orbán se mantêm próximos à Rússia, enquanto o Vox na Espanha, o Chega em Portugal e Irmãos da Itália, a agrupação de Meloni, são claramente atlantistas. No entanto, prossegue o ensaísta, “embora essas fissuras sejam frequentemente pronunciadas, encontramos muitas vezes que esses mundos convivem nos mesmos espaços, onde se enfrentam, discutem, se insultam e também coincidem”.
Circulação e genealogia das ideias
Em termos práticos, esse movimento de pinças significa que devemos evitar confundir tudo se quisermos discernir as razões que favorecem o triunfo – ou eventual derrota – da extrema-direita e, ao mesmo tempo, medir o que as conecta. Isso requer que identifiquemos os movimentos e genealogias que existem entre elas, mesmo que os contextos nacionais sejam, é claro, sempre específicos.
A eleição de Milei é um exemplo eloquente. Seu crescimento como figura política é um produto puro do sistema político e da crise econômica que vive o país sul-americano: ele conseguiu encarnar ao mesmo tempo o rejeição visceral ao peronismo que governou a Argentina por décadas e uma suposta resposta a uma inflação de mais de 100% ao ano, e parece impensável que ele possa ser “exportado” para outras latitudes[7]. Por outro lado, cabe destacar que ele fez campanha importando para um país historicamente estatista o pensamento libertário – na sua versão marginal encarnada por Rothbard. Certa circulação de temáticas de extrema-direita já está bem identificada, como a do “grande substituto”, que afirma que existe uma elite “globalista” que fomenta a desaparecimento das populações brancas dos países ocidentais e sua cultura, em favor de populações imigrantes racializadas (não brancas).
Esse vocabulário, cunhado pelo escritor francês Renaud Camus, que professa sua homossexualidade e foi publicado durante muito tempo pela pol, editora de literatura inovadora, se espalhou por todo o mundo, sem dúvida porque cristaliza a obsessão demográfica e racial presente na maioria da extrema-direita. Mas, também neste caso, adota formas diferentes segundo os contextos nacionais.
Enquanto figuras da direita tradicional francesa como Valérie Pécresse e Éric Ciotti adotaram esse vocabulário, alguns membros dessa família política continuam relutantes em usá-lo, embora citem extensivamente em entrevistas certos trechos dos trabalhos do pesquisador Jérôme Fourquet para expressar sua preocupação com o aumento do número de nomes de origem árabe-muçulmana dados aos bebês nascidos na França. O ministro italiano da Agricultura e cunhado de Meloni, Francesco Lollobrigida, declarou publicamente: “Não podemos nos resignar à ideia da substituição étnica: os italianos têm menos filhos, então substituamos por outros. Esse não é o caminho”[8]. A natalidade, que sempre é vista como um reflexo da imigração, é um dos temas mais comuns da extrema-direita mundial e se estende até a direita centrista.
Payton Gendron, o militante de extrema-direita que matou dez pessoas em Buffalo (EUA) em maio de 2022, e Brenton Tarrant, que matou 51 pessoas em 2019 em duas mesquitas na cidade de Christchurch (Nova Zelândia), ofereceram uma versão terrorista do “grande substituto”, um dos principais argumentos dos “manifestos” divulgados no momento de seus massacres.
Quanto ao senador republicano de Ohio J.D. Vance, autoproclamado trumpista de classe trabalhadora e escolhido como candidato a vice-presidente de Trump, acentuou a dimensão conspiratória já presente na versão original do “grande substituto”, supostamente organizado pelas lideranças progressistas contra as pessoas “de bem”, ao acusar Biden de querer matar os eleitores de Trump por meio de uma “epidemia” de consumo de fentanilo – uma droga que, de fato, está causando danos consideráveis entre os homens brancos de classe trabalhadora, que constituem uma grande proporção do eleitorado trumpista[9].
“Desdemonização”
Certas genealogias se escondem cuidadosamente sob o tapete, especialmente no caso dos partidos que tentam chegar ao poder por meio das urnas tornando-se mais respeitáveis ou “desdemonizando-se”, embora esse último termo possa ser enganoso. Segundo Caterina Froio, especialista em extrema-direita e professora em Sciences Po, de Paris, transmite a ideia de uma “forma de moderação desses partidos populistas de direita radical”. Em sua opinião, seria mais exato falar da “normalização das ideias desses partidos, que adquiriram um papel cada vez mais central e podem até participar de governos, ou até mesmo liderá-los”. Mas a consequência desse processo não é a moderação desses partidos, e sim a radicalização dos partidos de direita [conservadores] com os quais governa[10].
Na Itália, esse movimento remonta ao século passado. Nutrido pacientemente pelas renúncias dos partidos políticos tradicionais e pela inconsciência dos meios de comunicação mainstream. Por exemplo, os grandes meios de comunicação amplamente divulgaram as opiniões do historiador Renzo De Felice, autor de uma biografia de Benito Mussolini – ainda inacabada no momento de sua morte, em 1996 – segundo a qual o ditador fascista “se sacrificou” para salvar a Itália. Apresentadores de sucesso também enalteceram durante anos a paixão do Duce pelo jazz americano.
Graças, sobretudo, aos meios de comunicação do milionário Vincent Bolloré, mas não apenas a isso, Éric Zemmour pôde repetir sua “tese do escudo e da espada” – tese revisionista que apresenta Charles de Gaulle e Philippe Pétain, o chefe de Estado fantoche do nazismo na França ocupada, como tácitos em defender a França – e Marine Le Pen não deixou de falar de seu amor pelos gatos, o que a torna mais “simpática” aos olhos de parte do eleitorado.
O Reagrupamento Nacional (RN) é o arquétipo dessa vontade de limpar o próprio nome por todos os meios, negando ou ocultando certas conexões e histórias consideradas demasiado constrangedoras. Por exemplo, o jovem presidente do RN, Jordan Bardella (28 anos), afirma em todas as plataformas que o fundador de sua agrupação, Jean-Marie Le Pen, que registrou os estatutos do movimento em 1972 junto com um ex-Waffen-SS, “não era antissemitia”. O partido também se esforça para ocultar o papel que continuam desempenhando em seu seio os identitários e a neofascista “conexão Gud” encarnada por Frédéric Chatillon, de quem várias investigações jornalísticas demonstraram que ainda é central no aparato, embora esteja instalado em Roma há vários anos, onde mantém estreitos vínculos com grupos ultras como o CasaPound[11]. Périne Schir, pesquisadora da Universidade George Washington, destacou recentemente a influência da Nova Direita em Bardella[12]. Nos últimos 25 anos, essa corrente de pensamento, defendida particularmente pelo Groupement de Recherche et d’Études pour la Civilisation Européenne [Grupo de Pesquisa e Estudo sobre a Civilização Europeia] (Grece) e ideólogos como Jean-Yves Le Gallou e Alain de Benoist, havia se expandido dentro dos partidos do Movimento Nacional Republicano, de Bruno Mégret, e Reconquista, de Zemmour. Mas se reinventou através de novas estruturas como o Observatoire du Journalisme [Observatório de Jornalismo], o Institut Iliade e a Nouvelle Librairie, para influenciar a jovem guarda do RN, especialmente desde a entrada de Bardella no Parlamento Europeu.
Do eixo EUA-Rússia ao mito do extremo norte
Por fim, existe outro tipo de circulações, muitas vezes mais difíceis de identificar porque operam sob o radar ou levam a pontes que, à primeira vista, são surpreendentes. O recente livro dos sociólogos Kristina Stoeckl e Dmitry Uzlaner, The Moralist International: Russia in the Global Culture Wars [A internacional moralista: Rússia na guerra cultural global][13], explora a genealogia de um discurso comum entre a direita cristã americana e a Igreja ortodoxa russa. Rastreia as origens e as razões da semelhança entre a retórica do Kremlin e a da extrema-direita americana e europeia – da retórica do “grande substituto” ao “globalismo” – e demonstra como, no fundo, essas conexões são baseadas em uma crítica compartilhada ao Ocidente e a seus valores progressistas e liberais.
A Rússia tem sido um dos principais expoentes dessa crítica, tornando-se um “santuário” para uma série de políticos e teóricos da direita que querem escapar da influência da liberalização ocidental. É o caso do ex-jornalista e político francês Eric Zemmour, que buscou abrigo na Rússia e celebrou sua liderança como uma expressão de resistência a um Ocidente decaído. O governo de Vladimir Putin tem procurado construir uma “internacional moralista”, alinhando-se com a direita americana e europeia em questões como a oposição ao casamento entre pessoas do mesmo sexo e ao feminismo.
Outra racionalidade
Uma das prioridades do progressismo é identificar esses fluxos, essas passagens, essas metabolizações e esses temas de fundo. Mas há um limite para o que podemos fazer, além da impossibilidade de cartografar definitivamente as 50 tonalidades de marrom que nos cercam, uma vez que estas mudam e se recompondo constantemente. Esse limite reside no fato de que essa extrema-direita, embora em graus diversos, estão sujeitas a uma racionalidade diferente daquela que por muito tempo organizou o campo político em torno de uma dialética principal entre progresso e reação, ou revolução e reação. Esta “alter-racionalidade” permite aos reacionários e aos nostálgicos de uma antiga ordem mítica se apresentarem como os últimos ou os novos revolucionários. A maioria dos atores nesse campo, sejam quais forem as estratégias utilizadas para alcançar respeitabilidade, são “engenheiros do caos”, para usar o título de um livro do ensaísta Giuliano da Empoli. Em 2018, Da Empoli descrevia o trabalho dos spin doctors [propagandistas], ideólogos, cientistas e especialistas em big data que possibilitaram a ascensão ao poder de líderes “disruptivos”, transformando suas aparentes carências em qualidades para aqueles que apoiam suas campanhas e discursos: a inexperiência como prova de que não fazem parte da elite; as notícias falsas como prova de sua liberdade de pensamento; as rupturas geopolíticas como prova de independência, etc.
Esses personagens e ideias respondem, em parte, a um desejo de transgressão que parece ter substituído a esperança de mudança, seja reformista ou revolucionária, em uma época marcada por um futuro bloqueado pelas encruzilhadas ecológicas e pelo acesso desigual aos recursos disponíveis.
Claro, muitos eleitores apoiam sinceramente os programas e ideologias dos partidos de extrema-direita, em particular seus estereótipos e agendas racistas. Eles estão em todos os setores da sociedade, e em particular nas classes privilegiadas, que votam nesses partidos tanto quanto as classes trabalhadoras, muito mais estigmatizadas por fazê-lo. Isso não exclui a hipótese de que, para chegar ao poder, a extrema-direita deve reunir – e parece estar conseguindo – um eleitorado socialmente amplo e diverso que subscreva suas ideias, e um exército de desclassificados que consideram não ter nada a perder tentando um experimento “alternativo”, por desastroso que seja, até mesmo para seus próprios interesses. Esse desejo de transgressão está desigualmente distribuído nas sociedades. Aqueles que ainda vivem em um mundo relativamente protegido e estável estão sem dúvida mais preocupados com as ameaças às liberdades públicas ou ao futuro de seus filhos do que certas categorias da população, que provavelmente consideram ter pouco a perder com uma mudança política radical, na medida em que sua margem de manobra pessoal já está limitada por condições socioeconômicas muito deterioradas e um futuro incerto. No entanto, mesmo quando se opõem nas urnas – indo votar ou abstendo-se – esses grupos sociais têm um inimigo comum cuja aparência camaleônica ainda oculta demais a ameaça: a cooptacão por um poder desigualitário e ultraliberal de figuras políticas transgressoras usadas para perpetuar ou até acentuar um sistema econômico, social e ecológico amplamente reconhecido como insustentável.
Também neste caso, o que ocorreu na Argentina é interessante na medida em que é muito provável que o programa libertário de Milei, obrigado a governar com a direita clássica, se traduza principalmente em uma radicalização do ultraliberalismo e do neoliberalismo autoritário. Entre as primeiras medidas do novo presidente estão as privatizações, no coração do modelo ultraliberal, e restrições ao direito de protesto, no coração das tendências antidemocráticas do mal chamado neoliberalismo. Mas as eleições argentinas também mostraram até que ponto pode existir o desejo de “pular no vazio”, mesmo entre um eleitorado muito consciente de que pode sair perdendo. Para aqueles que pensam que têm pouco a perder abraçando políticas que na verdade aumentarão sua vulnerabilidade, deve-se propor, claro, outros tipos de ruptura política e social com o passado, como as esquerdas transformadoras souberam fazer desde pelo menos o século XIX.
Reapropriar-se do desejo de ruptura
Mas é preciso dizer que o desejo de ruptura, de mudança radical, de rebelião e até de revolução parece ter sido captado em grande parte pelas direitas chamadas alternativas, e que enfrentá-las significa sem dúvida arrancar-lhes os afetos mesmos capazes de mover as condições de possibilidade. A questão é como fazê-lo sem usar os mesmos métodos nem os mesmos temas.
Esses afetos podem ganhar terreno em escala local, mas têm dificuldade em alcançar escalas maiores, o que os condena a continuar sendo arquipélagos, sementes ou experimentos desejáveis, mas ainda muito embrionários para frear a corrida rumo ao abismo.
Então, devemos confiar em figuras antissistema que jogam no mesmo registro das figuras de extrema-direita que estão em ascensão hoje? A experiência de Beppe Grillo na Itália – onde Caterina Froio explica que “se observarmos as transformações e a evolução da extrema-direita desde o pós-guerra até hoje, podemos ver que este país foi uma incubadora de tendências que podem ser encontradas em outros lugares da Europa” – não pode ser considerada uma fórmula desejável, na medida em que o Movimento Cinco Estrelas certamente conseguiu captar parte da frustração política e eleitoral voltada até agora para a extrema-direita, mas também contribuiu para normalizá-la governando com ela e fazendo seus próprios alguns de seus temas, em particular a imigração.
Quanto à estratégia de conflito em todos os frentes do dirigente de esquerda francês Jean-Luc Mélenchon, embora este tenha o mérito de ter feito explodir o compromisso liberal do progressismo e de voltar a colocar a radicalidade no coração da esquerda, também mostra seus limites.
Mas não pode prescindir de conhecer de perto as trajetórias, o corpus, os golpes de força, a retórica, os métodos, os truques e as políticas de aliança do adversário. Não para imitá-los, mas para desmontar seus mecanismos, reverter seus sucessos e repatriar para o lado do progressismo o projeto de mudança radical da sociedade.
Nota: a versão original deste artigo, em francês, foi publicada na Revue du Crieur No 24, 1/2024. Tradução: Pablo Stefanoni. Última atualização: 5/8/2024.
Referências
[1] Veja Laura Raim: “A direita ‘alternativa’ que agita os Estados Unidos”, Nueva Sociedad, n. 267, 1-2/2017, disponível em: nuso.org.
[2] Christian Raimo: “Jovens, italianos, fascistas e antenados. O renascimento de uma ideologia odiosa”, Revue du Crieur, n. 10, 2/2018.
[3] Romaric Godin: “O libertarianismo, novo alavanca da extrema-direita?”, Mediapart, 20/11/2023.
[4] Juan Luis González: El loco. A vida desconhecida de Javier Milei e sua irrupção na política argentina, Planeta, Buenos Aires, 2023.
[5] Lucie Delaporte: “A derrota de lr sinaliza ‘o fracasso de sua estratégia’ frente à extrema-direita”, Mediapart, 6/6/2019.
[6] Siglo XXI Editores, Buenos Aires, 2021.
[7] No entanto, como foi visto recentemente, Milei conseguiu uma forte repercussão entre os aderentes ao partido Vox na Espanha [n. do e.].
[8] “Ministro italiano diz que não se pode ceder ‘diante da substituição étnica’”, Swissinfo, 18/4/2023.
[9] Patria Neves: “Em Ohio, a vitória de um jovem lobo trumpista”, Mediapart, 9/11/2022.
[10] J. Confavreux: “Itália: o que muda (ou não) em um país governado pela extrema-direita”, Mediapart, 5/5/2023.
[11] CasaPound é um movimento político nacionalista-revolucionário e neofascista. Nascido na década de 2000 como um centro social e cultural de extrema-direita baseado na ocupação militante de um edifício no bairro Esquilino de Roma, adotou o nome do poeta americano Ezra Pound, que foi um declarado apoiador de Mussolini e viveu em Pisa durante a Segunda Guerra Mundial. CasaPound é, junto com Forza Nuova, um dos dois principais movimentos ativistas da direita radical presentes em toda a Itália (e em feroz competição entre si) [nota do editor].
[12] Marine Turchi: “Sob a presidência de Bardella, a Nova Direita recupera um papel de destaque no RN”, Mediapart, 18/12/2023.
[13] Fordham UP, Fordham, 2022.
[14] L. Cordier: “Acabar com a ilusão boreal. Utopia do Grande Norte e promoção da branquitude”, Revue du Crieur, n. 14, 3/2019.
[15] Ibid.
[16] Em janeiro de 2024, Le Pen, como deputada, votou a favor da constitucionalização do direito ao aborto [nota do editor].
[17] G. da Empoli: Os engenheiros do caos, Oberon, Madrid, 2019.
*Joseph Confavreux é jornalista da revista Mediapart e coeditor da Revue du Crieur. Ellen Salvi é jornalista responsável pela seção Política da Mediapart.