É razoável impor a maternidade a crianças a quem a sociedade não foi capaz de proteger? Em que tipo de sociedade é legítimo tratar uma mulher estuprada com penalidades mais duras que a do estuprador? Em que contexto de exercício de poder pode ser normalizada a ideia de que uma mulher deve morrer ou ir para a cadeia se a gestação é de risco, mesmo havendo lei que prevê que ela teria acesso ao aborto nesse caso?
Desde 1940, as mulheres brasileiras podem legalmente realizar um aborto quando a gestação resulta de estupro ou se há riscos de que morram devido a problemas gestacionais. São duas situações extremas, que foram tacitamente aceitas por muito tempo, embora o acesso ao aborto legal tenha sido sempre difícil no país. Em 2012, passamos a ter uma terceira exceção à criminalização, a anencefalia fetal, caso também extremo em que não há possibilidade de vida fora do útero. Também nos anos 2000, no primeiro ciclo de governos do PT, a Norma Técnica Atenção Humanizada ao Aborto, do Ministério da Saúde (2005 e 2014), apontava para uma orientação estatal alinhada à legislação existente, procurando garantir atendimento às mulheres que decidissem abortar nos casos permitidos por lei.