Recentes privatizações – da Sabesp e da empresa metropolitana de águas – levarão ao desinvestimento em infraestrutura e a contas mais caras. Isso enquanto 60% das cidades do estado enfrentam seca extrema. Caso de Cochabamba é exemplo de tragédia e resistência
por Tamara Zambiasi*, em Outras Palavras
São Paulo vive uma seca alarmante, considerada a mais severa dos últimos quarenta anos, com cerca de 60% das cidades do estado enfrentando condições de seca extrema ou severa. Na capital, cinco dos sete principais reservatórios que abastecem a população estão abaixo do nível ideal, incluindo o Sistema Cantareira, fundamental para o abastecimento da Grande São Paulo, que opera com menos de 50% de sua capacidade. Esse cenário é um déjà vu do que, em 2013, prenunciou a crise hídrica de 2014/2015.
Contudo, enquanto o cenário atual pede por investimentos em conservação e infraestrutura, o governo estadual segue um caminho polêmico: a privatização da água no estado. Apenas este ano, duas empresas essenciais para a segurança hídrica da região foram alienadas para a iniciativa privada, a Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp) e da Empresa Metropolitana de Águas e Energia (EMAE), gerando preocupações sobre a sustentabilidade do abastecimento e a segurança hídrica do estado.
O que está em jogo com a privatização da Sabesp e da EMAE?
A privatização da Sabesp marcou uma inflexão na política de gestão hídrica do estado. Responsável pelo abastecimento de água para quase 30 milhões de pessoas, a Sabesp tem sido central na resposta às crises hídricas do estado. Em julho de 2024, o controle da companhia foi transferido para um consórcio privado liderado pela Equatorial Energia. A mudança não apenas entregou a gestão do sistema de abastecimento paulista ao setor privado, mas seguiu uma nova política de dividendos que destina até 100% dos lucros aos acionistas, reduzindo substancialmente a capacidade de reinvestimento em infraestrutura. Se anteriormente a Sabesp reinvestia, em média, 75% dos lucros para manutenção e expansão dos sistemas, garantindo, assim, a robustez e a resiliência do abastecimento, agora o futuro dos investimentos em infraestrutura crítica se torna uma incógnita em um cenário de crescente vulnerabilidade hídrica e clima extremo.
Um dos principais pontos de preocupação é o sistema Cantareira, operado pela Sabesp e responsável pelo abastecimento de 60% da Região Metropolitana de São Paulo. O sistema é composto por uma complexa rede de canais, túneis e estações de tratamento que se estende por aproximadamente 100 quilômetros até chegar à estação de tratamento de Guaraú e abastecer a metrópole. Durante a crise de 2014-2015, os investimentos diretos da Sabesp foram cruciais para mitigar a escassez de água e assegurar a continuidade do abastecimento. Esses investimentos incluíram obras de interligação entre reservatórios e melhorias nas estações de tratamento e distribuição. Além das intervenções estruturais, a Sabesp implementou campanhas de conscientização para o uso racional da água, adotando um esquema de bônus para consumidores que reduzissem seu consumo.
Essas medidas emergenciais foram fundamentais para reduzir a pressão sobre o sistema e minimizar o impacto direto da crise no dia a dia da população. Embora a Sabesp fosse uma empresa de capital aberto, o controle acionário mantido pelo Governo de São Paulo funcionava como um contrapeso aos interesses dos acionistas. A prioridade da companhia era clara: garantir o abastecimento de água como serviço essencial, mesmo que isso significasse custos elevados com obras emergenciais e menor arrecadação devido às iniciativas de incentivo à economia de água, como os descontos oferecidos aos clientes que reduziam a demanda. Essa abordagem, voltada para o bem público, dificilmente seria possível em uma empresa privada focada exclusivamente na eficiência financeira.
Em outubro foi a vez de a EMAE passar oficialmente ao controle do setor privado, arremata pela Phoenix, fundo de investimentos liderado pelo empresário Nelson Tanure, conhecido por sua atuação em setores estratégicos e pelas multas milionárias impostas pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM) por questões de transparência e práticas controversas. A companhia, que opera quatro usinas hidrelétricas, é conhecida pela histórica Henry Borden, fundada nos anos 1920. Com capacidade instalada de 889 megawatts, o que pode atender até 3 milhões de pessoas, a usina opera abaixo desse nível na maior parte do tempo devido a restrições ambientais e à preservação de recursos hídricos, uma vez que depende das águas da represa Billings para a geração de energia. Em períodos de seca a geração pode cair para menos de 15% da capacidade, com uma média operacional em torno de 133 megawatts.
Para o setor elétrico, a transferência da EMAE ao controle privado representa uma oportunidade de potencializar o retorno financeiro. De fato, desde a promessa de privatização realizada pelo governo atual, a EMAE aumentou a produção de energia em cinco vezes para alcançar resultados financeiros mais atraentes aos possíveis investidores futuros. Contudo, a longo prazo, essa busca por rentabilidade pode desestabilizar o delicado equilíbrio entre a produção de energia e a capacidade de abastecimento de água do reservatório Billings, levando a questionamentos sobre os impactos na qualidade dos recursos hídricos e na segurança de abastecimento de milhares de paulistas.
O reservatório Billings, localizado na região metropolitana de São Paulo, integra o sistema Guarapiranga, o segundo maior complexo produtor de água da região, responsável pelo abastecimento de cerca de 20% da população. Com capacidade similar ao Cantareira, a Sabesp chegou a considerar Billings como uma alternativa promissora para o abastecimento de água na capital durante a crise de 2014/2015. A utilização da Billings como manancial de abastecimento permitiria recuperar uma represa já existente, aproveitando uma fonte de água próxima à cidade. Além de ser uma solução ambientalmente mais sustentável, essa opção evitaria os custos bilionários de construção de novas represas em áreas distantes, cuja efetividade pode não ser imediata, atendendo melhor às demandas urgentes por água na região.
Diante desse cenário, a privatização da EMAE levanta preocupações sobre o futuro de um sistema já vulnerável. Com a entrada de investidores privados, cresce a pressão para maximizar o retorno financeiro, o que pode levar ao uso intensivo das águas do reservatório Billings para aumentar a geração de energia. O direcionamento das águas da Billings para a geração de energia significa que uma parte significativa de seus recursos hídricos é utilizada para alimentar turbinas, o que limita a disponibilidade de água para consumo público. Em períodos de seca ou crises hídricas, essa prática se torna ainda mais controversa, já que a prioridade para o consumo humano entra em conflito com a estratégia de maximização de geração elétrica.
Como infraestrutura essencial para a segurança hídrica de São Paulo, o reservatório Billings precisa ser gerido com cautela. A privatização implica transferir o controle desse recurso vital para a iniciativa privada, o que pode limitar a capacidade do governo de tomar decisões que privilegiem o interesse coletivo. Em situações extremas, como períodos de escassez ou quando a preservação se torna urgente, o governo poderá enfrentar obstáculos para intervir e adotar medidas rápidas que garantam a proteção do recurso e o abastecimento da população.
Um exemplo emblemático de como a escassez de recursos hídricos pode ser intensificada pela privatização é o caso de Cochabamba, na Bolívia. Em 1999, o governo boliviano privatizou o sistema de abastecimento de água da cidade, entregando-o à empresa Aguas del Tunari, um consórcio liderado pela multinacional Bechtel. Com o controle privado, as tarifas de água aumentaram drasticamente, tornando o acesso inviável para uma grande parte da população. Além disso, a privatização incluiu uma cláusula que proibia a coleta de água de poços e sistemas comunitários, pressionando ainda mais os recursos hídricos limitados.
A crise hídrica se intensificou diante de um longo período de seca no país, levando a uma grande insatisfação popular. Em 2000, os habitantes de Cochabamba iniciaram protestos massivos, que ficaram conhecidos como a Guerra da Água, exigindo a reversão da privatização e o restabelecimento do controle público sobre o sistema de água. A situação culminou em confrontos violentos entre manifestantes e forças policiais, e, eventualmente, o governo boliviano cancelou o contrato com a Aguas del Tunari, devolvendo a gestão do abastecimento à cidade. O caso de Cochabamba permanece um exemplo de como a privatização da água, aliada à escassez de recursos hídricos, pode resultar em crise social e ambiental, destacando a importância de políticas que equilibrem o acesso equitativo e a preservação dos recursos.
Consequências para a população: quem paga a conta?
A privatização da água frequentemente leva ao aumento das tarifas e à redução do acesso, especialmente para as populações mais vulneráveis. Empresas privadas, focadas em maximizar seus lucros, costumam aplicar reajustes tarifários que elevam a receita, mantendo altos salários executivos e, muitas vezes, comprometendo a qualidade da água e o atendimento ao consumidor. Com a água sendo tratada como mercadoria, e não como um direito humano básico, os mais pobres sofrem os maiores impactos, ficando, por vezes, sem acesso adequado.
Além disso, a privatização da água favorece a corrupção, uma vez que as estruturas de privatização, por sua natureza, incentivam práticas corruptas. Isso ocorre devido a falta transparência e prestação de contas em cada etapa do processo, desde a licitação até a entrega do serviço de água. Muitas vezes, os contratos são negociados a portas fechadas e seus detalhes permanecem confidenciais, embora o público seja diretamente afetado por essas condições. Um exemplo recente é o da Thames Water, empresa privada de água na Inglaterra, acusada de exercer lobby sobre a agência reguladora para obter uma autorização de aumento de 44% nas tarifas em 2024, ilustrando os riscos de práticas predatórias no setor.
Um equívoco comum é a ideia de que a privatização diminui o custo para o contribuinte. Na prática, o financiamento privado, sujeito a taxas e juros elevados, encarece projetos que poderiam ser mais econômicos se realizados com financiamento público isento de impostos. Assim, os consumidores acabam pagando taxas mais altas nas tarifas mensais, suportando os custos de manutenção e investimento em infraestrutura. A privatização do sistema de água em Buenos Aires, Argentina, na década de 1990, é exemplificativo dessa condição. Embora o objetivo inicial fosse aliviar o orçamento público, o financiamento privado gerou um aumento nos custos operacionais que foram repassados diretamente aos consumidores, elevando as tarifas de forma significativa. Com o aumento das reclamações sobre a qualidade e acessibilidade do serviço, o governo argentino decidiu encerrar o contrato em 2006 e retornar o sistema de água e esgoto ao controle estatal sob a empresa estatal AySA (Agua y Saneamientos Argentinos).
A privatização da Sabesp e da EMAE, com a intensificação das mudanças do clima e com o risco iminente de mudanças no uso do reservatório Billings, deve ser observada com cautela. As promessas de eficiência e modernização nem sempre se confirmam, e a experiência global aponta para a necessidade de maior prudência antes de transformar o acesso à água em um serviço orientado ao lucro. No contexto de mudanças climáticas e crescentes desafios hídricos, é urgente que a sociedade e o governo busquem soluções que assegurem a sustentabilidade e a universalização do abastecimento, reconhecendo a água como um bem público fundamental.
O futuro dos recursos hídricos em São Paulo está em jogo, e é papel do Estado buscar formas alternativas de financiamento e gestão que garantam a sustentabilidade e universalização do abastecimento de água sem renunciar ao controle público. Manter a água pública pode ser a chave para assegurar que o interesse coletivo e a preservação ambiental estejam acima do lucro.
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*Doutoranda em Geografia na Universidade de Cambridge. Integrante do ONDAS — Observatório dos Direitos à Água e ao Saneamento.
Foto: Jornal Terceira Visão/Reprodução