O estupro coletivo como fator cultural

Gustavo Guerreiro* para Combate Racismo Ambiental

O monstruoso estupro coletivo da jovem carioca de 16 anos, mãe de uma criança de três anos, suscita frenéticos debates nas redes sociais e indignadas reações de movimentos sociais, sobretudo feministas, que tomam as ruas do país. Trata-se de um fato tão macabro que, em outros momentos, comoveria as massas em uníssono. Mas diante da conjuntura política, não cessam, por incrível que pareça, contendas interpretativas e embates ideológicos de todos os matizes, sobretudo entre direita e esquerda. Mas o que tem a ver essas visões políticas em disputa com o fato em si?

De modo geral, comenta-se que a discussão gira em torno sobre de quem é a culpa, se de quem estuprou ou se da vítima, o que por si só é um absurdo. Não merece meia linha de reflexão. No entanto, entre em cena com muito mais sofisticação, o debate sobre duas visões políticas distintas de criminalidade e, portanto, de sociedade. Refiro-me à política, nesse caso, não no sentido partidário, mas como expressão de força social transformadora, nos termos de Foucault.

Setores da sociedade alinhados com o pensamento de direita, liberais e outros com forte viés fascista, se insurgem contra o grupo de estupradores, como se estes estivessem desconectados da realidade que os cerca. São tratados como se agissem monstruosamente sob inspiração de forças obscuras, ou como produto de admoestações psicopatológicas. Para estes, a única solução (muito mais do que a própria privação do convívio social) seria sua eliminação física. Assim se dá a lógica de propostas como a de armamento geral das “pessoas de bem” contra a “bandidagem”, que se prolifera pelo beneplácito de “leis pouco rígidas”. A estes pouco importam as condições em que se produzem e reproduzem tais comportamentos, em essência, sociais. É a visão típica dos programas policiais das grandes empresas midiáticas, estreladas por “jornalistas” que vociferam ódio pueril, sintonizando a revolta popular com o estreito senso comum.

Os movimentos sociais adotam perspectiva oposta. Seu foco, ao contrário, é a origem de tais fenômenos e as circunstâncias em que se dão. Não basta apenas que os criminosos sejam punidos. É preciso deter a engrenagem que fabrica a criminalidade. Que luta ingrata! Uma cortina de fumaça se ergue através do tacanho revanchismo contra os bárbaros e criminosos que assolam as bases da própria civilização que os cria. Daí a dificuldade do movimento feminista em ser compreendido e até combatido por parte das mulheres que, mesmo estupradas, violentadas e humilhadas, reivindicam a manutenção do estado de coisas, justamente por não reconhecerem que sua condição de mulher é, antes de tudo, social.

O estupro, para essas, não lhes diz respeito. Foi um erro individualizado. Afinal, a mulher tem que ser “submissa ao homem”. É determinação divina que se encontra nas sagradas escrituras.

O estupro, como o homicídio, o furto, o roubo ou a corrupção, não são materialização de desvios de comportamento individual. Ao escrever o clássico “O suicídio” em 1897, Émile Durkheim, fundador da sociologia, resolveu incursionar por um tema que, na época, focava em características individuais, sendo da esfera estrita da psicologia. Conseguiu demonstrar que os níveis de integração social determinavam o aumento ou diminuição das taxas de suicídio. Ao afirmar que a vida social não seria outra coisa que não o “conjunto de meios morais que cercam o indivíduo”, descobriu o que seria a essência da sociologia, em outras palavras, da ciência que se dedica aos fenômenos que atuam para além do indivíduo.

A criminalidade não existe como mera soma de inumeráveis infrações, mas como produto do meio social. Não se pode conceber que Honduras é um país mais violento do que a Noruega porque deu azar de nascer mais “pessoas más”. Não se trata de tentar fazer uma tipologia do estupro através de comparações com outras sociedades teoricamente distintas da nossa, mas de reconhecer que há um processo social que banaliza a violência contra a mulher e que é cotidianamente “naturalizado” no inconsciente coletivo. No último feriado, estive com um amigo, pai de um adolescente, todo orgulhoso por constatar que o filho “pegava” duas menininhas da vizinhança ao mesmo tempo. Dizia: quem tem suas cabritas que prenda, pois meu bode está solto. Não estou afirmando que todos os jovens nessa situação sejam estupradores em potencial, mas toda panela de pressão tem sua válvula de escape. Em termos sociais, a violência se materializa em beijos roubados, na agressão doméstica e, em último caso, estupros coletivos.

A maior prova de que o estupro à jovem é socialmente estimulado foi a divulgação do vídeo nas redes sociais como uma ostentação bizarra. Sem pretender incursionar em especulações irresponsáveis, parecia haver ali um ritual doentio de autoafirmação entre os estupradores. Nos termos de Hannah Arendt, ao tratar do caso do oficial nazista Albert Eichmann, trata-se de uma banalização do mal. E o mal não é uma categoria ontológica, nem natural, ou metafísica, mas histórica. A banalização da violência sexual corresponde ao vazio do pensamento coletivo, situação em que se sobressaem todas formas de preconceito de gênero e comportamento.

É nosso dever moral prestar solidariedade à vítima e apelar à punição exemplar dos criminosos. Mas não menos importante é a luta para a mudança estrutural de uma sociedade machista e misógina, que coisifica e desumaniza todas as dimensões da vida, incluindo o próprio ser humano. Nesse sentido, todos às ruas!

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