Migrantes e trabalhadores denunciam preconceito contra venezuelanos na Operação Acolhida

Relatos incluem xenofobia por parte de vigilantes, militares e funcionários dos abrigos; organização contesta

Por Rafael Custódio | Edição: Bruno Fonseca, Agência Pública

Em 2018, moradores de Pacaraima, município a 214 km da capital roraimense, Boa Vista, incendiaram, agrediram e expulsaram venezuelanos que dormiam em barracas nas ruas da cidade. O episódio, que ganhou repercussão nacional, marcou apenas uma das muitas situações de xenofobia e violência contra os migrantes que chegaram ao Brasil. E que permanecem até hoje.

Segundo a Agência Pública apurou, nos últimos anos venezuelanos, ex-trabalhadores humanitários e pesquisadores têm presenciado situações de preconceito contra os estrangeiros até mesmo dentro dos abrigos da Operação Acolhida. A operação é a estrutura montada pelo governo brasileiro com participação da Organização das Nações Unidas (ONU) e das Forças Armadas para receber os migrantes venezuelanos no país. Estima-se que mais de 1 milhão de pessoas tenham passado pelos serviços.

“[Os seguranças] Aproveitavam que a OIM [Organização Internacional para as Migrações] não estava lá, e aí eles faziam comentários mais duros, chamando as pessoas de porcas, de mal-educadas, chegando a comentar que o estado [de Roraima] estava ruim por conta deles, perguntando quando eles iam embora”, contou a ex-trabalhadora humanitária da OIM Samara Santos (nome fictício), de 31 anos.

Por que isso importa?

  • A Operação Acolhida, que recebeu cerca de 1 milhão de pessoas, é a maior operação de acolhida de migrantes da história recente do Brasil.
  • A xenofobia já gerou ao menos um grande episódio de ataque contra os migrantes, que destruiu acampamentos de centenas de pessoas.

Embora responsáveis por mediar conflitos e garantir a segurança e integridade dos espaços da Operação Acolhida, Santos denuncia que os militares tinham discurso xenofóbico frequente.

“Eles [militares do Exército] faziam alguns comentários xenofóbicos, sempre retratando as pessoas como sem educação, sujas, e traziam isso relacionado à nacionalidade deles. Então, qualquer coisa que acontecia ali, tudo era culpa do venezuelano, ‘porque o venezuelano é porco, porque o venezuelano não tem higiene, porque o venezuelano não tem educação’”, contou Santos.

Ex-trabalhadora humanitária da Agência da ONU para Refugiados (Acnur), Luana Pedroso, de 31 anos, diz que já escutou dos militares e da equipe da Acnur comentários preconceituosos contra a população acolhida.

“Eu me lembro de comentários: um militar uma vez disse que os indígenas que estavam no abrigo ‘não eram índios’ de verdade, porque eles ‘andavam com roupa e que se chamam de índios para serem favorecidos’”, lembrou Pedroso.

Os discursos xenofóbicos, segundo a ex-trabalhadora humanitária da Acnur, vinham também de integrantes das ONGs que prestam serviços à Operação Acolhida.

“‘Fulano [algum venezuelano] é muito vagabundo, não quer sair do abrigo nunca. Não procura emprego, não vai trabalhar e só quer ficar dentro do abrigo […] Está acostumado com a boa vida dentro dos abrigos’”, contou Pedroso sobre o que escutou de outros trabalhadores humanitários.

Para denunciar preconceito, migrantes LGBTQIAPN+ escreviam cartas anônimas

No Posto de Recepção e Apoio (PRA), em Boa Vista, a população LGBTQIAPN+ dorme em um espaço que fica mais próximo à equipe de segurança da empresa Pegasus, que presta serviço à operação. De acordo com Samara Santos, ao invés de as vítimas se sentirem seguras, eram alvo de LGBTfobia e xenofobia.

“A gente chegou a ter informações da própria comunidade [LGBTQIAPN+] sofrendo preconceito, e não é só entre a comunidade migrante, [mas] vindo dos vigiais principalmente”, disse a ex-trabalhadora. “E eram extremamente xenofóbicos com a comunidade migrante dentro do espaço. E era algo que a gente reclamava e levava para os militares, mas eles não faziam absolutamente nada”, completou.

Como forma de denúncia, aos finais de semana, quando a equipe de proteção da OIM estava de folga, as vítimas de LGBTfobia ou xenofobia escreviam cartas relatando o que passavam nas mãos dos vigias.

“Eles sofriam ainda mais preconceito quando a gente não estava. Então, para eles [vigias] não saberem quem tinha denunciado, a gente teve essa ideia de cartas anônimas”, contou Santos.

Segundo a ex-trabalhadora humanitária, uma mulher trans, certa vez, enviou uma carta à equipe de proteção da OIM na qual relatava ter sido vítima de transfobia praticada por uma mulher que fazia a revista dos abrigados na porta dos dormitórios.

“Na hora da revista, essa mulher fazia comentários xenofóbicos e transfóbicos com colegas de trabalho: ‘Será que essa é mulher ou é homem?”, repetiu Santos.

Até o primeiro semestre de 2021, a Operação Acolhida contava com um abrigo voltado à comunidade LGBTQIAPN+ e mães solo, mas que não está mais em funcionamento. A reportagem questionou a organização sobre o motivo de o abrigo ter sido desativado, mas não obtivemos resposta até a publicação.

Por meio de nota, a Operação Acolhida respondeu que “todos os procedimentos empregados e praticados seguem a conduta legal, respeitosa e digna aos migrantes e aos demais integrantes das diversas agências da Operação Acolhida”. A nota afirma também que as “cartas não são de conhecimento da operação e caso chegue alguma denúncia sobre esse tema, será apurada”.

A OIM disse que “ministra treinamentos relacionados à Gestão e Coordenação de Abrigos/Alojamentos direcionado aos contingentes militares, assim como parceiros de Organizações Não-Governamentais e sociedade civil, abordando um módulo específico sobre Proteção às populações em vulnerabilidade”.

Além disso, a OIM “estabelece uma política de zero tolerância de qualquer forma de preconceito e destaca em suas ações que a discriminação com base em raça, etnia, nacionalidade ou status migratório é inaceitável”. Leia a nota na íntegra.

A reportagem questionou a Operação Acolhida sobre a empresa de vigilância terceirizada, Pegasus. A organização, contudo, não respondeu à solicitação.

Xenofobia gerou onda de ataques em Pacaraima 

Seis meses após a instalação da Operação Acolhida em Roraima, em agosto de 2018, moradores de Pacaraima foram às ruas para destruir acampamentos inteiros montados por venezuelanos nas ruas da cidade.

De acordo com o El País, a onda violenta teria começado após um comerciante ter sido roubado e agredido por quatro venezuelanos, que não foram identificados.

No período em que os ataques ocorreram, por Pacaraima, na fronteira do Brasil com a Venezuela, entravam por dia, em média, 800 venezuelanos migrantes ou com pedidos de refúgio. A migração aumentou a população do pequeno município, de cerca de 13 mil habitantes.

Os manifestantes incendiaram barracas e pertences, ameaçaram e expulsaram a população venezuelana que dormia nas ruas do município.

A mobilização para os protestos violentos ocorreu por meio de redes sociais, e, segundo apuração do portal G1, cerca de mil pessoas participaram.

Parte dos venezuelanos que estavam nas ruas conseguiu ser escoltada pelos militares para os abrigos da Operação Acolhida. Contudo, cerca de 1,2 mil pessoas teriam deixado o Brasil a pé ou se esconderam nas montanhas que cercam o município, segundo a apuração do jornal.

Crianças perdidas de seus pais, em meio à confusão, foram acolhidas pelas igrejas da cidade. “As igrejas evangélicas e católicas […] que conseguiam espaço para recolher essas crianças [as abrigavam], porque não tinham nem condições de buscar os pais”, contou a irmã Ana Maria da Silva, 62 anos. “No dia seguinte, então, foi que começaram a voltar das montanhas. E aí, graças a Deus, foram encontrados os pais das crianças. Foi uma coisa muito horrível essa violência”, disse a irmã.

Procurada, a prefeitura de Pacaraima, que responde pela Guarda Municipal, não respondeu aos questionamentos da reportagem.

A Pública questionou o governo do estado de Roraima, responsável pela Polícia Militar, mas não obteve resposta até a publicação desta reportagem.

Imagem: Matheus Pigozzi/Agência Pública

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