Uma das convidadas da Flip, a autora atribui suas publicações tardias ao racismo institucional que se reflete na literatura
por Victória Damasceno, Carta Capital
Aos 44 anos fez sua primeira publicação. De uma comunidade da zona sul de Belo Horizonte, Conceição Evaristo mudou-se para o Rio de Janeiro, onde cursou letras e se tornou doutora em Literatura Comparada pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-RJ). “Uma história de exceção”, ela mesma diz.
Com o grupo Quilombhoje, publicou nos anos 90 sua coletânea de poemas na publicação anual do coletivo. O grupo, que existe desde os anos 70, possui há mais de 40 anos os Cadernos Negros, onde Evaristo apareceu pela primeira vez. A publicação ininterrupta mais antiga que do Brasil, segundo a autora, não é reconhecida. “O dia em que a história da literatura brasileira for escrita de maneira abrangente, essa coleção que fica esquecida será visibilizada”, afirma.
Seu próximo livro só é publicado na década seguinte bancado inteiramente por ela em uma editora que se dedicava em publicar somente autores e autoras negras. Mesmo com sua obra Ponciá Vicêncio na lista de leituras obrigatórias do vestibular da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), não conseguiu uma editora que arcasse com os custos de suas publicações.
“O que se percebe então é a dificuldade que nós temos, nestas e em outras situações, de publicar nossas obras, de divulgar, de chamar atenção da mídia, de concorrer aos prêmios. É isso que permitiria termos visibilidade e é isso que nos é negado.”
Em entrevista a CartaCapital, Conceição Evaristo fala sobre ser uma escritora convidada da Feira Literária Internacional de Paraty (Flip), que tem início nesta quarta-feira 26. Na edição de 2016, o evento foi chamado de “Arraiá da Branquitude”, devido à baixa representatividade negra no evento, expressão e manifesto que a autora concordou em “gênero, número e grau”.
CartaCapital: Como a senhora vê esse movimento da Flip para incluir mais escritores e escritoras negras dentro da programação?
Conceição Evaristo: Ao mesmo tempo que vejo como uma atitude corajosa, vejo como algo justo e necessário. Quando falamos em literatura, quando pensamos nela como uma forma de explicitação da identidade nacional, colocar negros e índios é apenas nos colocar em nosso lugar de direito. Pensar na literatura desta forma é pensar na diversidade não somente em termos teóricos, mas em termos práticos de representação.
Então, este lugar que a Flip está nos colocando, é um espaço mais do que justo, que nós deveríamos ter preenchido a mais tempo. E essa mudança, essa tomada de atitude, tem muito a ver com as nossas reivindicações que ocorreram no ano passado.
CC: No ano passado a senhora questionou o então curador da Flip, Paulo Werneck, sobre a baixa presença negra no evento.
CE: Na verdade esse questionamento começou com um texto da Giovana Xavier. Assim que nós ficamos sabendo da não inclusão de escritores negros, ela lançou um manifesto chamado Arraiá da Branquitude. Com a grande repercussão, fui questionada sobre ele, e disse que concordava em número, gênero e grau.
Então o que sustenta minha fala, e eu tenho afirmado muito isso porque a nossa fala só tem significado quando é uma fala coletiva, é este manifesto. Ele é ainda mais belo porque eu tenho idade pra ser sua avó.
Nisso, eu percebo que já aos 70 anos tenho que incorporar falas de mulheres jovens, o que significa que nossa luta vem de longe. As meninas têm que fazer as mesmas reivindicações que eu fiz na minha juventude.
CC: Mas você concorda que houve um avanço nesse sentido, durante esse período?
CE: Sem sombra de dúvidas houve um avanço muito grande. Claro que ainda não temos tudo o que nós desejamos, mas existe um processo histórico que resultou em ações afirmativa que estão acontecendo. Então houve um avanço sim.
CC: Diversos eventos semelhantes à Flip estão revisando a sua postura e examinando o próprio racismo institucional. Você concorda com isso, crê que isso realmente tá acontecendo?
CE: Sim, mas ainda é um número muito pequeno e nossa representatividade é muito pouca em determinados espaços. Os próprios espaços literários. E eu acredito que é um pouco do processo histórico que não tem retorno: cada vez mais esses grupos são minorizados pelo poder.
Por outro lado, estamos cada vez mais reclamando nossos espaços. Então se essa oportunidade é dada apenas para tapar o sol com a peneira, nós vamos cada vez mais rompendo com essa peneira. Na verdade, não nos interessa uma solução em nível de aparência. Estamos alertas com isso. Nós temos uma história de resistência, mas também uma história de enganos. Mas não estamos dormindo com os olhos dos outros não.
CC: Então ainda sim é importante ocupar esses espaços para subverter essa lógica?
CE: É importante e necessário. Quem ocupa esses espaços também tem que estar muito consciente para não fazer disso somente uma história de êxito pessoal. A nossa história não pode representar somente o êxito pessoal, ela tem que reverberar na coletividade.
CC: E como você mesmo disse, o mercado editorial é muito restrito quando a gente fala de autoras negras. E queria que você falasse um pouco de você. Quais foram as dificuldades que você enfrentou, o que você acha que deveria ser feito para que mais mulheres negras possam escrever e ser reconhecida por isso?
CE: O que se percebe é a dificuldade que nós temos, nestas e em outras situações, de publicar, de divulgar nossas obras. De chamar atenção da mídia, de concorrer aos prêmios. É isso que permitiria termos visibilidade e é isso que nos é negado. Estas dificuldades são coisas que os afro-brasileiros já estão prontos para enfrentar na sociedade brasileira como um todo. Quer dizer, estamos sempre sofrendo esse racismo estrutural.
A vantagem é que hoje o racismo já está mais do que comprovado, todos sabem que viver uma democracia racial brasileira é viver um mito, é fazer um discurso em torno de uma mentira. Brancos ou negros, aqueles que ainda acreditam em uma democracia racial na sociedade brasileira ou são muito inocentes, ingênuos, ou são cínicos, não têm coragem de colocar o dedo na ferida.
CC: Então de certa forma são efetivas essas ações afirmativas?
CE: Não há como negar que esses nossos discursos têm mexido realmente com as bases. Determinados setores da sociedade começam realmente a ser nossos aliados. A Flip, sua coordenação, nós sabemos que é nossa aliada. Então essas ações são efetivas na medida em que nós estamos conquistando aliados e aliadas
CC: Você é inspiração pra muitas mulheres negras. Quais foram as suas referências, o que você leu, o que você gosta de ler?
CE: Minha primeira referência literária nasce no interior da minha família. Não nasci rodeada por livros, eu nasci rodeada de palavras. O hábito da minha mãe de contar histórias, de rememorar muitas histórias dos pais dela, dos avós, histórias de escravidão. A minha primeira referência nasce de uma literatura oral.
Depois, na escola, ao poucos eu vou ganhando a referência escrita. Na minha juventude eu lia tudo o que caía na minha mão, mas não li muitos negros nessa época, lia autores que a escola indicava. Quando eu venho para a faculdade retomo alguns autores e autoras negras que havia lido, mas neste momento com essa perspectiva da autoria negra.
Mas é o movimento social que vai me apresentar autores negros brasileiros e africanos, pois as minhas referência literárias eram principalmente de autoria branca. Todos essas autorias negras eu vou descobrir ou por conta própria ou dentro do movimento social negro, e não através de uma crítica literária.
CC: Você atribui essa demora à falta de representatividade que os negros têm em espaços editoriais, culturais, de entretenimento?
CE: Sem sombra de dúvidas. É essa a invisibilidade que paira sobre nós. Mas a esperança é que talvez a juventude hoje tenha mais possibilidade do que nós. Temos agora essa leis que instituem o ensino de culturas indígenas, africanas. Temos medidas, ações afirmativas.
Assim, você tem possibilidade também de uma divulgação maior desses trabalhos, tanto de autoria negra e também de autoria indígena. Mas essa demora da descoberta é muito devida a essa invisibilização que paira sobre o sujeito negro.
CC: Como tem sido este momento de extrema visibilidade, de você enquanto autora negra e da sua obra enquanto um ato político racial?
CE: Eu tenho ficado muito preocupada porque estou em um momento de visibilidade, e o que eu falo sem modéstia nenhuma é que este momento foi construído, não me foi dado de presente. É um reconhecimento merecido. Mas o que me preocupa é que esse reconhecimento também é uma faca de dois gumes.
Eu tenho ouvido que eu estudei, trabalhei. Dizem que eu consegui. O que eu tenho afirmado é o seguinte: essas histórias de sucesso pessoal se constituem em uma história perigosa, porque qual a impressão que dá? Falam que eu, nascida e criada numa favela, estudei, lutei e consegui. Então o que eu tenho afirmado é que essas histórias são histórias de exceção. E a exceção confirma uma regra. A gente se rejubila com essas histórias, mas ao mesmo tempo tem que se perguntar qual regra é essa, qual é a crueldade da regra da sociedade brasileira como um todo que produz exceções. Uns conseguem, outros não.
Isso produz o discurso da meritocracia, que é um discurso perigoso porque anula os esforços de uma comunidade inteira. Essas exceções podem servir de exemplo pra dizer que todo mundo consegue, e não, a história não é essa. Nem todo mundo consegue, e por que nem todo mundo consegue? É porque as pessoas são fracas, ou porque são tantos empecilhos que enfraquecem as pessoas?
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Imagem: A autora mineira teve recentemente sua vida e obra exaltava em uma ocupação em São Paulo, o que considera uma “grande vitória” – Reprodução da Carta Capital.