Cidadania proativa à contracorrente da ordem hegemônica: moléculas de alternatividade

Por Alder Júlio Ferreira Calado

Se em qualquer tempo, seres históricos que são, os humanos buscam mudanças, em “mudança de época” “a fortiori” – como a em que vivemos – tais buscas se densificam sobremaneira. Práticas e concepções, secularmente introjetadas e reproduzidas, se tornam alvo de questionamentos. Isto também implica repensar práticas e conceitos, na esfera da Política. Uma delas prende-se aos distintos sentidos conferidos à Política. Por décadas a fio, ela vem sendo questionada: a despeito do longo e profundo hábito instalado de se tomá-la como um campo semântico quase apenas restrito às relações Sociedade-Estado, eis que irrompe, cada vez mais, a necessidade de se tomar mais a sério outras dimensões da Política e do fazer político, estendendo e conectando seu universo semântico à Política do cotidiano dos cidadãos e cidadãs.

Política como uma rede de relações que não se esgota no âmbito do Estado, como polo relacional da Sociedade. Por mais expostas que estas se mostrem – e ao alcance direto e imediato  de nossa percepção, temos que convir que as relações Sociedade-Estado se inserem como um dos âmbitos – o pólo estatal. Há outros pólos relacionais a pulsar no vasto e complexo tecido societal. Há, com efeito, toda uma malha de micro-relações na vida social que, por mais subterrâeneos que apareçam, são portadoras de um enorme potencial transformador.

No dia-a-dia da vida social, há uma vasta e complexa malha de relações vivenciadas pelos cidadãos e cidadãs, nos mais diversos espaços, em que também são protagonistas. Com efeito, a Política do cotidiano comporta uma constelação de macro e micro-relações, que vão bem além dos afazeres de Estado. Impregnam espaços tais como vida familiar, relações de vizinhança, distintos espaços comunitários, associativos, de caráter cultural, religioso, relações de trabalho, escola, vida lúdica, esportiva, artístico-cultural, posturas dos cidadãos e cidadãs diante de situações embaraçosas no trânsito, nas filas de bancos, de hospitais, a atestarem tanto atitudes e práticas  de privatização (explícita ou dissimulada) de espaços públicos – e, neste caso, reproduzindo e consolidando a lógica da ordem estabelecida – quanto práticas, atitudes e posturas de alternatividade da ordem vigente.

Na vida cotidiana,  pulsam relações (econômicas, políticas e culturais) tão relevantes quanto as que se referem ao âmbito estrito do Estado. Descobrimos que essas micro-relações se revestem de sementes portadoras de macro-relações, e, não raro, mostrando-se de um potencial transformador não desprezível.  Constatação que nos alerta quanto  à necessidade e urgência de um redimensionamento mais crítico das chamadas “micro-relações”, à medida que elas vão dando provas de uma tremenda potencialidade, a repercutirem nas macro-relações. Já não se trata de observar-se o micro e o macro, mas, antes, de se verificar o micro no macro e o macro no micro. Cidadãos e cidadãs que, em vez de reduzirem suas atividades apenas à esfera do Estado, cuidam de esboçar, pelas suas práticas cotidianas, posturas alternativas aos diversos vícios sociais hegemônicos, estão ou não sinalizando que, não apenas é possível, mas já dão mostra de estarem mudando a sociedade, ainda que em doses moleculares?

A quem ainda não aposta no potencial subversivo das iniciativas moleculares atuando no, e desde o chão do cotidiano, cumpre lembrá-los de que as forças hoje hegemônicas atuam, também elas, no chão da História. Nasceram não-hegemônicas, eram incipientes, no nascedouro, a exemplo de outras tantas, foram desenvolvendo-se nos entrechoques da História. Também atingem seu ápice, e vão cedendo terreno a novo sujeito histórico. Forças sociais bem mais recentes enfrentam semelhante trajetória, semelhante dinâmica de tudo quanto é histórico. Em resumo: não são eternas! Exemplos se sucedem. Lembre-se, por exemplo, do que foi, por muito tempo, o império romano…

A despeito de tal constatação, importa atentar-se para o fato de que tal sucessão de sujeitos históricos não obedece “naturalmente” a uma evolução espontânea que necessariamente assegure às forças sucessoras um padrão superior ao das precedentes: a um modo X de produção, de consumo e de gestão societal não se segue necessariamente um modo Y de produção, de consumo e de gestão, de qualidade superior. Tal qualidade só resulta superior, a depender do que se planta e do que se cultiva precedentemente, com vistas à superação do até há pouco tempo vigente. Não se trata, pois, de “pôr abaixo o que aí está”, sem que, desde antes não se venham materializando sinais convincentes da consistência do novo sujeito histórico.

Isto remete a gente de minha geração ao famoso filme “Queimada”, em que os cidadãos combatentes das forças invasoras achavam que, para se verem livres daquela dominação, era bastante expulsar os invasores. Dada a expulsão, verificou-se tardiamente que os cidadãos nativos não se haviam preparado devidamente para, uma vez expulsos os invasores, levar a efeito uma gestão alternativa… Daí, a famosa afirmação da personagem José Dolores: “É melhor saber para onde ir, sem saber como, do que saber como, e não saber para onde ir.”

Nas breves linhas que seguem, propomo-nos compartilhar algumas considerações acerca da necessidade e urgência de as organizações de base de nossa sociedade ousarem, desde já – e sem cessar – ir exercitando passos concretos, ainda que moleculares, de produção, de consumo e de gestão societal alternativos aos da ordem vigente. Aqui, vamos restringir-nos a dois pontos:

  • por que não basta limitar-nos a re-agir aos efeitos perniciosos da ordem vigente?
  • como e por onde começar a ensaiar passos concretos à contracorrente “do que aí está”?

Resistir é um primeiro passo, necessário, mas ainda insuficiente, se mantido isolado e desconectado de iniciativas articuladas, grávidas de alternatividade

Segue, também hoje, vigendo o compromisso com as iniciativas de resistência popular ante as diversas formas de ataque e agressão das forças adversas. Não se pode calar diante da sucessão de formas de agressão, feitas pelas forças hegemônicas contra a Mãe-Natureza e toda a comunidade de viventes. Há que se resistir, sim! O desafio atual é ir além da mera resistência, isto é, da mera reação feita a varejo, pontual e episódica às sucessivas formas de agressão das forças dominantes. Urge, mais do que nunca, ir além delas, articulando-as a iniciativas de um quefazer alternativo a toda a lógica das forças adversas.

Combinar resistência com ensaio de passos alternativos, desde já e ininterruptamente… Ainda assim, não incluímos, entre essas resistências, certas manifestações equivocadas pretendo defender o indefensável, com evasivas estritamente formais, sem  a devida fundamentação ético-política. Aqui, a despeito de vigorosos discursos ideológicos, não se acham em jogo os verdadeiros interesses das classes populares, por mais que se fale em nome delas (até como recurso retórico em defesa de interesses de pequenos grupos e respectivos projetos de poder). Também aqui, soa de grande valia a famosa Tese 2 dirigida a Feuerbach, de que não é o discurso, mas a prática, o critério de aferição da busca da verdade. Sustentação, aliás, que, bem antes de nascer da filosofia da práxis, tem a cunha do Evangelho: “Não são aqueles que dizem Senhor, Senhor, que entrarão no Reino dos Céus, mas aqueles que fazem a vontade do meu Pai”..; a árvore se conhece pelos frutos; pelos seus frutos os conhecereis… (cf. Mt 7. 14-29);

No que concerne, todavia, àquelas iniciativas de resistência convencionais, sempre tão corriqueiras, cumpre ponderar que, por mais necessárias que sigam sendo, elas não têm grande fôlego, na perspectiva de alternatividade,  se as forças de transformação se restringirem a isto, não lograrão sucesso na construção de uma sociabilidade alternativa àquela que pretendem superar. Ficaríamos presos e enredados à lógica, ao horizonte e aos métodos  das forças hegemônicas, sem nos exercitarmos em verdadeiras iniciativas de alternatividade. Se não formos capazes de vislumbrar, de forjar  e de implementar iniciativas de alternatividade ao espírito desse “sistema mercantil totalitário”, acabamos, mais cedo ou mais tarde, reféns de suas estratégias e de seu horizonte, ainda que nos declaremos opostos a tudo isto.

Mesmo tendo que irromper do útero da velha ordem, somos historicamente chamados a ensaiarmos nossas potencialidades heurísticas, ensaiando-as, desde o chão do aqui e agora, sob pena de nos atrairmos pelos caminhos dos adversários – seu horizonte, seus métodos, suas estratégias. Nesse sentido, em vão seguimos suas trilhas. Seus sedutores atalhos econômicos, políticos e culturais – sobejamente mostrados pelos seus frutos – só nos têm mergulhado cada vez mais no abismo. Na esfera econômica, por exemplo, em vão buscamos saídas, a partir de sua lógica, ou seja:

  • acomodando-nos à lógica do seu Mercado;
  • reeditando práticas produtivas animadas por seu horizonte e caminhos;
  • cedendo aos, por vezes, sedutores caminhos do hidro-agronegócio;
  • cedendo à lógica de definição do quê produzir;
  • adotando seus mecanismos de lucratividade;
  • seguindo seus procedimentos de relacionamento com a Natureza e com toda a comunidade dos viventes, e assim por diante.

Igualmente no plano político, bem outro há de ser a nossa busca de uma sociabilidade alternativa. Também aqui, os frutos da longa experiência do modelo hegemônico se mostram bem ilustrativos.

Trilhas de alternatividade a ensaiar, não apenas na esfera econômica, mas igualmente no âmbito político e no plano cultural, adequadamente articulados.

No caso específico do plano político, importa perceber e reconhecer que, via espaços estatais / governamentais ou de representação formal, ou pela via organização político-partidária convencional, ou pela via do sistema eleitoral, os óbices se acham cada vez mais esgotados e irreversíveis. Dão prova robusta de progressivo exaurimento. O mesmo vale, com força igual ou ainda maior, para o cenário cultural, o mundo dos valores.

Como e por onde ensaiar passos concretos à contracorrente “do que aí está ?

Cumpre lembrar, para começo de conversa, que não precisamos partir da estaca zero. Há experiências moleculares alternativas sendo vivenciadas, mundo afora. Partimos daí. E, conscientes de que não bastam, buscamos avançar para além delas. Disso cuidamos, a seguir.

Na esfera da produção –  Graças à enorme diversidade de ferramentas de comunicação hoje disponíveis – e não me refiro à mídia comercial -, com crescente frequência, podemos assistir a muitas dessas experiências alternativas, nos distintos setores e ramos da economia. Mais: podemos testemunhar, de perto, ou mesmo protagonizar algumas delas. Atentos e animados com seus frutos, por um lado, também não ignoramos suas insuficiências. Desde há algum tempo, vicejam, mundo afora, na América Latina, no Brasil, no Nordeste, no Semiárido, promissoras  iniciativas de produção, associadas ao consumo. Nestas linhas, limitamo-nos a ilustrar rapidamente algumas dessas iniciativas, circunscritas à convivência com o Semiárido.

Iniciativas de convivência alternativa com o Semiárido – Constatamos, com alegria, todo um leque de experiências revolucionárias de convivência alternativa com o Semiárido. E não de hoje! Se é certo que tais experiências, hoje trabalhadas em rede protagonizada diretamente por nossas organizações de base, não menos verdade é que elas têm raízes fincadas, pelo menos, em finais do século XIX/primeiras décadas do século XX, a partir de iniciativas comunitárias, animadas por figuras tais como Pe. Ibiapina, Pe. Cícero, Beato José Lourenço e tantas beatas e beatos que protagonizaram tais feitos, por meio de seu empenho em criar condições agroecológicas de saudável convivência alternativa com o Semiárido, por meio de construções fecundas de obras, nesse sentido. Aqui não vai ser o espaço adequado de entrarmos numa análise mais detida. Outros já o vêm fazendo. Nosso propósito é de relembrar que as experiências das quais nos ocupamos, não nasceram ontem. São inspiradas em outras intervenções comunitárias do povo dos pobres de nossa região.

Mais recentemente, de umas décadas para cá, vimos observando o crescimento da consciência ecológica, acompanhada de fecundas intervenções, fruto quase exclusivamente do trabalho de organizações da sociedade civil, dentre as quais, apenas como três exemplos ilustrativos (lembrando que são dezenas, entre movimentos populares, associações, cooperativas, coletivos outros), citamos aqui: Articulação do Semiárido (ASA) e Cáritas e SETA. Destas e de outras iniciativas civis de caráter alternativo ressaltamos o caráter alternativo, em suas construções tais como cisternas, barragens subterrâneas e toda uma série de tecnologias e equipamentos alternativos de convivência criativa e respeitosa com o nosso bioma, sempre numa perspectiva socioambiental, como a apontada na recente Encíclica “Laudato si´”, do Papa Francisco. Aqui nos limitamos, não a descrever ou analisar cada uma delas, mas a destacar algumas de suas características comuns ou qual é o seu “espírito”:

  • são concebidas a partir da experiência direta de nossas comunidades tradicionais – indígenas, quilombolas, camponesas, dos povos das águas, das florestas, pescadores, comunidades ribeirinhas, vivendo em comunhão secular e respeitosa com a Mãe Natureza;
  • distanciam-se radicalmente das “obras faraônicas” tão ao gosto e da lógica do sistema dominante (do Mercado capitalista e do seu Estado), à medida que apostam nas “pequenas” iniciativas, organicamente articuladas, de baixíssimo custo e de amplo alcance socioambiental;
  • sem descartar os procedimentos científicos convencionais, tratam de combiná-los com o acúmulo multissecular da sabedoria popular;
  • priorizam, desde a concepção à avaliação – e passando pelo planejamento, pela implementação, controle social, transparência, etc. – o protagonismo do conjunto das comunidades envolvidas nas respectivas iniciativas;
  • pelos seus frutos, mostram-se transparentes e pouco ou nada vulneráveis a práticas de corrupção, abusivamente correntes nas Obras faraônicas.

Como antes assinalado, do vasto leque de experiências moleculares grávidas de alternatividade, restringimos apenas a pouquíssimos exemplos ilustrativos de um único campo: o da produção socioambiental, no Semiárido. Mesmo assim, já é possível sentir o quanto foi e está sendo possível avançar, na qualidade social das intervenções já postas em práticas, a despeito de, e para além de suas insuficiências.

É preciso, sim, ampliar e articular mais adequadamente essas e tantas outras  iniciativas, nas diversas esferas de nossa realidade: no campos da saúde/saneamento, da formação, dos processos organizativos de base, etc., etc.

Potencializando a força transformadora alternativa das experiências moleculares em curso

A despeito de, e para além das insuficiências das iniciativas moleculares, por si mesmas insuficientes de produzirem as mudanças desejáveis, cumpre seguir buscando, incessantemente, pistas de caráter mais diretamente macrossocial, às quais devem ser articuladas as de caráter mais diretamente microssocial. Tarefa gigantesca, que se vai cumprindo a médio e longo prazos, desde que passos concretos nessa direção vão sendo ensaiados, desde já.

João Pessoa, 26 de março de 2016.

Enviada para Combate Racismo Ambiental por Ruben Siqueira.

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