Lutar pela legalização do aborto é lutar pela democracia

Por Niege Pavani e Carolina Peters, no blog da Boitempo

Neste domingo, 28 de setembro, lutadoras pelo direito à descriminalização e legalização do aborto farão iniciativas por todo país para lembrar cada um de nós que lutar pelo direito ao aborto também é lutar pela democracia. É preciso desobstruir o debate público sobre a pauta, e é urgente falar sobre o direito ao aborto no Brasil — aqui, aborto legal e seguro, no sistema de saúde pública, é sinônimo de justiça social.

Num país onde 1 a cada 7 mulheres já realizou um aborto, e mais de 200 mil são hospitalizadas a cada ano em decorrência de complicações decorrentes de procedimentos inseguros, recursar a urgência do debate — e de ações concretas para protegermos, enquanto Estado, mulheres e pessoas que gestam com a ajuda de métodos seguros para a interrupção de gestações indesejadas — é negli1genciar uma demanda inquestionável por saúde pública e seguridade social. Não fosse suficiente argumentar pela proteção à vida de adultas que desejam ou necessitam abortar, enfrentamos outra situação talvez ainda mais grave no Brasil: cerca de 20 mil crianças se tornam mães anualmente no país, sendo mais de 70% delas negras.

A gravidez infantil, decorrente de estupro de vulnerável, não apenas representa um risco à integridade física, como a priva violentamente meninas do direito à infância. Não obstante, a principal ferramenta de combate a isso, o aborto legal, tem sido sucessivamente atacado tanto por projetos de lei quanto pela ação de fundamentalistas para demover famílias de autorizar o procedimento ou inviabilizar o atendimento a essas meninas. Defender o direito ao aborto no Brasil é uma das últimas medidas possíveis da proteção da infância e adolescência. Afinal, enquanto o aborto for criminalizado no país, os permissivos legais (em caso de estupro, risco à vida da gestante e anencefalia do feto) estarão sob constante ameaça.

Não há nenhuma feminista que defenda o direito ao aborto, ou alguém que já tenha precisado realizar um, que acredite que essa batalha será fácil de se disputar junto ao povo brasileiro. Exatamente pela mesma razão que permite que nosso país seja pioneiro na violência sexual contra crianças e adolescentes, além de recordista em violência sexual e feminicídio de mulheres adultas. O mesmo motivo pelo qual lateja na sociedade uma moral religiosa fundamentalista, e uma cultura racista e misógina que criminalizam não só a vivência livre da sexualidade e a decisão autônoma sobre a vida reprodutiva, como também a própria palavra, censurando o debate público aberto, coletivo, racional e politizado sobre o tema do aborto e todos os domínios da sexualidade e saúde reprodutiva.

Isso não se restringe, infelizmente, aos setores reacionários. Também na esquerda há uma interdição ao debate, historicamente justificada pelas dificuldades em fazê-lo. Como se disse, é inegável que as limitações do conservadorismo brasileiro não facilitam as coisas, levando muitas vezes movimentos sociais e partidos políticos a se aproximam do assunto com ressalvas e discrição — é preciso saber hierarquizar as pautas, ouvimos.

Mas nós, que vamos às ruas neste domingo, também sabemos que não há tempo para esperarmos sentadas pela “maturidade social” que permitiria enfrentar o tema dos direitos e saúde reprodutiva sem maiores dificuldades. É preciso caminhar com passo de urgência para impedir que sigam havendo 44 nascimentos de mães adolescentes por hora; e para reduzir a taxa de mortalidade infantil, que supera 12 óbitos para cada mil nascidos vivos, segundo o IBGE. Urgência para reduzir a mortalidade materna, que é de 100,38 mulheres negras mortas para cada 100 mil nascimentos — mais que o dobro das brancas (46,56) —, escrachando o caráter racista das violências reprodutivas sofridas pelas mulheres não apenas quando precisam acessar o direito à interrupção da gestação, mas lhes privando inclusive da dignidade no parto e na maternagem. Falar sobre o direito ao aborto é revelar que o movimento social vinculado à pauta, há anos, discute justiça reprodutiva como um direito social, que nos leva a lutar, também, pela vida de milhares de crianças e adolescente executados pela violência de Estado racista nas periferias.

As últimas semanas foram revigorantes para o campo democrático no Brasil, pois nos lembraram que as ruas pulsam e ainda temos gana de lutar por mais dignidade no trabalho, mais direitos sociais, mais justiça tributária — e menos privilégios para quem já está imerso neles. Neste domingo, apesar de todas as dificuldades que ainda recaem e por muito tempo ainda recairão sobre o debate de justiça reprodutiva e direito ao aborto, seguiremos convidando nossos camaradas a acreditar que quem luta pela democracia tem que lutar pela vida das mulheres, crianças e pessoas que gestam.

Notas

1.Mais informações a respeito podem ser encontradas no site da campanha Criança não é mãe!

Niege Pavani é militante feminista e doutoranda em filosofia política contemporânea pela Unicamp, onde pesquisa dinâmicas do movimento feminista e crises capitalistas da atualidade.

Carolina Peters é doutoranda em Teoria Literária e Literatura Comparada pela USP e mestre em Filosofia pela UFMG, onde defendeu a dissertação De volta à corrente da vida: vivência receptiva e vida cotidiana na Estética de György Lukács.

Foto: Marcelo Camargo

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