Brasil, pátria encarceradora, por Luiz Eduardo Soares

Em Justificando

Eis o epicentro de nosso problema na área da (in)segurança pública, sem cuja solução a vigência do Estado democrático de direito permanecerá dúbia, precária ou parcialmente suspensa. Refiro-me ao ponto no qual se cruzam o modelo policial e a lei de drogas, que reputo hipócrita e absolutamente irracional. Observe-se que o modelo policial definido pelo artigo 144 da Constituição veda a investigação a uma das polícias, obrigando-a a prender apenas em flagrante. Registre-se ainda que o ambiente social, cultural e político pressiona a polícia que está nas ruas, a polícia ostensiva, uniformizada (a mais numerosa), isto é, a polícia militar, a mostrar serviço, ou seja, a prender em grandes quantidades.

Se a polícia que está nas ruas não pode investigar, impondo-se-lhe o flagrante como condição para a prisão, os delitos que selecionará como alvos de seu trabalho são aqueles passíveis de prisão em flagrante, aqueles filtrados pelo critério ao qual subordinam-se os objetos de sua ação. Este é o filtro seletivo, oriundo do modelo policial, que se combinará aos demais, inconsciente ou conscientemente acionados pelas culturas corporativas, pelo viés de classe e pelo racismo estrutural da sociedade brasileira. Sendo assim, qual a lei à mão, no varejo? Qual o delito mais instrumentalmente útil para que a polícia ostensiva produza? –entendendo-se esta “produtividade” como costumeiramente é o caso: antes prisões e apreensões de armas e drogas do que redução da insegurança.

A resposta é óbvia: as transgressões relativas ao porte, à posse e ao comércio de substâncias ilícitas, as “drogas”. Resultado: cada vez mais as penitenciárias se enchem de varejistas das drogas. E assim têm sido privados de liberdade levas crescentes de jovens quase sempre pobres, em sua grande maioria negros, com baixa escolaridade –muitos dos quais não portavam armas, não agiam com violência, nem estavam organicamente ligados a organizacões criminosas. Não estavam, mas nosso sistema, culminância da inteligência pátria, providencia para que se organizem. Ou seja, estamos contratando violência futura. E pagando caro para semear tempestades.

Eis aí o mistério solucionado: há 58 mil crimes letais intencionais por ano, no Brasil, entre eles 56 mil homicídios dolosos, dos quais apenas 8% são investigados. A taxa de impunidade relativamente ao crime mais grave atinge o patamar escandaloso de 92%. Entretanto, o Brasil está longe de ser, como se poderia precipitadamente inferir, o país da impunidade: temos a quarta população penitenciária do mundo (640 mil presos, segundo dados defasados do DEPEN, divulgados em fins de 2014) e a que mais velozmente cresce. No universo prisional, 40% estão em prisão provisória, 12% cumprem pena por homicídio, e dois terços estão sentenciados por crimes contra o patrimônio e delitos vinculados a drogas –sendo estes o subgrupo que mais vem aumentando.

A receita do fracasso está aí desvendada: proiba a polícia que está nas ruas, a mais numerosa, de investigar; cobre-lhe produtividade; identifique eficiência com prisões, as quais terão de ser feitas, portanto, exclusivamente em flagrante; ofereça-lhe a lei de drogas como filtro seletivo e açoite; junte esses ingredientes e os leve ao fogo brando da inépcia política; salpique omissão das demais instituições que compõem o campo da Justiça criminal; polvilhe autorização tácita da sociedade;  bata a gosto – ninguém está olhando, e a sede de vingança dá o tom nos programas demagógicos de TV. Pronto, está aí o quadro dantesco da insegurança brasileira, invertendo prioridades e sacrificando a vida, que, afinal, é dos outros. O racismo rege esta máquina selvagem que criminaliza a pobreza. E quando novos crimes escandalizam, o populismo penal clama por elevação das penas para que se faça mais do mesmo, com mais força, esperando resultados diferentes. Seria patético não fosse trágico. Brasil, pátria encarceradora.

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Luiz Eduardo Soares é antropólogo, escritor, dramaturgo e professor de filosofia política da UERJ. Foi secretário nacional de segurança pública e coordena curso sobre segurança pública na Universidade Estácio de Sá. Seu livro mais recente é “Rio de Janeiro; histórias de vida e morte” (Companhia das Letras, 2015).

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