Assassinos de onças-pintadas: população de animais em floresta de SP cai 77% em uma década

Pesquisadores da região do Vale do Ribeira apontam a caça como principal fator para o declínio populacional

Por Gabriel Gama | Edição: Bruno Fonseca, Agência Pública

As onças-pintadas do Contínuo de Paranapiacaba, uma das áreas de Mata Atlântica mais preservadas do estado de São Paulo, podem desaparecer se nada for feito para reverter a situação. A população da espécie na região diminuiu 77% em uma década, segundo estimativas de pesquisadores do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) obtidas com exclusividade pela Agência Pública. A caça é apontada como a principal causa para a redução populacional.

O Contínuo de Paranapiacaba tem mais de 7 mil quilômetros quadrados de área protegida e está situado no Vale do Ribeira e Alto Paranapanema, no sul do estado. É composto por um mosaico de quatro parques estaduais, duas áreas de proteção ambiental, uma estação ecológica e algumas grandes florestas particulares. Desde 2006, o projeto do ICMBio “Onças-Pintadas do Contínuo de Paranapiacaba: Identificação Individual, Estimativa Populacional e Apropriação pela Sociedade” monitora de perto a presença e o comportamento dos felinos na região.

A onça-pintada é considerada um predador de topo da cadeia alimentar e desempenha um papel fundamental para o equilíbrio ecológico da Mata Atlântica, pois regula a quantidade de presas e sua presença no ecossistema é um indicador de boa qualidade ambiental. Entretanto, a espécie está classificada como criticamente em perigo de extinção no bioma.

Por que isso importa?

  • Pesquisa exclusiva mostra que quantidade de onças caiu 77% em dez anos.
  • Caça ilegal é apontada como principal fator para explicar o sumiço dos animais.

A primeira estimativa populacional das onças-pintadas no Contínuo de Paranapiacaba foi realizada para o intervalo entre 2009 e 2011. Naquele período, os pesquisadores calcularam que havia uma média de 0,66 animal a cada 100 quilômetros quadrados. Ou seja, é como se existisse pouco mais de “meia” onça em uma porção de mata do tamanho da cidade de Vitória (ES).

“Já era, naquela época, uma das menores densidades populacionais mensuráveis na Mata Atlântica, porque tem momentos em que a densidade populacional fica tão baixa que não é possível medir pelos métodos que usamos atualmente”, afirma Beatriz Beisiegel, bióloga e coordenadora do projeto.

A instalação de armadilhas fotográficas é a principal forma de estimar a população de onças-pintadas. Porém, devido ao comportamento da espécie – os machos costumam ser mais “ousados”, aparecendo diversas vezes diante das câmeras, enquanto as fêmeas são geralmente mais difíceis de serem localizadas –, não é possível determinar o número exato de animais. Por isso, usa-se o conceito de densidade populacional.

Recentemente, os pesquisadores fizeram uma nova estimativa da população da espécie, abarcando o período de 2020 a 2023. Os resultados ainda serão publicados em revista científica e foram obtidos com exclusividade pela Pública. O dado é estarrecedor: há, em média, 0,14 onça-pintada por 100 quilômetros quadrados. O número é aproximado, porque a própria baixa densidade populacional da espécie torna difícil obter estimativas muito precisas.

É como se, para encontrar uma onça “inteira”, fosse preciso percorrer 700 quilômetros quadrados de Mata Atlântica, ou uma área equivalente à cidade de Salvador. A comparação ajuda a ilustrar a raridade da espécie, mas, na realidade, as onças circulam repetidas vezes em uma mesma porção da mata. Por outro lado, a densidade populacional da espécie em uma área do Pantanal é de cerca de sete animais por 100 quilômetros quadrados, 50 vezes maior do que no Contínuo de Paranapiacaba.

Pesquisadora denuncia falta de apoio para investigar o assassinato de onças

No início de 2024, Beisiegel notou que o macho de onça-pintada RonRon, que tinha entre 5 e 7 anos de idade e estava no auge de sua vida reprodutiva, não aparecia nas imagens das armadilhas fotográficas desde outubro de 2023. O sumiço causou estranheza, pois o animal raramente passava mais de dez dias sem ser flagrado por uma das câmeras e não havia nenhum sinal de seu corpo.

Ela se lembrou, então, de uma denúncia anônima que havia recebido meses antes: uma pessoa havia lhe avisado que o pai de uma amiga, dono de uma fazenda nas imediações do Parque Estadual Intervales, uma das unidades de conservação que integram o Contínuo de Paranapiacaba, planejava matar uma onça que estava se alimentando de seus carneiros. A equipe de pesquisadores tentou identificar a fazenda para instruir o proprietário a proteger seu rebanho e afastar a onça da região, mas não teve sucesso.

Tão logo a bióloga percebeu que o animal mencionado pela denunciante poderia ser RonRon, ela recebeu mensagens que diziam que o animal tinha sido assassinado. “Se um bicho desapareceu, tem altíssima probabilidade de ter sido morto por um ser humano”, lamenta Beisiegel.

A Polícia Federal (PF) chegou a instaurar uma investigação sobre o caso, porém, como o corpo nunca foi encontrado, o Ministério Público Federal (MPF) arquivou a denúncia por falta de elementos. O MPF sugeriu que o próprio projeto de pesquisa do ICMBio ou a gestão do parque estadual deveriam fornecer provas mais conclusivas.

“Desde 2019, a gente vem perdendo pelo menos um bicho por ano. A caça é a principal explicação para a redução em mais da metade da densidade populacional das onças no Contínuo. Temos menos de 25 bichos na população, e, sendo uma população tão pequena, cada animal caçado tem um impacto profundo para a sobrevivência da espécie”, aponta a pesquisadora.

Na terceira semana de janeiro, uma mulher assassinou uma onça-parda na Caatinga e postou um vídeo nas redes sociais, exibindo a caça. Na última quarta-feira, 22, o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) anunciou que identificou a autora do crime. O órgão aplicou três multas que somam R$ 20 mil, por matar animal silvestre ameaçado de extinção, por maus-tratos ao mesmo animal e aos quatro cachorros usados pela mulher na captura do felino.

Em 2017, uma onça-pintada foi assassinada no entorno do Contínuo de Paranapiacaba e os criminosos também publicaram um vídeo em que debochavam do animal e comemoravam a caça.

A Lei nº 9.605/1998 e o Decreto nº 6.514/2008 são as principais legislações que tratam do assassinato de animais silvestres. As penas são aumentadas em casos de espécies ameaçadas e de crimes cometidos dentro de unidades de conservação, mas, na visão de Beisiegel, a punição ainda é muito inferior ao necessário para coibir o assassinato das onças-pintadas.

“Quase todos os casos acabam recebendo penas leves e, na prática, são considerados crimes de menor potencial ofensivo e não geram detenção ou multas”, diz a bióloga.

A pesquisadora lembra o caso fatídico em que um vigilante do Parque Estadual Intervales foi assassinado por garimpeiros dentro da floresta em 2020. Reportagem da revista piauí traçou a história. O crime não foi solucionado até hoje.

Imagem: Soneca, fêmea observada entre 2009 e 2014 no Contínuo de Paranapiacaba – ICMBio/Divulgação

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