2026 é logo aqui e 2030 é logo ali: notas sobre a extrema direita no Brasil atual. Por Felipe Brito

No Blog da Boitempo

“Quando a gente não pode fazer nada, a gente avacalha.
Avacalha e se esculhamba.”
(Fala do filme O bandido da Luz Vermelha (1968),
dirigido por Rogério Sganzerla).

Em meio a uma epidemia de incêndios, aconteceu grande parte da campanha eleitoral para as 5.570 prefeituras municipais do país. Esse registro não é aleatório. A aludida epidemia de incêndios contém digitais do bolsonarismo.

Voltarei, logo em seguida, à questão, porque cabem, antes, duas explicações preliminares: o título do artigo fala em “extrema direita” e, já na segunda frase do primeiro parágrafo, aparece o termo “bolsonarismo”; ademais, a redação de “nova”/”velha” direita será feita com aspas ao longo do texto.  A ascensão da extrema direita no Brasil atual confunde-se com o estabelecimento do bolsonarismo, que aglutinou renitências das “velhas” direitas e os pedaços espalhados da emergência de uma “nova” direita na esteira das jornadas de junho de 2013, e recebeu alavancagem em meio às maquinações em torno do impeachment da Presidenta Dilma Rousseff. Aqueles e aquilo que não ingressaram no amálgama bolsonarista, ou foram pulverizados, ou se tornaram residuais. Logo, a abordagem da extrema direita no Brasil atual remete-nos à análise do bolsonarismo, e vice-versa. Quanto à inserção de aspas na redação de “nova”/”velha” direita, há uma função conceitual/categorial. A formação desse espectro político da “nova” direita manteve-se enredado aos alicerces da “velha” direita, que remontam às renitências oligárquicas, autoritárias, golpistas, infensas a quaisquer esboços de desenvolvimento nacional que abarquem os pobres no orçamento público e assegurem algum nível de participação popular como vetor de governabilidade.

Voltando ao registro do primeiro parágrafo, incêndios (criminosos) compõem o modus operandi convencional de setores poderosos da mineração e do agronegócio (que atuam, de maneira ativa e estratégica, no campo político bolsonarista). Partindo de uma dimensão que podemos chamar de estrutural, a finalidade obsessiva de acumulação de dinheiro que comanda o modo predominante de produzir, circular e consumir coisas e serviços na sociedade vigente, já provoca devastação ambiental. Essa devastação (estrutural) é ampliada em países que, como o Brasil, tornaram-se excessivamente dependentes da exportação, em larga escala, de mercadorias agropecuárias e minerais para o mercado externo. Entretanto, mesmo levando tudo isso em conta, a hiperconcentração, a ostensividade desses incêndios nos meses de agosto e setembro de 2024 sugere um agregado de intencionalidade com o propósito de perturbação, desestabilização políticas: a ministra do Meio Ambiente, inclusive, falou em “terrorismo ambiental”.

E por falar em perturbação e desestabilização políticas, dando um passo a mais no registro anterior, não é fortuito trazer ao texto a tentativa de atentado terrorista no dia 24 de dezembro de 2022, na qual foi colocada uma bomba em um caminhão de transporte de querosene, próximo ao Aeroporto de Brasília. O intuito era espalhar o caos para provocar e “justificar” uma intervenção militar (que a militância bolsonarista chama de “constitucional”, evocando o artigo 142 da Constituição Federal). Segundo as investigações, o know-how e o material de detonação explosiva foram provenientes do garimpo, e o planejamento do intento terrorista, que integrava um plano mais amplo de explosões de subestações de energia, ocorreu no tal “acampamento patriótico”, em frente ao Quartel General do Exército, em Brasília.

O fato é que a extrema direita, o bolsonarismo comportam, literal e simbolicamente, direcionamentos incendiários e disruptivos. Mas, afinal, o bolsonarismo é ou não é outsider, antissistêmico, antiestablishment!? Até que ponto isso é “à vera” e até que ponto é bravata!? Qual a relevância de se postular essa questão para o esforço de apreensão do bolsonarismo!? E por que milhões de pessoas no Brasil aderem ao bolsonarismo, sendo que parte dessa adesão acontece de modo militante?

Para os objetivos do texto, indicações plausíveis de respostas podem ser obtidas a partir da análise da eleição de São Paulo, que oferece referenciais ilustrativos das imbricações entre extrema direita, bolsonarismo, “nova” direita, “velha” direita. Na maior cidade da América Latina, cujo Produto Interno Bruto ultrapassa o de muitos países no mundo, eis que um candidato “outsider” “chuta o balde”, irrompe de modo meteórico e chacoalha o tabuleiro político-eleitoral estabelecido. É verdade que Pablo Marçal já havia participado de eleição anterior: elegeu-se Deputado Federal com 243.037 votos, e não obteve o deferimento do registro da candidatura por problemas com a prestação de contas dos gastos de campanha. Entretanto, isso não retira o caráter meteórico supracitado. Vale dizer que a condição de “outsider” não se aplica ao mundo da Internet, das redes sociais, das plataformas e economia digitais. Ao contrário, Pablo Marçal exerce incidência e influência em escalas superlativas, traduzíveis em termos de monetizações. Com alopração calculada, transportou para o universo político-eleitoral todo o arsenal usado na “terra sem lei” da Internet/redes sociais que impulsiona a superacumulação de visualizações/likes/engajamentos e a exprime em termos de superacumulação monetária. Na função de coach influencer, prescreve e proclama o enriquecimento financeiro como imperativo e eixo orientador central de uma vida “correta”, “autêntica”. Partindo dessa atuação virulenta no universo de negócios da internet, dirigiu-se à tarefa de acionar uma espécie de decalque (anti)político desse ethos empreendedorista extremado e agressivo, respaldado na via de mão dupla que se estabeleceu entre o referido ecossistema mercadológico da internet e o campo político da extrema direita. A propósito, sobre isso, em um universo de análise de 1 milhão de perfis do Instagram, no segmento de influencers com mais de 200 mil seguidores, 87% manifesta vinculação com o bolsonarismo.1

Subjacentes a essas manifestações, há nexos profundos entre a montagem e o funcionamento de negócios capitaneados pelas Big Techs e intervenções políticas (pautadas, diretamente, em ferramentas desenvolvidas no bojo desse modelo de negócios). Essa questão, que constitui um vetor central no modus operandi político atual, será analisada mais à frente neste texto. Cabe, porém, registrar de antemão, a título ilustrativo, a instauração de uma espécie de milícia digital ligada à candidatura Marçal, impulsionada pelos rendimentos auferidos na participação dos chamados “campeonatos de cortes”. Tais “campeonatos” engendraram cursos online para ensinar a produzir “cortes”, especialmente os “cortes do Marçal”. Um desses “campeonatos de cortes” gerou o montante de 658 milhões de visualizações, em 3,4 mil perfis diferentes no Instagram, YouTube e TikTok, com um total de prêmios na casa de R$ 70,2 mil.2

Basicamente, a campanha política de Marçal foi baseada e dinamizada por bombardeios de insultos e mentiras das mais absurdas (alardeadas, em geral, em tons agressivos, conflitivos), junto com propostas em torno do empresariamento transversal da gestão pública e da cidade. Em síntese, bombardeio de impropérios e fake news, extravasamento empresarial (aguçado por hiperindividualismo e salpicado com desprezo institucional seletivo). Um aumento exponencial de visualizações/likes/engajamentos pôde ser notado, entre vários exemplos, por um levantamento realizado entre 26 de agosto e 1º de setembro de 2024, que registrou a acumulação de oito vezes mais interações do que o somatório de todos os outros candidatos.3 Marçal obteve 1.719.274 votos e, por pouco, não avançou para o segundo turno. Ricardo Nunes, o candidato oficial de Bolsonaro, obteve 1.801.139 votos e avançou para o segundo turno com Guilherme Boulos, candidato do campo da esquerda, que obteve 1.776.127. Apesar de não ter avançado para o segundo turno, Marçal, na disputa interna com Ricardo Nunes pela primazia eleitoral na órbita bolsonarista, parece que a conquistou. Em aferição prévia ao dia da votação, um instituto de pesquisa indicou um percentual de 51% para Pablo Marçal contra 34% para Nunes.4 A candidata do Partido Novo, Marina Helena, que também gravitou na órbita da extrema direita, obteve 84.212 votos.

Ricardo Nunes elegeu-se Prefeito de São Paulo com 3.393.110 votos. Não alardeou o apoio de Bolsonaro e, em alguns momentos, o camuflou, sem abdicar de insumos políticos dirigidos à militância bolsonarista, nas dosagens e momentos sopesados pelo aparato do marketing eleitoral. O vice da chapa foi indicado pelo PL, partido de Bolsonaro (e pelo próprio Bolsonaro): um militante bolsonarista ativo, oficial da reserva da Polícia Militar de São Paulo, ex-comandante da ROTA, que presidiu a Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais de São Paulo (Ceagesp) mediante nomeação do próprio Bolsonaro.

Junto à gravitação na órbita bolsonarista, a candidatura de Ricardo Nunes abarcou uma coligação de 12 partidos: MDB, PL, PSD, PP, Podemos, Agir, Solidariedade, Republicanos, Avante, PRD, Mobiliza, União Brasil. Segundo consta, além das movimentações de Michel Temer (costumeiramente nas sombras), Gilberto Kassab, presidente nacional do PSD, foi o grande artífice dessa parafernália político-eleitoral – um “suco vitaminado” de Centrão. O governador Tarcísio de Freitas também exerceu papel central, como um grande fiador político, e aproveitou o cenário para ensaiar uma composição política voltada à eventual disputa da Presidência da República em 2026 e ao espólio do bolsonarismo (sem Bolsonaro). De uma outra perspectiva, cabe assinalar que Pablo Marçal também promoveu ensaios voltados tanto à disputa pelo espólio do bolsonarismo quanto à Presidência da República. Falando em “suco vitaminado” de Centrão, de cada quatro brasileiros e brasileiras, três terão prefeitos filiados ao PSD, MDB, PP, União Brasil, PL ou Republicanos, perfazendo um total de 4.022 prefeituras de 5.569 municípios.5 Proporcionalmente, PSD, MDB e PP concentraram mais de 1 em cada 3 vereadores eleitos.6 Essa abrangência e capilarização foi turbinada por um processo de captura do orçamento público federal. O tal “orçamento secreto” e as tais “emendas pix” constituíram-se como dois dispositivos dessa captura e, por consequência, de exercício e disputa do poder político, angariados no período bolsonarista da Presidência da República. Mediante essa captura, o Centrão elevou, em patamares inauditos, o já elevado grau de empoderamento político-eleitoral, erguido nos marcos do regime democrático pós-ditadura empresarial-militar de 1964-1985. Foram direcionadas mais de R$ 80 bilhões em emendas para os municípios brasileiros entre 2021 e 2024. Em um universo das 116 prefeituras mais contempladas com esse montante, houve um índice de reeleição de 98%, majoritariamente ligado aos partidos supracitados e aos demais do Centrão.7

Com efeito, nesse emaranhado de “velha”/”nova” direita, uma “radiografia” do Centrão nos remete, em larga escala, à Arena (Aliança Renovadora Nacional), partido da situação criado na ditadura empresarial-militar, em 1966, no bojo do sistema bipartidário instituído pelo AI 2 (Ato Institucional número 2). A Arena aglutinou a UDN (União Democrática Nacional) e a maioria do antigo PSD (Partido Social Democrático), duas ferramentas partidárias atreladas aos interesses das classes dominantes, entre 1946-1964. E, como muito bem lembra o Professor André Singer, “pessedismo e udenismo […], por sua vez, deitavam raízes na República Velha, quiçá no Império”.8

As intersecções e afinidades entre o bolsonarismo e o Centrão constituem uma chave de análise de ambos os campos políticos e de aspectos fundamentais da própria dinâmica política do país. O que há de bolsonarismo no Centrão e o que há de Centrão no bolsonarismo? E o quanto de bolsonarismo se encontra alojado no regime político e nos marcos institucionais erguidos na esteira da redemocratização pós-ditadura empresarial-militar de 1964-1985? Essas questões podem servir como balizas para o mapeamento e a construção de explicações possíveis para o fato de que a sociedade brasileira atual comporta, em larga escala, fenômenos sociais, econômicos, políticos, culturais e afetivos como o bolsonarismo. Tomando como base o comando no Poder Executivo Federal, entre 2018 e 2022, o bolsonarismo conduziu uma tecnologia de governança modulada em torno da expropriação, pilhagem de fundo público, ativos públicos, recursos naturais e socioculturais, atualizada nas coordenadas vigentes da “acumulação por despossessão ou espoliação”.9 Nessa tecnologia de governança, devastação não é somente efeito, consequência, mas se institui como móvel e método proeminentes, atrelados aos objetivos de despossessão generalizada, percorrendo as trilhas (re)abertas pelo extremismo neoliberal e arrivismo político contidos tanto no programa econômico quanto nas maquinações voltadas ao impeachment inconstitucional de 2016. Móvel e método embalados, também, pelas injeções de antipolítica e “viralatismo” cultural, em doses cavalares, perpetradas pela Lava Jato. Compôs (e compõe) a tecnologia bolsonarista de governança, junto ao móvel da devastação, uma sistemática de conturbações, pressões, achincalhamentos direcionada a um leque ampliado de instituições do regime político, que se desdobrou em intentos e iniciativas diretamente golpistas (ecoando, no emaranhado da “nova”/”velha” direita, os pendores golpistas, autoritários, das “saídas”/“soluções” pelo alto de setores influentes das Forças Armadas e de lumpencapitalistas – dois alicerces da extrema direita e da governança bolsonarista. ABIN paralela, gabinete negacionista da Saúde, gabinete do ódio (propagador das fake news) e canais paralelos ao Itamaraty de atuação na política externa foram exemplos, dentre outros, de ferramentas e produtos dessa tecnologia de governança. Pari passu, o bolsonarismo mergulhou e se “lambuzou” de establishment político e adquiriu, com isso, blindagem parlamentar diante dos 158 pedidos de impeachment, bem como dos corriqueiros crimes de responsabilidade cometidos. Atuou pesado no objetivo de perpetuação do comando no Poder Executivo Federal e de expansão de bancadas parlamentares e de governadores aliados. Estima-se em R$ 300 bilhões a gastança com essa atuação, englobando emendas, isenções fiscais, subsídios, majoração (temporária) de auxílios (visando incidir na base eleitoral lulista) etc.10 Até calote em precatórios aconteceu, chancelado por meio de uma Proposta de Emenda Constitucional, relegando uma dívida de R$ 141,7 bilhões ao governo Lula.11 Se tomarmos como parâmetro as coordenadas básicas do regime democrático em vigor no país, trata-se de um direcionamento profundamente pró-sistêmico, pró-establishment que, todavia, ”logo, ali”, se desdobrou em planos e ações golpistas perpetrados como reação à vitória eleitoral de Lula.

Verifica-se um emaranhado de sentidos pró e antissistêmicos, além de um novelo de “nova”/”velha direita, que ressoa em inclinações disruptivas de parte considerável da militância de extrema-direita e encontra eixos de ancoragem em uma posição social abstencionista de milhões de brasileiros e brasileiras. O que designo como posição social abstencionista decorre de déficits de vivências públicas. É plausível considerar que vivências públicas são rarefeitas diante dos solavancos da “viração” diária de milhões de pessoas, atreladas ao imperativo da obtenção de rendimentos não ou pós-salariais, em ambientes e contextos marcados, muitas vezes, pela desintegração econômica, segregação socioespacial, truculência cultural, desvalia institucional e negligências afetivas. O déficit de densidade participativa na política institucionalizada e suprainstitucionalizada é um vetor que perpassa a teia dos déficits de vivências públicas. Aqui, a “velha” roupagem dos bloqueios diretos das participações políticas, que remontam ao golpe de 64 e à imposição de uma ditadura empresarial-militar de mais de duas décadas, encontrou a “nova” roupagem do menosprezo dos governos neoliberais do PSDB às erosões de legitimidade política, no bojo das contrarreformas à arquitetura do Estado social prescrito pela Constituição Federal de 1988.

Com efeito, é muito importante sublinhar que esse debate não se circunscreve apenas ao âmbito subjetivo: abarca bases materiais/objetivas e demarcações históricas. A associação de impactos provocados pela crise de superprodução do capitalismo e pelo predomínio do neoliberalismo favoreceram as bases para o desmanche dos nexos entre formalização do trabalho, assalariamento e integração social mediada por direitos – nexos tradicionalmente tênues no país, diante das características fundantes da formação social brasileira e dos modelos prevalecentes de modernização econômica. Apartados de direitos previdenciários, trabalhistas, de suporte sindical, de formalização laboral, relegados à condição de veículos atomizados de obtenção de rendimentos não ou pós-salariais, trabalhadoras e trabalhadores tendem a ficar mais suscetíveis a serem empurrados à formatação e mobilização de algum tipo ultraindividualista e “ensimesmado” de agir-sentir-pensar, de agenciamentos psíquicos/subjetivos defensivistas, cismados, ressentidos de atuar em sociedade e enxergá-la, representá-la. Mediante tais agenciamentos, mobilidades socioeconômicas e socioculturais, iniciativas com direcionamentos distributivos e expansivos (nos âmbitos econômico, político, cultural e afetivo) tendem a ser sentidas e interpretadas como ameaçadoras ou, mesmo, como coisas repugnantes. Medo e ódio (destrutivo e ressentido) são duas chaves (associadas) de afetos que costumam se realçar nesses agenciamentos, e se mostram muito passíveis a mobilizações e instrumentalizações (anti)políticas. Esses processos psíquicos/subjetivos, escorados em bases objetivas, são atravessados por injunções oriundas da estrutura de classes, e adquirem formatações imensuráveis, visto que cada pessoa é um universo.

Conforme já assinalado no texto, o estabelecimento do bolsonarismo confunde-se com a ascensão da extrema direita no Brasil atual. Com isso, desempenha a função de fornecer diretrizes políticas a esse segmento. Com a vitória nas eleições presidenciais de 2018, o segmento bolsonarista também se configurou como uma tecnologia de governança. Além do mais, uma outra dimensão (não abstraída das anteriores) precisa ser sublinhada: o bolsonarismo fornece canais de destinação, contornos e representações à posição abstencionista, aos déficits de vivências públicas. E, tomando como referência o continente da superacumulação de trabalhadores não assalariados misturados aos pós-assalariados, o bolsonarismo aparenta se encontrar “mais à mão”, mais “acessível”, mais “funcional”, pelo menos para uma quantidade considerável desses trabalhadores.

É inadequado priorizar somente um enquadre ideológico no trato desses processos. A rigor, não estamos diante de fenômenos exclusiva ou prioritariamente ideológicos. Tais processos são vertebrados e dinamizados por um circuito de agir-sentir-pensar (não, necessariamente, nessa ordem), que articula ações, afetos e representações (também, não necessariamente, nessa ordem). É oportuno, nesse ponto, para desenvolver o raciocínio, abordar, ainda que muito sucintamente, o universo das redes, mídias sociais e plataformas digitais. Aliás, retomando a eleição de São Paulo como painel ilustrativo, o candidato mais votado para a Câmera de Vereadores, com 156.805 votos, foi um nativo digital e influencer bolsonarista, com 1 milhão e 300 mil seguidores no Instagram, cuja referência é Nikolas Ferreira (deputado federal mais votado do Brasil na eleição passada para a Câmara dos Deputados). Lucas Pavanato, malgrado sua filiação ao PL, partido da base de apoio de Ricardo Nunes, declarou apoio à candidatura de Marçal.

De início, cabe destacar o desenvolvimento e consolidação de um avassalador universo de negócios, via Google, a partir da  formatação e escrutínio de perfis de usuários/consumidores, com o intuito de direcionar mercadorias, propagandas, marketing, porém de modo “milimétrico”, “cirúrgico”, no contexto vigente de superprodução/superacumulação de mercadorias/dinheiro/capital, hipertrofia do setor de serviço,  desindustrialização (relativa). Na base desse universo de negócios, encontra-se o que especialistas do tema chamam de “extrativismo digital”,12 que estabelece dispositivos de capturas (incomensuráveis) de dados e informações, impulsionadas pelo monitoramento constante e minucioso dos acessos desses usuários/consumidores ao próprio Google e às grandes plataformas digitais, como Facebook, Instagram, X etc. Através dessa engenharia megalomaníaca de negócios, constatou-se que a associação afetiva entre medo, ódio (destrutivo) e ressentimento é “campeã” de engajamentos (e, por conseguinte, de monetização).

A empresa Cambridge Analytica, umbilicalmente vinculada à (re)construção do campo da extrema direita nos EUA (e no mundo), baseada no extrativismo digital e no escrutínio de perfis de usuários/consumidores, foi precursora no desdobramento do modelo de negócios acima aludido em arma política. Aqui, cabe inserir o debate acerca das chamadas fake news. Na realidade, acerca do bombardeio de fake news, posto que, assim situado, o debate vai muito além e aquém da veracidade ou inveracidade dos conteúdos bombardeados; os processos de adesão vão muito além e aquém do convencimento pela via intelectiva usual. Sem a pretensão de estabelecer uma explicação de caráter universal, é plausível considerar que a ostensividade e virulência contidas nos bombardeios cirurgicamente direcionados aos perfis psicológicos/subjetivos provocam o reforço, atiçamento de determinados mecanismos psíquicos de defesa e de (pré)disposições afetivas reativas. Alcançam pessoas de algum modo inclinadas, (pré)dispostas a “agarrar” o enunciado bombardeado, “compatível” com a meta de defesa acionada diante de gatilhos oriundos de objeto, evento, representação ameaçadores, rechaçando-os, repelindo-os, denegando-os etc. A veracidade ou inveracidade da “mamadeira de piroca” (e de todo o arsenal bizarro de fake news) não é o cerne. Logo, esse léxico bélico utilizado, aqui, no debate, não é aleatório e meramente hiperbólico. No uso e abuso dessa arma política, o combustível prioritário incitado é também composto pela associação afetiva entre medo, ódio (destrutivo) e ressentimento.

É prudente observar, contudo, que essa abrangência do arsenal virtual não dissipa o espaço de atuação política presencial e de interação pessoal. A dimensão relacional, intersubjetiva mantém-se como móvel de adesão política e material constitutivo de formatações políticas e (anti)políticas. Por mais exacerbadas que sejam as propensões a algum tipo de blindagem psíquica/subjetiva “ensimesmada”, hiperindividualista, em um contexto de transbordamento de influxos provenientes das redes/mídias sociais e plataformas digitais, demandas e referências relacionais não se deixam contornar, por completo: vão buscar alguma expressão, mesmo que por vias misantrópicas (por mais paradoxal que seja ou aparente ser). Observações, perscrutações das redes de socializações nos tais acampamentos patrióticos, por exemplo, forneceram coordenadas para se verificar essa questão. Divulgações, convites, exortações, chancelas de posicionamentos e atividades, quando emitidos por pessoas de referências, em círculos presenciais de convivência, não perderam relevância nas ignições e ligas políticas (e antipolíticas). Assim, as milícias digitais e os bombardeios de fake news são associados a outras searas de mobilização e atuação da extrema direita. Além da manutenção de atos de rua, o avanço significativo nos Conselhos Tutelares, por exemplo, fornece uma amostra disso.

Voltando à eleição municipal de São Paulo, após a divulgação do resultado do primeiro turno, o então candidato Pablo Marçal declarou à imprensa: “2026 é logo ali”. Gilberto Kassab declarou projetar para 2030 a candidatura de Tarcísio de Freitas à Presidência da República. O campo de força político, que não comporta vácuo, continua a todo vapor. No final de 2024, o setor hegemônico do capital, a elite financeira, sob os auspícios do presidente bolsonarista do Banco Central, ganhou (ainda mais) enxurradas de dinheiro, promovendo um ataque especulativo contra o real ao se aproveitar do viés internacional de alta do dólar, ocasionado pela eleição de Donald Trump. Ao mesmo tempo, instrumentaliza o produto desses ataques especulativos – dólar nas alturas, real depreciado – como arma política voltada a provocar turbulências econômicas no país e, com isso, coagir o governo Lula a nem mesmo questionar o escoamento de bilhões do orçamento via pagamento de juros (escorchantes) da dívida pública e isenções fiscais. É possível notar que esse dispositivo econômico-político comporta uma verve disruptiva. O próprio modus operandi do establishment financeiro comporta uma verve disruptiva que confere coerência à excitação da Faria Lima com a candidatura (“outsider”) de Pablo Marçal, bem como ao posterior apoio acachapante, no segundo turno, à candidatura bolsonarista oficial de Ricardo Nunes.

No campo da esquerda, considero importante sublinhar que Guilherme Boulos demonstrou muita energia e resiliência para atravessar o difícil processo eleitoral, enfrentando, coetaneamente, as múltiplas faces do bolsonarismo, as máquinas do governo municipal e estadual, o somatório dos nichos eleitorais do Centrão, os ensaios de composições políticas voltados a eventuais disputas da Presidência da República em 2026 e 2030. Realizada a pedregosa travessia eleitoral, Boulos abraça, com versatilidade e empatia, a tarefa desafiadora de (re)construir e restabelecer formas de aproximação e conexão com as pessoas que compõem a superacumulação de pós e não assalariados, absortas na “viração” do dia a dia. Conforme debatido no texto, as metamorfoses do mundo do trabalho e, mais do que isso, o desmantelamento de algumas de suas categorias fundantes, impactam as gramáticas políticas ancoradas no mundo do trabalho, edificadas, historicamente, ao longo das travessias das esquerdas. No mesmo compasso, Boulos manifesta empenho em consolidar e renovar vínculos com essas pessoas no âmbito socioespacial, com a consciência de que a periferia mudou, mas ainda padece de chagas seculares decorrentes das segregações urbanas.

É de suma importância reconhecer que, inobstante contradições e paradoxos, o lulismo é, efetivamente, a única força política, em vigência no país, capaz de imputar freios e contraposições ao bolsonarismo e à lógica dominante das pilhagens de ativos e fundo públicos, recursos naturais e socioculturais. Boulos fomenta uma relação muito responsável com o lulismo. Conforme declarou em entrevista recente, Boulos se coloca à disposição de “fazer de tudo o que estiver ao alcance” para contribuir com a reeleição do Presidente Lula, “a maior liderança política da história brasileira”, “pela importância que isso tem para o Brasil”.13 Nessa perspectiva, é relevante frisar, também, um salutar pragmatismo. Faria Lima, Centrão, lumpenburguesia, militância bolsonarista esfregam na nossa cara, diuturnamente, que, apesar de todas as “novas” roupagens pós-modernistas, a política hegemônica continua sendo campo (pesadíssimo) de forças. Remar contra a maré não é fácil. Logo, encontrar agenciamentos plausíveis entre fatores objetivos e subjetivos, e encontrar calibragens plausíveis no ofício da política é exercitar um salutar pragmatismo.

No dia 1° de janeiro de 2025, os prefeitos e vice-prefeitos eleitos tomaram posse. O prefeito eleito de São Paulo, ligado ao bolsonarismo e ao Centrão, nomeou como Secretária de Relações Internacionais da cidade Angela Gandra Martins. Militante bolsonarista fundamentalista, ela foi secretária nacional da Família sob a égide da ex-ministra Damares Alves, e protagonista nas articulações internacionais com movimentos e eventos de extrema direita, atuando, inclusive, em canais paralelos das Relações Exteriores no governo Bolsonaro.

O campo de força político, que não comporta vácuo, continua a todo vapor. 2026 é logo aqui e 2030 é logo ali!

Notas

  1. Pesquisa coordenada pela Professora Rosana Pinheiro-Machado, intitulada Mídias Sociais como Plataforma de Trabalho Digital, citada em Barrocal, André. Pirâmides da Meritocracia: um estudo mostra os efeitos sociais e culturais dos influencers do bolsonarismo. Carta Capital. Número 1326. Páginas 14-19. 13 de novembro de 2024. ↩︎
  2. Lima, Caíque. Entenda como funciona campeonatos de “cortes” do MarçalDiário do Centro do Mundo. 28 de setembro de 2024. Acesso em 03 de janeiro de 2025. ↩︎
  3. Mesmo com conta bloqueada, Marçal domina engajamento digital na corrida de São PauloBrasil 247. 10 de setembro de 2024. Acesso em 03 de janeiro de 2025. ↩︎
  4. Entre bolsonaristas, vantagem de Marçal sobre Nunes cai de 25 para 17 pontos, diz DatafolhaCNN. 05 de outubro de 2024. Acesso em 03 de janeiro de 2025. ↩︎
  5. Mortari, Marcos. “Centrão” governará para 74% dos brasileiros a partir de 2025; veja balanço eleitoralInfoMoney. 28 de outubro de 2024. Acesso em 03 de janeiro de 2025. ↩︎
  6. Barbon, Júlia & Arthur, Vitor. MDB, PP e PSD concentram 1 em cada 3 vereadores no país. Outubro de 2024. Acesso em 03 de janeiro de 2025. ↩︎
  7. Emendas ajudam a reeleger 98% dos prefeitos ‘mais turbinados’ no 1º turno das eleições municipais. 09 de outubro de 2024. Acesso em 03 de janeiro de 2025. ↩︎
  8. Singer, André. Bolsonarismo Shrek: como as urnas afetaram as coalizões que devem se enfrentar em 2026. Páginas 28-33. Piauí. Número 218. 19 de novembro de 2024. ↩︎
  9. Harvey, David. O novo imperialismo. São Paulo: Loyola, 2004. ↩︎
  10. R$ 300 bi na tentativa de reeleger Bolsonaro. 13 de fevereiro de 2023. Monitor Mercantil. Acesso em 03 de janeiro de 2025. ↩︎
  11. Monteiro, Renan. Dívida da União com precatórios já chega a R$ 141,7 bilhões. 15 de abril de 2023. O Globo. Acesso em 03 de janeiro de 2025. ↩︎
  12. Ver, por exemplo, Faustino, Deivison & Lippold, Walter. Colonialismo digital. Por uma crítica hacker-fanoniana. São Paulo: Boitempo, 2023. ↩︎
  13. Metrópoles Entrevista: Guilherme Boulos, deputado federal (Psol). 18 de dezembro de 2024. Metrópoles. Acesso em 03 de janeiro de 2025. ↩︎

 

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Felipe Brito é docente do curso de Serviço Social da UFF (Universidade Federal Fluminense) no Campus de Rio das Ostras. Pela Boitempo, organizou, com Pedro Rocha de Oliveira, o livro Até o último homem: visões cariocas da administração armada da vida social (2013). Autor do artigo “Territórios Transversais” (em conjunto com Pedro Rocha de Oliveira), que integra o livro Cidades Rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil.

Ilustração: Outras Palavras

 

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