O que a direita prepara é um golpe “constitucional” para derrubar o governo mantendo o regime. Mas denunciar estes golpistas não significa dar o apoio a uma presidente e uma política que fraudaram as expectativas nelas depositadas.
Por Luis Leiria, no Esquerda.net
Um amigo de longa data envia-me uma mensagem, preocupado com a minha segurança. Quer saber se estou em Portugal ou no Brasil e, no segundo caso, se cuidei da minha segurança e da minha família diante do golpe militar iminente. Procuro tranquilizá-lo: não é um golpe militar que está em curso no Brasil, apesar de um setor minoritário das manifestações multitudinárias pelo afastamento de Dilma Rousseff pedir a intervenção das Forças Armadas. A maioria dos partidos da direita, o patronato representado pela poderosa FIESP (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo), o setor financeiro, os donos do agronegócio querem de facto afastar Dilma da Presidência e o PT do governo, mas o que preparam é um “golpe constitucional”, que seria a aprovação do impeachment da Presidente pelos deputados e senadores, mesmo sem haver fundamentação jurídica, isto é, sem haver um crime de responsabilidade cometido por Dilma Rousseff.
Este tipo de golpe, que derruba o governo mas mantém o regime, ficou conhecido por “golpe paraguaio” em memória da destituição do presidente daquele país, Fernando Lugo, por votação do senado, num processo relâmpago que durou pouco mais de 24 horas, no dia 22 de junho de 2012.
Tal como o processo de Lugo, o de Dilma é uma farsa, porque a presidente não é acusada de qualquer falta que possa ser considerada crime de responsabilidade. É uma farsa porque o processo de impeachment foi aceite por um presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, que está acusado de crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro pelo Procurador Geral da República e foi tornado réu pelo próprio Tribunal Superior Federal. É uma farsa porque a primeira decisão de realmente abrir ou não o processo cabe a uma comissão de 65 deputados eleitos nesta quinta-feira, 40 dos quais receberam, para as suas campanhas eleitorais, contribuições financeiras de empresas investigadas pela Operação Lava Jato. Quatro desses deputados estão mesmo sob investigação dos procuradores.
Mais: pela lei, se Dilma for afastada, tomará posse o seu vice, Michel Temer, do PMDB, que é igualmente responsável pelas “pedaladas fiscais” que servem de pretexto para o impeachment da presidente.
Se o governo de Dilma cair, fruto desta farsa e da pressão das manifestações massivas que pedem o seu afastamento, o governo que vier a seguir será mais agressivo socialmente que o seu tem sido, mais austeritário, mais pró-imperialista, mais repressivo. Mas não será uma ditadura militar.
Depois desta longa explicação, o meu amigo não ficou muito tranquilo. Perguntou-me:
– Mas, então, para ti é indiferente haver ou não esse tal de impeachment?
Claro que não – respondi-lhe. Não se pode ficar neutro diante do impeachment. É preciso denunciá-lo e opor-se à farsa.
Governo indefensável
Mas uma coisa é denunciar e opor-se ao impeachment e outra muito diferente é apoiar este governo. Porque, desde que tomou posse, Dilma Rousseff aplicou uma política oposta àquela que defendeu na campanha eleitoral e a levou à Presidência. E, absurdo dos absurdos, é justamente a mesma política que defendia o seu adversário derrotado, Aécio Neves. O “ajuste fiscal”, o nome que dão no Brasil à nossa conhecida austeridade, começou logo por reduzir o subsídio de desemprego e o auxílio na doença, prosseguiu nos cortes de orçamento nas áreas sociais, e prepara-se para fazer uma reforma na Previdência Social que aumentará a idade da reforma e outros ataques. Numa economia já atingida pela recessão internacional e em particular pela queda de preços das matérias primas que o Brasil exporta, esta política teve um efeito devastador, levando o desemprego a crescer em flecha, aproximando-se dos 10%.
Até no terreno das liberdades democráticas o governo Dilma aplicou a política da direita, fazendo aprovar uma lei antiterrorista que pode ser usada para atacar o direito à manifestação e os movimentos sociais.
Como disse o Guilherme Boulos, líder do Movimento dos Sem Teto, não vamos defender este governo, porque é indefensável. Ele é o culminar de uma política que começou a ser aplicada por Lula, de fazer tudo o que o grande capital financeiro e industrial querem, ao mesmo tempo que aproveitava a conjuntura internacional favorável para aplicar algumas medidas assistencialistas – as diversas bolsas, como a Bolsa Família – e aumentar um pouco, em termos reais, o salário mínimo. Num país com uma desigualdade tremenda, esse pouco significou muito para milhões de pessoas, mas o próprio Lula reconheceu que no seu governo os banqueiros ganharam como nunca.
Ao mesmo tempo, Lula procurou consolidar o seu poder através das mais espúrias alianças. Fernando Collor, seu adversário nas eleições de 1989 e o primeiro presidente a sofrer impeachment em 1992, é hoje um fervoroso aliado de Lula e de Dilma. Bem como o sinistro Paulo Maluf, que nos extertores da ditadura militar foi o candidato oficial a presidente na eleição indireta do Colégio Eleitoral e sobre o qual pesa um mandato de prisão internacional por movimentação de dinheiro ilícito. As alianças com o PMDB, o partido que está sempre por cima, com a Igreja Universal, com outros partidos menores de direita, implicaram o estabelecimento de uma rede de favores e de negócios que foi deixando de lado a “ética na política”, imagem de marca defendida originalmente pelo PT, para culminar em escândalos como o “Mensalão” e o “Petrolão”. O PT da afirmação da classe trabalhadora na cena política, porque “trabalhador vota em trabalhador”, transformou-se no partido do sistema, que governa o país há 13 anos e que em nada se diferencia dos outros. O Lula das greves do ABC transformou-se no “Lulinha paz e amor” que garante não oferecer perigo algum aos banqueiros e empresários.
Durante algum tempo, criou-se a ilusão que esta política conseguia o milagre de agradar a todos: o povo mais pobre melhorava, os banqueiros lucravam como nunca, o país crescia e os índices de popularidade de Lula batiam recordes. Mas quando a conjuntura internacional se alterou, a ilusão desfez-se, e a grande burguesia chegou à conclusão que já não precisava do PT para nada, que podia governar diretamente através dos seus partidos, como o PSDB.
Diante disto, Lula volta agora à ribalta política para defender a mesma política. O discurso que fez na manifestação desta sexta-feira em S. Paulo voltou a ser o do consenso, o do Lulinha paz e amor.
Por isso defendo que a esquerda socialista deve manter total independência em relação ao governo e combater a sua política. Porque Lula, o PT e esta política são os responsáveis pela atitude expectante em que está a classe trabalhadora, permitindo que uma classe média radicalizada pela extrema-direita assuma a hegemonia dos protestos de rua.
Corrupção e Lava Jato
E aqui entra a questão que tem estado no centro da atual crise política, a da corrupção.
O Brasil deu enormes avanços na investigação e punição da corrupção. Só os dois anos de Operação Lava Jato, que investiga exclusivamente os casos relacionados com a Petrobrás [?], já produziu a condenação de 93 pessoas, entre eles os presidentes ou ex-presidentes de empresas de construção gigantes, como a Odebrecht, a Camargo Correia, a OAS, ex-diretores da Petrobrás, um ex-tesoureiro do PT, empresários e doleiros. Até agora, os procuradores dirigidos pelo juiz Sérgio Moro conseguiram recuperar 2.900 milhões de reais e bloquear em contas nacionais ou no estrangeiro 2.400 milhões de reais.
O juiz Sérgio Moro foi construindo uma imagem de implacável e incorruptível, que lhe granjeou uma fama sem precedentes para um magistrado. E o facto de os políticos mais investigados serem do Partido dos Trabalhadores parecia explicar-se por ser o partido que está no poder ininterruptamente desde 2003. Ainda assim, causava estranheza que denúncias de outros políticos, como o senador Aécio Neves, citado cinco vezes em delações premiadas obtidas pela Lava Jato, fossem deixadas de lado enquanto a investigação se concentrava cada vez mais exclusivamente no PT.
Nas últimas semanas, porém, ficou claro que há um desvio político na operação que se concentra agora na figura do ex-presidente Lula da Silva. Apesar de as suspeitas que pesam sobre Lula serem muito frágeis (um apartamento na cidade litoral do Guarujá não é nada que Lula não pudesse ter, apesar de o ex-presidente garantir que não é dele), houve o episódio da condução coercitiva de Lula a um interrogatório que repetiu as perguntas que já tinham sido feitas antes, e o pedido de prisão preventiva do ex-presidente, tão desastrado que foi quase unanimemente condenado, até por políticos do PSDB. A cereja no topo do bolo foi a atitude de Moro de divulgar ilegalmente escutas telefónicas com pouca ou nenhuma relevância para o processo, alegando que eram do “interesse público”.
A atitude de Moro foi tão condenável que até a Folha de S. Paulo, insuspeita de ter simpatias por Lula, disse em editorial esta sexta-feira que “em meio à crise, a Justiça deve dar o exemplo, mas o juiz Sérgio Moro se deixou levar por um cálculo político incompatível com o cargo”, acusando o magistrado de fazer uma “temerária incursão pelo cálculo político”, e argumentando que “não cabe a um magistrado ignorar ritos legais a fim de interromper o que sem dúvida representa um mal maior”.
A Operação Lava Jato está pois a ser usada como arma política. Mas isto não quer dizer que o envolvimento do PT com a corrupção não seja um facto: pelo menos dois ex-tesoureiros do PT e importantes quadros partidários, como José Dirceu, estão presos e foram condenados por se beneficiarem de esquemas corruptos. Nesse sentido, a decisão de Lula ir para o governo apareceu – mesmo que não seja essa a primeira intenção – como uma fuga à Justiça e constituiu um erro de cálculo evidente.
Mas é provável que, no caso de o “golpe paraguaio” triunfar, as investigações da Lava Jato comecem a marcar passo, que muitos dos denunciados, como Aécio Neves ou Michel Temer nunca venham a ser investigados e que a corrupção volte a ser a regra nas relações das empresas com o Estado.
Terceiro campo
Diante da extrema polarização contra e a favor do governo, a posição da esquerda socialista é difícil, tanto mais que a correlação de forças lhe é desfavorável. Combater a direita, denunciar o impeachment mantendo a independência em relação ao governo e lutando contra as suas políticas. Fazer uma frente entre os partidos como o PSOL. o PSTU e o PCB, organizações sociais como o MTST ou a CSP Conlutas e a Intersindical para construir um terceiro campo que apareça como uma alternativa. Será possível pelo menos começar a discutir esta frente? Será possível construir este terceiro campo? Todas as divergências entre estas organizações deveriam ser secundárias em função desta tarefa inadiável. A ver vamos.