Arte e Política em “O Triunfo da Vontade”, de Leni Riefenstahl. A câmera usada para criar mitos e ídolos

Nota: Leni Riefenstahl morreu em 8 de setembro de 2003, aos 101 anos. O artigo abaixo, do qual não consegui maiores informações, deve ter sido escrito antes desse ano, mas é atemporal. (TP)

Por Antonio Maia, na Ebah

A análise da obra de Leni Riefenstahl continua dividida entre duas óticas: a da admiração e a da repugnância. Se por um lado se encontra em Leni um gênio obstinado e incomum, é impossível separar o seu trabalho de um dos maiores horrores da história da humanidade e legitimar a defesa da autora que, até hoje, nunca mostrou sinais de arrependimento. Na sua gigantesca autobiografia, Riefenstahl defendeu-se dos ataques e alegou que era apenas uma artista a serviço de sua arte. A atitude é perversa. Mesmo que a ingenuidade exista, o que é incansavelmente discutido por críticos de cinema e por admiradores da arte em geral, é no mínimo uma ingenuidade perigosa. “O Triunfo da Vontade” (1935), mais do que um filme de propaganda, glorifica e mistifica o regime nazista e pode ser facilmente considerado infame por isso.

Nas próximas páginas, o que há é uma análise embasada na história, da importância do “Triunfo da Vontade” na vida artística de Leni e de que maneira esta obrafoi permeada por ideais nazistas, retratando um fato real, mas com um molde nitidamente fornecido pelas idéias do Partido Nacional-Socialista.

Como Tudo Começou

“Foi como ser atingida por um raio” – Leni Riefenstahl, a respeito da primeira vez que ouviu um pronunciamento de Hitler

Leni Riefenstahl nasceu em Berlim, em 1902.Estudou pintura e começou sua carreira artística como dançarina, mas um problema no joelho a impediu de prosseguir na dança. Em 1925, aos 23 anos, apareceu pela primeira vez nas telas, estrelando”A Montanha Sagrada” dirigido por Arnold Fanck, criador e maior expoente dos chamados “filmes de montanha”. Fenômeno alemão dos anos 20 e 30, as produções deste gênero mostravam o homem lutando para a conquistar a natureza, representada por picos nevados, geleiras e avalanches, e refletiam uma tentativa germânica de encontrar refugio espiritual nos anos que se seguiram à Primeira Guerra Mundial.

Conquistando o público com sua imagem heróica e sensual, Riefenstahl logo alcançou o estrelato em vários filmes de sucesso como “O Inferno Branco de Piz Palü”(1929) e “Avalanche” (1930). Em 1932, “A Luz Azul”, dirigido e estrelado por ela, demonstrava seu talento para a direção, cativando audiências no mundo inteiro com a história da moça esfarrapada e execrada pela aldeia alcançando uma luz azul misteriosa.

Em 1933, o partido Nacional Socialista de Hitler assume o poder na Alemanha e o Führer, impressionado com o talento e o vigor de Leni, a convida para ser sua cineasta de confiança.Leni deu um toque de profissionalismo e talento ao filme documentário político alemão. Para ela, foi uma questão de transferir a imensidão silenciosa dos Alpes, onde gostava de filmar , para as colossais e barulhentas concentrações de massa organizadas pelo partido nazista. Deslocar o alvo da câmera dos cimos elevados e baixá-la para a planície onde se reuniam as multidões, mantendo sempre o seu aspecto espetacular, magnificente.

Nazismo e Propaganda

Hitler preocupava-se com os mínimos detalhes para dar às circunstâncias que o envolviam um ar de tragédia heróica e romântica, inspirada geralmente na mitologia guerreira nórdica, onde todas as atenções se encontram na figura mítica que se apresenta frente ao seu povo. Não havia nisso nenhuma sutileza. Chamou isso de propaganda mesmo e nunca tentou esconder esse procedimento de ninguém. Tão importante ela se fez para o novo regime que ascendera ao poder na Alemanha de Weimar, em janeiro de 1933, que uma das medidas mais imediatas foi a criação de um Ministério da Propaganda, entregando sua direção ao doutor Joseph Goebbels. Num regime que se assumia como absoluto, total, todos espaços que dali por diante circundavam os cidadãos, nas ruas, nos edifícios, nos estádios, os prédios públicos e privados, nas fábricas e nas escolas, tudo o que fosse impresso ou que circulava no ar, deveria ser preenchido pelas mensagens, slogans e símbolos do partido nazista e do seu guia Adolf Hitler.

Propaganda vem de propagação; multiplicação; reprodução; proliferação. No dicionário, é aquilo de propaga princípios, idéias, conhecimentos ou teorias. Foi a propaganda – na qual Leni também estava metida de modo ativo – que fazia com que o povo alemão tivesse uma admiração divina pelo Führer.

Por detrás do ditador, havia todo um sistema de comunicação, sustentado com métodos retóricos bastante eficazes. De um lado, a racio-propaganda, caracterizada pelo uso da persuasão e do raciocínio: jornais, discursos, rádio, reuniões, debates. Um embasamento teórico e com credibilidade suficiente para servir de justificativa à emoção e ao delírio gerados pela senso-propaganda. Esta segunda agindo por sugestão, ou seja, ícones e indícios que tinham como objetivo principal tocar as pessoas, fazendo com que todos acreditassem naquela raça ariana, naquela nação, naquele líder.

O Triunfo da Vontade
Ano:1935
Produção:Reichsparteitagsfilm from L.R. Studio-Film
Direção:Leni Riefenstahl
Edição Original Alemã:113 minutos

É a obra prima de Leni Riefenstahl documentando o 6º Congresso do Partido Nazista Alemão, acontecido em Nuremberg de 4 a 10 de setembro de 1934.Ao contrário do que Leni alega atualmente e conforme ela relatou no pequeno livro sobre a elaboração de “O Triunfo da Vontade”, ela participou ativamente, junto com Hitler, do planejamento do comício, que foi desde o início concebido como cenário de um espetáculo cinematográfico, o que é comprovado pela perfeição com que se desenrolam as cenas captadas por 36 câmeras. Desde que, como um Deus, Hitler desce dos céus, passando pelas grandiosas cenas de impressionante demonstração de unidade e disciplinas dos membros do Partido Nacional Socialista, até cada mínimo detalhe das cenas mais próximas do Führer e seus colaboradores, das crianças perfiladas, das mulheres saudando das janelas. Tudo com um mínimo de narração.

Riefenstahl relata que começou a planejar em maio o filme do congresso que iria acontecer em setembro, supervisionando a construção de torres, pontes e pistas para as câmeras.No fim de agosto, Hitler foi a Nuremberg para “verificar e dar as últimas instruções”, junto com Viktor Lutze, chefe da S.A.

O titulo do documentário era de inspiração nietzscheana. Foi sugerido a Leni por Hitler em pessoa. Baseava-se no clássico livro do pensador, morto em 1900, e que era admirado por Hitler: o Wille zur Macht (“A Vontade do Poder”). Tratava-se da afirmação literária e filosófica do efeito da força de vontade e da busca do poder pelos homens determinados. As imagens mostradas pelas múltiplas câmeras de Leni eram impressionantes, fascinantes e assustadoras. Milhares de militantes vindos de todas as partes da Alemanha, trajando uniformes impecáveis da SA e da SS, empunhando suas bandeiras e suas insígnias, organizados e enfileirados como autômatos, marchando ao som dos clarins e ao rufar dos tambores marciais, prestavam sua homenagem fanática ao pequeno homem-deus, ao salvador que, depois de desfilar por entre 200 mil partidários em silêncio respeitoso, ascendeu à tribuna imperial do estádio tal como um messias moderno, como se fosse um Moisés trazendo as tábuas sagradas da nova lei. As tomadas de Leni, frenéticas, percorriam tudo. Dos rostos dos milicianos à cruz suástica fixada nas enormes bandeiras que se desprendiam do alto do estádio, dali para um close sobre os taróis. Então, colocada em um elevador atrás do palanque de Hitler, filmava a impressionante caminhada do Führer em meio ao povo fardado e disciplinado. Tratava-se de um épico do movimento nacional-socialista, no qual a massa e seu guia tomavam o poder na Alemanha em meio a um júbilo marcial e patriótico, filmado como se fora uma coreografia megalomaníaca de Richard Wagner.

Hitler e Leni Riefenstahl
Hitler e Leni Riefenstahl

Aspectos ideológicos

Leni Riefenstahl empreendeu o feito de traduzir em linguagem cinematográfica duas vertentes poderosas que se ocultavam por detrás da imagem do Führer e que eram muito eficazes junto ao público alemão. A primeira delas vinha da tradição cristã que, tanto nos Evangelhos como no Livro do Apocalipse, deposita enormes esperanças na chegada de um salvador, de um messias. Hitler definitivamente tinha que ser apresentado assim. Portanto, logo que o filme de Leni começa, vê-se o aeroplano dele aproximando-se como se viesse de algum lugar celestial. O avião logo circunvoa o estádio repleto para dar sinal de que a em breve iria se consumar o encontro do enviado de Deus com os seus. Quando Hitler adentra no estádio em meio a uma multidão tremenda, estimada em 200 mil milicianos de todos os cantos da Alemanha, arregimentados em duas grandes alas, assemelha-se a um Moisés cortando a passo as águas do Mar Vermelho para ir conduzir o seu povo, liberto do algoz estrangeiro, à terra prometida, ao império da nova ordem nacional-socialista.

A outra vertente advinha do herói da mitologia teutônica, Siegfried, o lendário guerreiro que acompanhado dos mil nibelungos, depois de incríveis aventuras e feitos extraordinários, mata o dragão na beirada do Rio Reno, livrando os seus da desgraça. Nada mais adequado do que encaixar o Führer como a ressurreição do cavaleiro audaz que abate as forças do mal – o comunismo, o liberalismo, o expressionismo, o judaísmo, expressões diversas de um nocivo antigermanismo -, preservando para o futuro a integridade moral, ideológica e racial dos arianos. Hitler aparece pois como a simbiose dessas duas legendas, a do messias e a do herói. Ao deificá-lo ele surgia nas telas do documentário como um divisor de águas da Alemanha moderna. Aquele que com sua determinação inquebrantável afastara as sombras das humilhações passadas (as punições do Tratado de Versalhes) para apresentar ao seu povo um futuro luminosos, radiante, pleno de realizações e imortais façanhas (a aventura do Estado nacional-socialista). Hitler era o Partido Nazista, ele era a Alemanha, sua tarefa era conduzi-la para dirigir o mundo, Hitler era invencível. Somente ele era um indivíduo, sendo que os demais alemães se dissolviam num imenso mecanismo unido para servir ao seuFührer.

Aspectos Técnicos

O filme divide-se em 12 cenas, alternando imagens que celebram a raça, a unidade, a ordem e a disciplina com closes sobre Hitler, o personagem que de fato domina inteiramente as quase duas horas de projeção. Ao fundo, temas wagnerianos misturam-se com canções folclóricas, hinos tradicionais e marchas nazistas, formando uma trilha sonora única que liga vários episódios da Alemanha numa coisa só, mostrando como o movimento nacional-socialista é tributário do passado e ao mesmo tempo seu continuador.

A escolha dos ambientes externos, enfocando tudo ao ar livre, tinha também um outro significado. Negar, opor-se com veemência a tudo o que anteriormente, nos tempos da República de Weimar, entendia-se como sendo a característica mais marcante do cinema alemão. Com sua estética neopagã, dando close em tipos arianos com seus corpos perfeitos (como ela fez no Olympia, o documentário que cobriu os Jogos de 1936), sempre atuando a céu aberto, ela queria sepultar para sempre a estética expressionista até então dominante nos filmes dos anos 20.

Nada mais de sombras e de espelhos convexos das alegorias místicas, de delírios e pesadelos, de traumas psicológicos envolvendo o homem comum. Decretou-se o fim dos bastidores propositadamente angulosos, tortos, barrocos, típicos da linguagem carregada de metáforas do expressionismo dos anos 20.A Alemanha nacional-socialista, odiando o passado recente da República de Weimar, expurgou as narrativas entremeadas por ambientes de escuridão tenebrosa, implantando por intermédio de Leni o que imaginavam ser a cultura fáustica apregoada por Oswald Spengler, “uma cultura da vontade”, onde “toda ética é uma ascensão”.

Conclusão

“Maldito povo alemão: tão brilhante individualmente, tão estúpido coletivamente!” – Göethe

São muitas perguntas em torno de Leni e sua obra. Assim como são, desde sempre, em torno da arte. Muitas perguntas e muitas respostas. Arte é propaganda? Arte é política? E a propaganda política pode ter um pouquinho de arte? A questão gira em torno de uma não definição sobre seu trabalho. Como artista, pura e simplesmente, ele pode fugir à culpa, se concordamos que a arte não é comprometida com a política. Mas aí acabamos por nos deparar com a irresponsabilidade artística. Como documentarista, ela poderia também poderia “se safar”, pois estava apenas registrando o encontro do partido ou as Olimpíadas de 1936. Entretanto, aí entram as técnicas de filmagem utilizadas por ela, que acabam por descaracterizar totalmente os documentários. O resultado? Ângulos, conceitos, signos articulados e organizados sempre seguindo um apelo ao estereótipo, à autoridade, à afirmação e repetição de alguns signos. As manipulações e recursos imagéticos levaram, sem dúvida, os filmes a ter um cunho de propaganda, pois não abria mão da persuasão. E aí entra a questão: uma beleza estética vinculada à informação política não pode ser alienada.

De tão passiva, a sociedade se deixou levar por uma retórica nazista. E então, a pergunta: Leni Riefenstahl é culpada? Independente do seu papel, seja este artista, propagandista ou documentarista, Leni tem sua parcela de culpa. Mas também tem sua parcela de passividade alienada, como todo povo alemão. Através de recursos cinematográficos ela traduziu um sentimento coletivo. Transmitiu e gerou essa verdade instaurada pelo Terceiro Reich, concomitantemente, sem ter como definir, ao certo, o que veio primeiro.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

KRACAUER, Siegfried – De Caligari a Hitler: uma história psicológica do cinema alemão.Zahar:Rio de Janeiro.1988.

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O filme:

Destaque: Numa das característica da estética de Leni Riefenstahl, a câmera mostra Hitler de encontro ao céu: além de sugerir seu papel messiânico, disfarçava sua pequena estatura, que destoava do ‘ideal ariano’ da grandiosidade alemã.

 

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