Especialistas em EUA explicam a ascensão da extrema direita estadunidense

A estátua de um general confederado desencadeou manifestações de extrema-direita que uniu desde republicanos até neonazistas e isso pode ser apenas a ponta do iceberg

Por Voyager

Na segunda parte da nossa série sobre a ascensão da extrema-direita estadunidense (confira a primeira parte aqui), entrevistamos dois especialistas sobre EUA que nos ajudarão a compreender esse fenômeno.

Tatiana Poggi é Professora de História Contemporânea e doutorada em História na Universidade Federal Fluminense, com ênfase em História da América e História Moderna e Contemporânea, tendo como principais temas de estudo os Estados Unidos da América, Fascismo/Neofascismo, Neoliberalismo e Relações Internacionais; e Cristiano Addario de Abreu é Professor de História, Mestre e doutorando em História Econômica/USP, especializado em História Monetária (devido à sua especialização, preferiu se ater apenas às questões 1, 2, 3 e 7).

Na entrevista serão abordadas questões como qual a composição ideológica dessa extrema-direita, seus ideólogos, os fatores que fomentam o seu crescimento, a importância simbólica dos confederados nesse movimento, como ela utiliza as mídias convencionais e digitais para se propagar, a sua influência na direita brasileira e se a esquerda identitária de fato serviu de estímulo para seu fortalecimento como acusam alguns.

1. Existe alguma conexão entre a direita dita “libertária” e a direita conservadora? O que estaria unindo ambas?

Tatiana Poggi: O conceito de direita libertária ou libertarianismo se popularizou nos EUA no pós segunda guerra como uma corrente liberal que precisava se afirmar politicamente, se diferenciando do que comumente os americanos entendem por “liberal”. O léxico político norte-americano atribuiu um significado particular ao termo “liberal”, que não corresponde à teoria do liberalismo clássico, mas enfatiza a importância da intervenção do Estado na organização e regulação social, estimulando a economia, controlando a política fiscal, gerando empregos e garantindo assistência e direitos sociais básicos.

Os libertários são liberais, defendem Estado restrito, a contenção de gastos orçamentários e o corte de políticas sociais, entendidas como formas de controle do Estado sobre a vida privada e os direitos individuais. Essa política econômica é comum aos “conservadores”, que defendem a desigualdade como princípio. Contudo, diferente destes, os libertários não são necessariamente conservadores no tocante à aspectos culturais e morais, não são avessos à incorporação da diversidade e multiculturalismo conquanto isso venha como demanda ou direito de afirmação individual e não como política de Estado. Essa necessidade de se afirmar como liberais e ao mesmo se diferenciar dos conservadores fez surgir a corrente nomeada libertária.

Atualmente, temos uma corrente particularmente popular derivada do libertarianismo, que é o anarco-capitalismo, influenciada pelos trabalhos de Murray Rothbard. O anarco-capitalismo constrói uma crítica tão profunda do caráter tirânico do Estado ao ponto de defender sua total privatização, a sociedade seria inteiramente regida pelos interesses do mercado, do capital. Essa corrente já defende valores propriamente conservadores, colocando em xeque o princípio da igualdade e do direito de participação política, ou seja, a política é entendida aqui como uma arte, algo que deve ser delegado àqueles que tem condições e preparo suficiente pra gerir e governar.

Cristiano Addario de Abreu: Há muita verborragia e malabarismo verbal nessa direita libertária. Libertária frente ao quê??? Eles se contrapõem à direita conservadora por defenderem liberdades individuais e serem liberais em comportamento, em contraste com a direita conservadora que é restritiva e moralista em questões individuais. Mas num ponto tanto a direita “libertária” quanto a conservadora concordam: ambas defendem uma mesma Liberdade: a Liberdade “dos Mercados”. Ok. Mas como sempre as palavras podem esconder posições dogmáticas nada libertárias: a direita, em geral, construiu uma narrativa inconteste de que existe uma dicotomia entre Estado e Mercado. Ambas as Instituições existem e não são dicotômicas, mas complementares. Não existe antagonismo intrínseco entre ambas. Sendo o Estado o instrumento civilizacional por excelência para regular e MELHORAR o funcionamento do Mercado. Ou: quanto maior for o Mercado, maior será o Estado. Mas na narrativa da direita (tanto liberal, como em parte da conservadora) o Mercado iria se auto-regular muito melhor sem o Estado. É um ponto de vista que para muitos não se sustenta via exemplos históricos: como a Inglaterra e os EUA dos anos 1930 que nos mostram. Não foi possível aos Povos aguentar mais o “longo prazo” da “auto-regulação” do “Mercado”.

Mas o fato principal é que essa narrativa da direita conseguiu enganar a quase Todos (parte da esquerda incluída) com um malabarismo verbal (e ouso chamar de desonestidade intelectual): o de chamar “Mercado” o que, para qualquer pessoa que estude minimamente economia, na verdade é Monopólio/Oligopólio. Esse é o ponto central para entendermos muitos dos problemas atuais: não vivemos numa economia de “mercado”, mas sim numa economia de Capitalismo Monopolista1. E toda a direita criou uma mística em cima do Mercado, como se ele fosse justo, infalível e perfeito. E o que é pior: como se fosse um mercado de verdade, ou seja, competitivo.

Óbvio que existe mercado em muitas frequências. Mas não nas indústrias de vanguarda2, fortemente centralizadas, oligopolizadas, conectadas a bancos em grupos de empresas oligopólicas de poucos países exportadores de capital. Tanto na tradição marxista, que depois da segunda Revolução Industrial, reconheceu a organização de um capitalismo monopolista, liderados pelos desenvolvimentos industriais Neomercantilistas vitoriosos dos EUA e da Alemanha (que irá influenciar países de industrialização recente: como Brasil e Coréia do Sul) . Quanto na tradição braudeliana, dominante entre os atuais defensores do “Sistema Mundo”(Wallerstein, Arrighi, Braudel), segundo a qual coexistem na história do capitalismo históricos 3 andares econômicos:

1) Vida material: economia de subsistência, na qual o grupo produtor é também o consumidor;
2) Economia de Mercado: onde existe de fato especialização da produção, divisão das tarefas e troca em mercados que pedem meios de troca;
3) Capitalismo: instância econômica ligada aos Estados na economia Mundial, monopolista desde antes da Revolução Industrial. Segundo essa linha interpretativa capitalismo é sempre monopolista.

Insisti neste assunto para frisar a importância deste ponto para entendermos as contradições dessa nova (e velha) direita: se a direita dita “libertária” defende a segurança das liberdades individuais e a direita conservadora é moralista e intervencionista neste campo, ambas pregam a “liberdade dos Mercados”, de forma quase religiosa. Sem admitir que o que chamam de “mercado” é uma plutocracia oligárquica oligopólica internacional. Neste ponto a “velha direita” é mais honesta: os eleitores de Trump explicitam isso: defendem o “mercado” deles (ou seja: suas empresas oligopólicas) frente a outras. Eles sabem e defendem que a Força rege o “mercado”.

No caso do Brasil, vemos todas as direitas (“libertárias” ou conservadoras) sendo contra a defesa e os interesses de uma agenda industrializante nacional, contra a defesa de empregos no Brasil. Ou seja: contra a formação de monopólios industriais internos. Algo central para a independência e segurança dos Estados e tema histórico de todos os fascismos de antes. Isso num momento em que o mundo tende a se fechar e se proteger. Como Trump e o Brexit nos mostram. Muito curioso tal fenômeno: uma direita interna que defende os Oligopólios de outros países. Quanto a isso tendo a entender tal fenômeno como algo sui generis da direita brasileira: nem libertária nem conservadora, a onda da direita agora, qualquer que seja o nome que assuma é uma espécie de Neofascismo. Mas o fascismo no Brasil é muito curioso: se na Europa e nos EUA os fascistas são xenófobos contra estrangeiros, no Brasil eles são xenófobos contra o próprio povo! O fascismo atual do Brasil é caso único no mundo de uma auto-xenofobia e de defesa de Monopólios estrangeiros, não os nacionais.

2. A globalização tem estimulado de alguma forma o recrudescimento do extremismo?

Tatiana Poggi: Diretamente, acho que não. Não acredito que se possa imputar o aumento do extremismo e da violência à globalização pura e simplesmente. Entretanto esse aumento têm um fundo social que não pode ser desprezado, ou seja, quando indagamos sobre o aumento do extremismo e do ódio precisamos nos perguntar porque tanta gente vem se sentindo atraída por propostas políticas desse tipo. E isso, claro, tem um fundo social, não é mera opinião, desconectada das transformações sociais em curso.

Serei mais clara. Primeiramente, a globalização é muito mais que um alargamento do comércio e tecnologias que garantem rapidez nas transações e difusão de informação; consiste basicamente no processo de mundialização do capital, das relações capitalistas. Entendo que o avanço do capital e suas consequências sociais, bem como suas crises, fragilizam a classe trabalhadora, deteriorando sua qualidade de vida e deixando-a mais suscetível à soluções salvacionistas. Em 1970 temos uma crise estrutural do capital e a aposta no neoliberalismo como proposta de superação. O neoliberalismo, com sua agenda de austeridade, ataque a direitos sociais e flexibilização do trabalho aprofunda o cenário de crise, precarização e falta horizontes para os trabalhadores.

O aumento da desigualdade e da exclusão e a falta de perspectivas deixam as pessoas desesperadas, observa-se uma tendência a criação de bodes expiatórios e a aposta em soluções salvacionistas. Quem capitaliza com essa crise são justamente setores conservadores. Eles vêm se rearticulando desde a década de 1940, porém sem encontrar muito espaço frutífero. Esse espaço aparece em meados dos anos 60, como reação às conquistas do multiculturalismo, ao movimento de direitos civis, às pautas identitárias de modo geral e se aprofunda com a crise e o neoliberalismo. Os conservadores, especialmente os setores mais radicalizados do conservadorismo, começam a investir na mídia como um campo de organização política desde muito cedo, muito mais cedo que a esquerda. Eles vão investir em programas de rádio, tv, vão criar sites na internet, fazer filmes, jogos de computador, vão organizar festivais de música, etc. Como boa parte disso é um fenômeno social mundial, então, de certo modo, pode-se dizer o aumento da intolerância e do extremismo se mundializam.

Cristiano Addario de Abreu: A globalização segue sendo liderada por oligopólios internacionais ligados a Estados. Peguemos um exemplo bem didático: o facebook. É uma multinacional que se recusa a se submeter a muitas leis de muitos países. Mas quando é o governo dos EUA que exige algo, eles sedem. Pois é uma multinacional que, como todas, tem uma nacionalidade e serve a um interesse nacional localizado, sendo parte da oligarquia norte-americana.

Seguramente a globalização, da forma como foi imposta, fortaleceu o recrudescimento de um certo extremismo: o extremismo da direita. Por que não vemos um recrudescimento da esquerda também??? Neste ponto existe um desequilíbrio: o fortalecimento de um neo-fascismo, sem o fortalecimento de nenhum neo-socialismo ou neo-comunismo. E isso não me parece algo espontâneo: isso é fruto da estrutura do que aqui chamo de capitalismo monopolista, que está estimulando, direta e indiretamente, a extrema direita no mundo e castrando qualquer solução de esquerda.

Ou, como o caso brasileiro é bem didático: a elite brasileira tem se mostrado contra a defesa de uma agenda industrializante, contra a defesa de conteúdo nacional na extração de petróleo, contra uma agenda de empregos industriais no Brasil. Essa elite se financeirizou e defende a ciranda de valorização financeira de forma cada vez mais perigosa e descolada de um crescimento real. Defendem um status quo que exclui a maior parte do país do qual fazem parte. E conseguem que uma narrativa que defenda tal agenda seja reproduzida por grande parte dos grupos mais humildes. Os pobres e setores médios reproduzem um discurso ideológico, difundido massivamente pela mídia, que os exclui.

Isso só é possível via a expressão mais explícita do Capitalismo Monopolista que domina o Mundo: via a mídia de massa, sobretudo as TVs. Tais meios de comunicação são um oligopólio de famílias oligárquicas, com publicidade ligada a grupos oligopólicos, e o pior: impõe uma narrativa única, um Monopólio Narrativo. Tal Monopólio Narrativo, de forma orwelliana, chamando monopólio/oligopólio de “mercado”, é perversamente tendencioso para a direita, com uma dupla moral: uma muito mais severa com quem é de esquerda e outra licenciosa com quem é de direita. (no caso na mídia brasileira) gerou uma escandalização seletiva que contagiou corações e mentes no Brasil, envenenando o debate público nacional, pondo em risco qualquer sinal de republicanismo: no qual a Lei tem que ser igual pra todos.

Esse envenenamento da sociedade brasileira pela mídia monopólica criou o clima no qual uma certa “opinião pública”(alguns chamam de “opinião publicada”) desequilibra e envenena até decisões do Judiciário, que teriam que ser mais serenas e submetidas às Leis, jamais submetidas às demandas raivosas de uma “opinião média” manipulada e seletiva. Tal direcionamento midiático no Brasil alcançou parte do Judiciário e do MP. E arrastou a sociedade mais para uma extrema direita sim. Nas TVs brasileiras há debates entre pessoas com as mesmas “ideias” (todos de direita! Ignorando as linhas de opinião dissidentes e majoritárias), nas TVs norte-americanas os debates são entre conservadores e “liberals”. Logo, quando frente a situações de crise econômica crônica, como a atual, onde extremismos tendem a se fortalecer, o que vemos hoje é que a extrema direita tem sido estimulada e fortalecida pela mídia monopólica. Tal crescimento da extrema direita tem sido estimulado pela oligarquia midiática, enquanto qualquer proposta de linhas populares, democráticas, socialistas, socialdemocráticas… têm sido ignoradas, barradas e ridicularizadas pela mídia monopólica.

Gramsci em seus cadernos escreveu a teoria do “Transformismo”, na qual, dialogando com a Dialética Hegeliana e o Materialismo Dialético, ele via no fascismo em que vivia a castração da superação dialética da História. Uma vez que a antítese, que “normalmente” superaria da Tese para com ela gerar uma síntese no esquema dialético, seria então impedida de fazer tal processo. O que era Tese X Antítese dando numa Síntese, que viria a ser a Nova Tese… e assim por diante. Agora as antíteses seriam cooptadas e absorvidas numa supertese. Tal movimento seria o que ele chama de Transformismo: a antítese sendo absorvida numa supertese, impedindo assim a marcha geracional da História.

Tal ideia é ótima para entendermos o momento em que vivemos. O que chamo aqui de “monopólio narrativo”, a mídia de massa, barra toda e qualquer discussão que busque a superação dos problemas. Tal mídia concentrada é a expressão do Capitalismo Monopolista no poder, que não quer que a base produtiva se amplie, que mais pessoas possam produzir e participar de uma produção inclusiva e ampliada, que é o que faria o país crescer e ampliar a riqueza de todos. As novas gerações entrariam na corrida produtiva. Mas a estrutura Monopólica barra isso, materialmente e, via mídia, até ideologicamente. Essa situação gera um beco sem saída no qual as próprias vítimas reproduzem um discurso que as oprime. Quando quem deveria ser uma “Antítese” a propor um novo pacto produtivo passa a querer só ser a “Tese” que a oprime e que vai se superatrofiando, ai há o fascismo.

Quando era proposto usar a Petrobras para financiar, via extração de petróleo, indústrias nacionais pela Lei de Conteúdo Nacional, estaríamos ampliando empregos, renda, internalizando tecnologias… Mas nossa elite e setores médios abriram mão desse projeto, importando tudo e só extraindo petróleo, sem usá-lo para alavancar a indústria nacional, estamos barrando uma virada histórica e nos atrelando a uma agenda extrativista associada/financeirizada que exemplifica essa supertese.

Esse recrudescimento do fascismo vem da falta de ação ativa e de consciência histórica de grupos e gerações que deveriam ser a Antítese renovadora. Quando essa renovação é castrada no nascedouro pelo Capitalismo Monopolista, as formas regressivas do fascismo triunfam.

3. Por que tanta polêmica em tono da estátua do general Robert Lee? Qual o significado dele para a extrema direita?

Tatiana Poggi: Robert Lee foi um general confederado e esse protesto foi marcado na cidade de Charlottesville como reação dos grupos conservadores à decisão da prefeitura de retirar a estátua do general do parque municipal. Isso gerou uma reação tanto dos grupos conservadores locais, quanto de outros grupos conservadores espalhados pelo país. Diversas cidades de ex-estados confederados estão retirando esses símbolos, como forma de acertar as contas com o passado. Em Charlottesville há diversos desses símbolos reproduzidos de forma naturalizada, não apenas como estátuas, nomes de rua, mas a própria camiseta da universidade traz o desenho de duas espadas confederadas.

Bem, quando se mexe nisso você começa a tocar em pontos delicados, a remexer o passado, trazer à tona o que já estava esquecido e naturalizado; as pessoas começam a se dar conta, a questionar e pressionar por mudança e isso gera uma reação.

Cristiano Addario de Abreu: O caso da derrubada da estátua do general Edward Lee, líder militar dos confederados na Guerra Civil americana, causando uma marcha nazista na Virginia, mostra a força de símbolos e como muitas desavenças históricas não foram de fato sanadas, bastando o aprofundamento da crise econômica crônica para reemergirem via um estopim simbólico.

Sobre a força dos símbolos devemos nos lembrar que as ideias fazem parte da Realidade: são elas que nos movem.

Por isso é muito didático voltar ao caso norte-americano e à história do republicanismo nos EUA. Na revolta do sul escravista há muito da confusão ideológica dos dias atuais entre os que são de direita mas não dizem, por isso aqui cabe uma digressão histórica. Voltando na estruturação da República nos EUA, vemos o primeiro ensaio de uma República num vasto território sendo tentado nas antigas 13 colônias. O senso comum defendia que tal regime apenas era possível em pequenos territórios e cidades. Num território vasto e em expansão a estrutura de Império com a figura do monarca aglutinador (de novo um símbolo) seria, para muitos, imprescindível.

O jovem país optou por ser uma República, com suas antigas 13 colônias tornando-se 13 estados. Tal modelo foi muito original para a época. Inovando em Instituições, que hoje são referências em todo o mundo, tal audácia foi paga com a desestabilização vivida então. Tais instituições não nasceram fortes: foram sendo testadas, com muitos erros no caminho, até alcançarem as musculaturas e feições que hoje conhecemos.

O momento de teste de fogo para o que o país viria a ser foi vivido entre 1776-1789, momento chamado didaticamente pela historiografia de “Período Crítico da Independência”. Neste período tal experiência histórica foi uma Confederação: uma união de Estados independentes. Não é coincidência que os estados têm nomes, mas o país não tem um nome específico, usando o nome do continente inteiro: tal desidentidade nacional contrastava com o enfoque identitário estadual. Neste período a ideia era dar o poder aos Estados, unidades administrativas mais próximas aos habitantes, portadoras da soberania. Contudo, tal solução defendida em todos os Congressos Continentais (1774/1775) e pelos Artigos da Confederação (1781: ano do fim da guerra), poderia ser boa para os defensores do poder local, mas na prática gerava uma descentralização imensa e um perigoso enfraquecimento externo.

A crônica dificuldade de forçar os estados a financiarem um exército e marinha permanentes da União após o fim da guerra e a aceitarem uma tributação federal, gerando em muitos a suspeita de que aquela experiência poderia acabar se dividindo em até 4 territórios nacionais, levou a um “grande acordo” para encontrarem uma solução “definitiva”. Na qual a elite dos 13 estados se juntou num debate fechado chamado Convenção, com um grupo de delegados participantes em 1787 na Filadélfia. Era um grupo destinado a discutir e adaptar os Artigos Confederados. Madson e, mais ainda, Hamilton foram os grandes arquitetos deste acordo, do qual saiu a Constituição que gerou um Estado Nacional Federal. Tal acordo e solução gerou uma reação discordante conhecida como movimento anti-Federalista. Numa sequência de publicações em jornais de NY esta oposição se organizou numa onda de ideias e princípios de celebração do poder e soberania dos Estados e da Autonomia Local. Autores como Patrick Henry, Samuel Adams, George Clinton, Richard Henry Lee se destacaram no movimento anti-Federalista. Patrick Henry dizia que a Convenção “era um Golpe na Confederação”. Thomas Jefferson, de sua embaixada em Paris, também era um anti-Federalista. Mas em face da vitoria da solução Constitucional rapidamente passou a apoiar a Constituição. Como o grande político que era, depois de parar de apoiar abertamente o anti-Federalismo, chegou a dizer sobre a Convenção que “os homens de Filadélfia foram iluminados”.

Mas essa derrota dos anti-Federalistas não foi absoluta. A reação desse grupo obrigou os senhores da Convenção a darem uma resposta que garantisse uma neutralização dos anti-Federalistas. Tal resposta chama-se: a Primeira Emenda da Constituição. Um anteparo legal que defende a oposição e o direito de fazê-la ao garantir as Liberdades de: de religião, expressão, associação, reunião e imprensa.

Que aqui fique claro: todo o processo de Independência das 13 colônias e de tentativa e erro de qual República criariam foi organizado por uma oligarquia. 12 das 13 colônias tinham a escravidão legal, assim como seus líderes, como Washington e Jefferson eram escravocratas. Apenas homens brancos proprietários votavam. Todo este debate girava em torno de qual República fariam. República era a palavra em disputa e não Democracia. A Latina Roma sempre foi o modelo político, jurídico e ideológico dos EUA, jamais Atenas. O debate aqui não era sobre Democracia, nem podemos definir exatamente direita e esquerda (termos criados durante a Revolução Francesa). Claro que naquele contexto os anti-Federalistas pareciam mais democráticos e ligados às bases, havendo entre eles as figuras radicalizadas do período. Mas havia também outros anti-Federalistas de perfil conservador.

Essa discussão está na base de muitos problemas na História dos EUA. Se naquele contexto podemos caracterizar os anti-Federalistas como mais radicalizados, na crise da Guerra Civil a situação se inverte. Os escravocratas que acabaram gerando uma Secessão, verdadeiros “Rebeldes do escravismo” 3, se baseavam política e juridicamente, do começo ao fim, nessa tradição anti-Federalista. Com a brutal diferença que o pano de fundo econômico era a defesa da escravidão. Na Guerra Civil (1861-1865) a questão segue, ainda e de novo, República: qual República(s) resultaria(m) da guerra. Contudo, nos anos 1860, já podemos colocar claramente os adjetivos esquerda e direita: a esquerda estava com a União, Lincoln e o abolicionismo (embora não sozinha: a direita progressista era a maioria ali junto), enquanto que quem estava com a Secessão pelo direito a “autodeterminação” para poder decidir se tem-se escravos e, decidindo por tê-los, isso era um direito sagrado, ali estava a direita reacionária, fantasiada de forma sonsa como anti-Federalista4.

Já podemos vislumbrar na Guerra Civil dos EUA muito da confusão ideológica e desonestidade intelectual que grassa, tanto naquele país, como no Brasil de hoje, na discussão política sobre direita e esquerda. O uso de uma guerra de palavras para, de forma sofista, confundir e torcer os conceitos, teorias e pensamentos, para manipular e envenenar a opinião pública. Ganhar os corações e mentes para seu lado político é fundamental no combate político/ideológico.

Logo, a estátua do general Lee para a direita, que se recusa a assumir que ele simboliza sim a defesa da escravidão, para estes Lee simboliza o direito a autodeterminação, a soberania dos estados e, no limite, o anti-Federalismo. Por isso tanta confusão ideológica e moral sobre esse tema. Os EUA são um país liderado por advogados, mestres na manipulação das palavras. Mas aceitar a defesa da forma anti-Federalista representada pelo sul, liderados militarmente pelo general Lee, desconectada de seu contexto histórico econômico da escravidão é um ato de desonestidade intelectual, que para se sustentar estimula a confusão e a troca dos sinais na apresentação da Realidade.

4. Como a alt-right lida e elabora a sua representação da imagem do legado de Reagan e de Bush Jr.?

Tatiana Poggi: A alt-right é uma rede. Não há exatamente uma articulação coletiva, um conjunto de lideranças coletivamente legitimadas e reconhecidas ou uma pauta totalmente comum. Nesse sentido, não podemos chamar de movimento, mas eles formam uma rede de difusão de ideias e formação de opinião, tendo certas pautas afins. Na alt-right há grupos neoliberais, segregacionistas, que inclusive adotam a supremacia branca, e há fascistas também. É portanto um coletivo diversificado política e e ideologicamente dentro do campo do conservadorismo. Os neoliberais presentes ali não são exatamente o grupo mais clássico, alinhados com Reagan, com Bush talvez.

É um grupo adepto de correntes mais conservadoras do neoliberalismo, tradicionalmente ligados ao William Buckley Jr. e ao Russel Kirk, bem como ao Murray Rothbard, que atualmente estão articulados em think tanks como Mises Institute, Catho Foudation, no Tea Party e entre os anarco-capitalistas. A política econômica é basicamente neoliberal, com enxugamento do Estado, de políticas sociais e em defesa do livre mercado. Para além disso, há uma defesa da limitação na entrada de imigrantes, a deportação de ilegais, e a adoção de algumas pautas do conservadorismo moral, como a condenação do aborto, dos homossexuais, a defesa de uma família patriarcal tradicional.

Com relação ao legado de Reagan e Bush, as opiniões variam. Há grupos na alt-right que são mais elogiosos, principalmente de Bush; os mais fascistóides, como o National Policy Institute, fundado por Richard Spencer, não, porque sua proposta é explicitamente xenófoba, racista e antiliberal. O que Trump traz de novo e que engaja esses elementos mais radicalizados na política partidária federal é que ele, com seu desprezo pelo politicamente correto e discurso verborrágico, seduz uma massa de desesperados enraivecidos com as políticas de inclusão e diversificação, bem como com o fracasso do horizonte do sonho americano em tempos de neoliberalismo. Por meio do discurso e de algumas pautas, como a construção do muro na fronteira com México e o projeto de deportação em massa, ele incita e alimenta o ódio, a xenofobia e a intolerância, de modo que Reagan e Bush nunca o fizeram.

5. Quais as conexões internacionais mais explícitas do movimento de extrema-direita?

Tatiana Poggi: Nesse aspecto, o impacto da internet é incontestável. Boa parte dessas conexões e articulações são feitas hoje pela internet e facilitadas por ela. A mídia, de modo geral, e mais especificamente a internet, é um grande canal de articulação política, difusão ideológica, mobilização política, e arrecadação de fundos. Por meio desse canal privilegiado, há trocas rápidas de informação, compartilhamento de projetos, e mesmo organização coletiva, no caso de alguns países europeus onde a existência formal desses grupos é proibida. Festivais como Aryan Fest recebe neonazis de todo mundo, sendo organizados nos EUA dada a maior possibilidade de atuação livre nesse país. Muitas editoras neonazi têm também sede nos EUA, dada maior liberdade de produção, distribuição e venda nesse país.

6. O Jornal Livres, do MBL, publicou um texto dizendo que o Traditional Workers Party é de esquerda por conta do nome, quando na verdade é de extrema-direita. Nos EUA a direita se comporta da mesma forma, tomando a aparência pela essência. Esse tipo de discurso político raso seria um dos fatores que fortalece a Alt-Right? Qual é o impacto dele na opinião pública estadunidense?

Tatiana Poggi: Acredito que sim. Se interpretações que obscurecem ou esmaecem as fronteiras entre direita e esquerda, ou mesmo se propõem a superá-las, encontram espaço na academia, imagine nas redes sociais! Assim, condena-se a atuação de black blocs ou antifas por usarem a violência e os classificam politicamente sob o mesmo desígnio que fascistas e supremacistas brancos, afinal todos seriam intolerantes e usariam de violência. Não há uma preocupação em refletir sobre o caráter ideológico, as bases teórico-filosóficas e o horizonte político almejado pelos coletivos. O projeto de sociedade envisionado é totalmente ignorado. O setor intelectual também não ajuda.

Até onde sei, nos EUA, um dos primeiros intelectuais a defender essa ideia que se poderia considerar fascismo como esquerda foi o sociólogo liberal David Horowitz.  Ele irá dizer que os movimentos podem combinar múltiplas tendências ideológicas e que por isso deveríamos abandonar as distinções entre direita e esquerda. Esse tipo de posição acaba sendo corroborada por autores que trabalham com conceitos que fazem essa ponte entre filosofias de esquerda e direita, como o conceito de totalitarismo, ou conceitos como o da terceira via, profundamente marcado pelo discurso fascista sobre si mesmo. Atualmente, o cientista político da Universidade da Califórnia James Gregorr trabalha neofascismo como totalitarismo. Ou seja, o que estou querendo dizer é que esse tipo de definição encontra ressonância não apenas no senso comum, mas no espaço justamente onde poderia ser melhor criticado e combatido, a academia.

7. Existe uma interpretação que está circulando na internet de que os movimentos de minoria estariam estimulando o extremismo de direita. O que você acha dessa afirmação?

Tatiana Poggi: É um argumento bem conservador, mais ou menos na direção do argumento que as cotas fomentam ou geram racismo. É totalmente absurdo uma vez que minorias e grupos identitários se organizam justamente para lutar por espaço e respeito na sociedade. Esse argumento é um revanchismo puro e simples, sem o menor fundamento reflexivo ou histórico.

Cristiano Addario de Abreu: A direita critica a esquerda por ser “totalitária” ao defender soluções de classe “gerais”. Então, quando a esquerda foca em nichos de injustiças, para minorar desigualdades, ela é taxada de provocar o exacerbamento das reações de direita. Toda ação gera uma reação, mas defender a manutenção das posições hierárquicas históricas como direitos sagrados é tipicamente uma posição reacionária. Seja defender que homens têm privilégios frente às mulheres, heteros são intrinsecamente superiores aos homos, brancos superiores aos negros… é o mesmo que defender que os descendentes da nobreza europeia têm direitos feudais sobre os descendentes de camponeses.

Em verdade buscam a manutenção de privilégios contra tendências igualitárias. Culpar as tendências igualitárias pela reação dos defensores do privilégio é o mesmo que culpar a vítima por tentar se defender. Neste ponto cabe uma curiosidade: o termo privilégio (Lei privativa: de alguém, uma família ou grupo) é típico do Antigo Regime para denotar direitos de monopólio sobre algo: tal família tinha o privilégio de abastecer tal cidade de tal produto, significava que tinha o Monopólio neste abastecimento. Vemos mais uma vez que a imagem de um mercado livre na concorrência com igualdades de oportunidades é de fato uma imagem instrumentalizada e sonsa usada pela direita: o que eles defendem mesmo é o Monopólio tradicional.

Notas

[1] BARAN, Paul e SWEEZY, Paul. Capitalismo Monopolista. Ed Zahar. 1974
.
[2] CHANDLER Jr, Alfred D.; AMATORI, Franco; HIKINO, Takashi. Big Business and the Wealth of Nations. Ed. Cambride University Press. 1997
.
[3] MARX, Karl. The North American Civil War
.
[4] BLACKBURN, Robin. Un Unfinished Revolution.

Foto: Anthony Crider / Wikimedia Commons

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