SP: A boa comida precisa estar na urna

Manifesto de movimentos em apoio à candidatura de Boulos sugere projeto popular de soberania alimentar, de hortas a sacolões e cozinhas solidárias. Mas atual prefeito tenta esconder dados sobre a fome na cidade, três vezes maior que a média nacional

por Suzana Prizendt*, em Outras Palavras

Três vezes mais fome do que a média do país: essa é a realidade da capital do estado de São Paulo, uma das maiores cidades do mundo, coração econômico brasileiro. É a mesma cidade em que restaurantes de luxo servem iguarias caríssimas a uma parcela da população que nunca experimentou nada que pudesse se assemelhar à falta de dinheiro para comprar um brioche, quanto mais um simples saco de pãezinhos.

Crise econômica nacional, internacional ou até mesmo “universal”, podem alegar os generalistas de plantão. Só que, desde o início do governo Lula, o país vem reduzindo substancialmente o número de pessoas expostas à fome e mais de 14 milhões já deixaram a condição de insegurança alimentar severa, de acordo com o Relatório das Nações Unidas sobre o Estado da Insegurança Alimentar Mundial (Sofi 2024). O que poderia explicar o fato da capital paulista, conforme apurado pelo 1° Inquérito sobre a Situação Alimentar no Município de São Paulo, ainda apresentar 12% de sua população sem ter o que comer, enquanto outros municípios conseguiram reduzir seus índices?

Talvez o fato da atual gestão municipal ter boicotado a apresentação da pesquisa que mostrou a situação da (in)segurança alimentar e nutricional paulistana, cancelando o evento no dia em que ele ocorreria, possa nos dar pistas. Se observarmos que foram os vereadores que compõem a base dessa gestão que fizeram a obscena proposta de criminalizar quem doasse comida às pessoas em situação de rua, através do que ficou conhecido como o PL da Fome, podemos avançar um pouco mais na busca da resposta.

Estamos no mês em que celebramos o Dia Mundial da Soberania Alimentar, 16 de outubro. Mas, ao menos nas ruas de Sampa, não há muito o que comemorar, já que, na própria data simbólica, a Guarda Civil Municipal tentou impedir as organizações sociais que socorrem as pessoas vulnerabilizadas de distribuírem suas quentinhas, o que deixaria à míngua quem depende delas para não ficar o dia todo com a barriga vazia. É algo que vem sendo uma das marcas da atual gestão e revela o quão cruel pode ser a postura de quem só age em benefício da elite econômica que frequenta os restaurantes luxuosos de que falamos anteriormente.

Esse fato se torna ainda mais notável, se observarmos que, entre dezembro de 2023 e junho de 2024, o número de pessoas vivendo nas ruas de São Paulo teve um aumento de 24%, como revelado pelo Observatório Brasileiro de Políticas Públicas com a População em Situação de Rua (OBPopRua). São apenas 6 meses! A tendência de alta já vinha sendo percebida durante os últimos anos, que foram marcados por prefeituras neoliberais e avessas à participação social – em que o próprio Comusan, Conselho Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional, sofreu para se manter fora da tutoria governamental.

Também é algo que está intimamente relacionado com o fato da presidência do Consea-SP, Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional do estado de São Paulo, ter permanecido, de 2021 até o ano passado, nas mãos de um diretor da Abia, Associação Brasileira da Indústria Alimentícia, o que gerou revolta por parte das organizações da sociedade civil. Tanto na gestão municipal, quanto na estadual, a ordem é favorecer a iniciativa privada, sobretudo a que tem alto poder econômico.

Apagão de cidadania

Não é por acaso que o governador Tarcísio de Freitas e o prefeito Ricardo Nunes são aliados políticos nestas eleições. Ambos são adeptos das privatizações e trabalharam abertamente para entregar a Sabesp – a um preço totalmente descabido – para uma empresa que só tem experiência no ramo do saneamento há dois anos, sendo responsável pelo serviço apenas no Amapá. O processo envergonharia qualquer pessoa que tivesse um pingo de decência.

É duro constatar que, para essa turma privatista, não basta submeter o povo à fome. É preciso submetê-lo à sede também. Só assim tornam possível o catapultamento do lucro de certas corporações (que, não por acaso, sustentam a classe política que está atualmente no poder), a alturas estratosféricas.

Nos últimos dias, quem mora em São Paulo tem vivido – ou testemunhado – situações muito difíceis. Uma tempestade, que durou somente 20 minutos, derrubou o fornecimento de energia em quase um milhão e meio de lares e estabelecimentos comerciais. É coisa pra dedéu e os impactos financeiros são estimados em cerca de 1,6 bilhão de reais, o que levou o governo federal a anunciar a abertura de um crédito de 1 bilhão para as empresas de comércio e serviços afetadas pelo apagão.

Mesmo depois de cinco dias, a quantidade de lugares em que o fornecimento ainda não havia se restabelecido girava em torno de 300 mil. Sim, sem luz elétrica, sem carga para o celular, sem banho quente, sem aparelhos médicos funcionando… e com a comida estragando na geladeira: essa era a situação de uma parcela significativa da população paulistana, o que não deve estar plenamente superado no momento em que este artigo for publicado.

Trata-se uma nítida demonstração do descaso de uma empresa privada, a Enel, com as pessoas que ela deveria atender de maneira efetiva, já que é responsável por um setor absolutamente fundamental na vida cotidiana. Mas, chamando-as de “clientes”, as corporações – e a atual classe política no poder – expressam uma ideia básica da lógica privatista: aos seus olhos, nós não somos cidadãos e cidadãs que têm o direito incontestável de ter acesso à energia em nossas casas. Somos meros consumidores e consumidoras, sujeitxs às relações de mercado, sempre sob domínio de quem tem mais grana e poder. A mesma lógica abusiva se aplica à água, ao transporte, à saúde, à educação… esferas de atuação que deveriam ser de responsabilidade pública, mas que estão sendo alvo da sanha entreguista neoliberal. Às multinacionais, as tetas para serem sugadas. Ao povo, a escuridão, a sede, a insegurança, a falta de respeito e de cidadania. E a fome.

Como vimos, o apagão em São Paulo não é só relativo à energia elétrica. Ele diz respeito a um outro tipo de energia, ainda mais essencial. Sem comida suficiente na barriga, ninguém tem forças para viver, trabalhar, estudar, pensar e exercer sua cidadania. A energia que os alimentos nos fornecem é condição inquestionável para que nós, homens, mulheres e crianças, sejamos gente. Se 12% de nós não temos o mínimo para garantir as necessidades nutricionais básicas e 50% de nós não temos o que seria um nível seguro de nutrientes para uma vida sem a ameaça inaceitável da falta de comida, podemos afirmar que vivemos um verdadeiro apagão alimentar!

E a atitude do atual prefeito frente à situação trágica que enfrentamos, seja em relação ao (não) fornecimento de energia ou em relação à falta de comida no bucho, é a mesma: um misto de omissão, negação, culpabilização de outrem e, o que é pior, ação escancarada para agravar os problemas, já que isso atende aos interesses da elite que banca seu projeto político – filhotinho do projeto político de seu atual padrinho, o governador Tarcísio. Não é à toa que este último desfruta do amplo apoio de um setor que só sabe sugar os recursos do país e deixar como legado à rapa a destruição ambiental, a contaminação e a miséria.

Sim, estamos falando do aclamado AGRO, chamado carinhosamente por nós, militantes ambientalistas, de OGRO, dado o nível de danos que ele causa e à falta de qualquer pudor em destruir o que quer que seja, para, ao ampliar a exploração de gentes e natureza, engordar as contas bancárias de seus altos integrantes, dos acionistas das empresas transnacionais e dos especuladores financeiros de plantão. Para boa parte desse setor sanguessuga, o atual governador paulista já é o novo presidente da República, sendo tratado como tal nos mesmos encontros em que seus representantes perpetuam a falácia de que são o motor econômico do país.

Nutrindo o debate eleitoral 

Para denunciar esse projeto entreguista e anticidadania, representado pela dupla Nunes/Freitas, os movimentos populares que atuam nas áreas de Agroecologia e Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional tomaram uma posição firme neste pleito: Queremos MUDANÇA! E quem representa a possibilidade de virar a mesa da fome, da sede, do veneno e da destruição ambiental em Sampa é a candidatura de Guilherme Boulos e Marta Suplicy. Além de terem assinado nossa Carta de Compromissos na Campanha Agroecologia nas Eleições em São Paulo, a trajetória de luta pelo acesso à alimentação de qualidade e as propostas efetivas para que a comida boa chegue ao prato do povo evidenciam que têm um projeto político muito diferente do que vem sendo executado nos últimos anos.

É por isso que dezenas de organizações sociais se uniram para elaborar o Manifesto POR UMA SÃO PAULO SEM FOME e expressar veementemente o apoio a Boulos e Marta, convocando outras organizações a se juntarem nessa mobilização pela vida. E o documento não poderia ter sido lançado de forma mais vigorosa. No mesmo Dia Mundial da Soberania Alimentar em que a dupla Nunes/Freitas tentou, mais uma vez, impedir as pessoas em situação de rua de receberem o alimento que as sustenta, nós saímos em marcha, criando uma onda de energia ativista que percorreu o trecho que vai do Theatro Municipal à Praça da Sé, fazendo uma pausa estratégica em frente ao prédio da prefeitura paulistana.

Movimentos do campo e da cidade levaram suas bandeiras, suas canções, seus gritos de combate e suas esperanças nessa caminhada pelo centro de Sampa. Nas mãos, pratos vazios em que mensagens sobre a fome reluziam sob o sol da tarde. Betinho, Carolina de Jesus, Josué de Castro, estavam entre os autores das frases, expressando em diversos níveis o que esse fenômeno tão doloroso traz às nossas existências. Para completar essa seleção de saberes, também estavam escritos alguns dados dramáticos sobre o cenário de insegurança alimentar e nutricional que o município apresenta atualmente, levando ao espaço público o que o prefeito tentou esconder, ao tentar boicotar a apresentação da pesquisa.

Pesquisa, aliás, que foi feita a partir de uma emenda parlamentar da Bancada Feminista do PSOL – que não por acaso é do mesmo partido de Guilherme Boulos e que, junto com outros partidos do campo progressista, oferece à população paulistana a possibilidade de sair dessa triste e inaceitável situação.

Sim, é possível romper a lógica do lucro a qualquer custo, da privataria, da escassez que gera a dominação e a exclusão. É possível fomentar as políticas públicas que alterem a estrutura injusta e insustentável que aí está. É possível ter uma Sampa com um verdadeiro projeto de abastecimento alimentar popular, com sacolões, hortas e cozinhas comunitárias em que os alimentos sem veneno produzidos pela agricultura familiar brilhem forte e dêem saúde, energia e dignidade ao nosso povo. Afinal: Gente é pra Brilhar, Não para Morrer de Fome.

Venha com a gente nessa luta, assine o manifesto pela sua organização, ocupe as ruas e as redes, espalhe as sementes da MUDANÇA. No dia 27 de outubro, vamos mostrar que a COMIDA BOA está no centro da mesa neste debate eleitoral!

Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

*Arquiteta urbanista, é judárabe – descendente de judeus romenos pelo lado paterno e de libaneses por parte materna – e integra a Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida e o Movimento Urbano de Agroecologia (MUDA)

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