Luciana Brito* – População Negra e Saúde
Nenhuma de nós sabe ao certo ainda o que é o Zika vírus e muito tem se especulado sobre a associação entre o mosquito e a microcefalia. Do nosso lugar de feministas negras, militantes do movimento de mulheres negras, nosso papel é pensar como os casos de microcefalia e o debate sobre o aborto, assim como os discursos de uma moral feminina, afeta de maneira cruel todas as mulheres, mas principalmente as mulheres negras e pobres.
Algum tempo atrás, um desses programas da TV mostrava o drama das mulheres grávidas. Apavoradas, e com razão, descreviam suas táticas para se proteger do mosquito: repelentes, ar condicionado, roupas que cobriam todo o corpo. Outras, privilegiadas, é certo, abandonavam o país. Outras privilegiadas, no exterior, adiavam a vinda para o Brasil.
Me solidarizo com a agonia destas mulheres, mas penso que o velho racismo, sexismo e desigualdade de classes têm colocado as mulheres brasileiras em lugares distintos, ainda que todas nós estejamos expostas. O que dizer das mulheres pobres, negras, que são obrigadas a sair para trabalhar? As que moram onde não há saneamento e que são obrigadas a armazenar água em baldes e frascos porque não tem acesso à água corrente? E aquelas que não compram repelentes porque o dinheiro não sobra, que não tem para onde ir, ou se refugiar, para garantir uma gravidez que seja concluída com um bebê saudável?
De acordo com a Secretaria de Desenvolvimento Social de Pernambuco, 77% das mães de bebês com microcefalia estão na linha de extrema pobreza[1]. O INSS garante um beneficio para aquelas famílias que tem renda de até R$220,00. Assim, se uma família tem renda de R$250,00, o que já é muito pouco, deve arcar sozinha com os custos de uma criança que nasceu com a doença. Entre 209 mulheres que eram mães de bebês com microcefalia, somente quatro estavam recebendo o benefício. [2]
Em Salvador, a realidade é parecida. A greve dos peritos médicos, que começou em setembro do ano passado e só terminou em janeiro, acabou atrasando o pedido de beneficio das mães. É importante lembrar que as mães são obrigadas a parar de trabalhar para cuidar dos bebês, de acordo com o que tenho lido em todos os relatos que tenho tido acesso. As visitas aos médicos são diárias, o transporte é caro e a ajuda é pouca. [3]
Será que, num futuro próximo, também culparão estas mulheres por onerarem o Estado com benefícios que “não ensinam os pobres a pescar”, tal como já fazem em relação a outros programas sociais, como o Bolsa Família?O ministro da saúde fez uma fala que já anuncia esse julgamento. Segundo ele “se perder a batalha contra o mosquito, o Brasil terá uma geração de brasileiros com retardo mental.”
O zika vírus também complicou, ainda mais, os debates acerca dos direitos reprodutivos das mulheres pobres. Num Brasil que a opinião dos fundamentalistas tem poder de lei e que a sociedade caminha para um conservadorismo insano, uma pesquisa revelou que 58% d@s brasileir@s, a maioria mulheres, reprova que mulheres infectadas com o vírus tenham direito ao aborto. Ainda que o caso de microcefalia seja confirmado, 51% das pessoas são contra o direito dessa mulher de abortar. Um deputado da bancada evangélica, Anderson Pereiro (PR-PE) apresentou a Câmara um projeto de Lei que prevê quatro anos e meio de prisão para a mulher que realizar aborto após confirmada a malformação do feto.[4]
Mas a perversidade e insensibilidade dos homens e mulheres brasileiras são seletivas e hipócritas. Mulheres que podem pagar entre 5 e 15 mil num aborto clandestino já estão interrompendo a gravidez, mesmo sem a confirmação da microcefalia. Os médicos dessas pacientes ainda afirmam que elas têm educação universitária e alto poder aquisitivo. Estas mulheres, que compõem a classe média brasileira, estão longe dos projetos do deputado fundamentalista e não são reféns da opinião da sociedade cruel e moralista. De acordo com uma médica entrevistada pela Folha de São Paulo: “Elas (as suas pacientes) não quiseram pagar para ver.”[5]
De acordo a pesquisadora Debora Diniz, o surto de microcefalia é fruto do descaso do Estado e são as mulheres pobres e nordestinas as maiores vítimas. Dada as das péssimas condições sanitárias do país, o que vivemos hoje é resultado de um completo descaso em relação à erradicação do mosquito Aedes Aegypti, que já ameaça a sociedade brasileira há 40 anos.[6] É na região nordeste que se concentram 90% dos casos de microcefalia.
Bem, juntando os pontos, sabemos muito bem quem são as mulheres pobres e que moram nas periferias do Nordeste e do Brasil: são as mulheres negras e indígenas.
São estas mulheres, que estão longe de representar o padrão de beleza eurocêntrico, o ideal de civilização ocidental e o modelo de maternidade ideal que desperta a compaixão da sociedade, que estão carregando nos corpos o peso do descaso do Estado e da hipocrisia da sociedade que ao tempo que as condena, também promove um rígido controle sobre seus corpos.
São elas que abandonam o emprego ao mesmo tempo em que são abandonadas por seus parceiros, já que muitos deles (não todos), não aceitam um bebê que não lhes desperte o orgulho de sair pelas ruas mostrando um rebento perfeito. Um depoimento de uma mulher me chamou a atenção. Ela foi abandonada pelo companheiro ainda na maternidade. Antes de sair, ele lhe disse que ela era a culpada pela malformação da criança. A razão para isso: ela era uma pessoa ruim, segundo palavras do pai da criança. [7]
Tudo isso nos mostra como racismo e sexismo tem tornado a dor dessas mulheres ainda maior. Cada vez mais somos sacrificadas pelo conservadorismo, pela falta de informação, pela falta de políticas públicas e pela moral hipócrita da sociedade brasileira.
Outro bom exemplo disso foi um episódio que acompanhei meses atrás pela internet. Uma mãe pedia doações para seu filho que havia nascido com microcefalia. Constrangida, ela informava que nunca havia pedido ajuda a estranhos antes. Enquanto ela pedia apoio e solidariedade a outras mulheres, mães assim como ela, o que ela recebeu de imediato foi uma avalanche de acusações. De acordo com as “juízas” do mundo virtual, o seu corpo, que aparecia na foto do seu perfil, não parecia o corpo de uma mulher que acabava de dar a luz.
Em seguida, afirmaram que ela tinha vergonha de mostrar a criança e, pior ainda, disseram que ela tinha inventado toda aquela estória para tirar vantagens das “boas almas caridosas”.
Mas o que despertou tanta suspeição a partir de um pedido de ajuda? Qual foi o indício que as outras mulheres usaram para acreditar que aquela mulher estava mentindo? Eu lhes digo: ela era mulher, negra, pobre, jovem e bonita, ou seja, nem parecia ser mãe! Assim, seu sofrimento não despertou a compaixão de ninguém.
Para ser absolvida do tribunal virtual, ela foi obrigada a expor fotos do filho diagnosticado com microcefalia e narrar como seu cotidiano estava sendo difícil: teve que deixar o emprego, pegava ônibus para fazer visitas diárias ao médico com o filho, estava gastando muito dinheiro com remédios… ela ainda não sabia da existência do benefício do SUS.
No meio de tanta ignorância e até mesmo crueldade, eu diria, as mulheres que são mães de bebês com microcefalia tem afirmado publicamente o amor pelos seus rebentos, perfeitos ou não. Elas tem “se virado”, ao mesmo tempo em que travam uma batalha silenciosa contra a microcefalia e o abandono. Como afirmou uma mãe entrevistada em Salvador “o amor é igual, não muda nada”. [8]
Por fim, é para todas as mulheres, mas, sobretudo as negras, indígenas, pobres e nordestinas que dedicamos nossa sororidade. São elas, negras, nordestinas, pobres, parcela definidora do eleitorado brasileiro, que deveriam ser a maior prioridade e não vítimas do completo descaso das elites políticas conservadoras do país.[9] Sabemos que homenagear estas mulheres não muda suas realidades, porém elas tem nossa solidariedade. Todos os dias eu tenho pensado sobre sua coragem e amor infinito.
Que as Yabás lhes dêem força, Axé.
[2]Fonte: http://tvjornal.ne10.uol.com.br/noticia/ultimas/2016/02/24/77_porcento-das-familias-de-bebes-com-microcefalia-vivem-abaixo-da-linha-da-pobreza-23147.php
[3]http://www.correio24horas.com.br/detalhe/noticia/maes-de-bebes-com-microcefalia-tem-direito-a-beneficio-no-valor-do-salario-minimo-saiba-como-conseguir/?cHash=79acf284f5cabb19704e93740e550ece
[4]http://saude.estadao.com.br/noticias/geral,deputado-propoe-ate-15-anos-de-prisao-por-aborto-em-razao-de-microcefalia,10000016798
[5]http://m.folha.uol.com.br/cotidiano/2016/01/1735560-gravidas-com-zika-fazem-aborto-sem-confirmacao-de-microcefalia.shtml
[6]http://www.brasilpost.com.br/2016/02/03/aborto-zika-brasil_n_9144300.html
[7]http://www.geledes.org.br/triste-realidade-homens-abandonam-maes-de-bebes-com-microcefalia-em-pernambuco/
[8]http://www.correio24horas.com.br/detalhe/noticia/maes-de-bebes-com-microcefalia-tem-direito-a-beneficio-no-valor-do-salario-minimo-saiba-como-conseguir/?cHash=79acf284f5cabb19704e93740e550ece
[9]http://agenciapatriciagalvao.org.br/politica/pautas-politica/eleicoes-presidenciais-2014-mulheres-e-negros-serao-decisivos/
*Luciana Brito é Historiadora, Militante do grupo de mulheres do MNU, Integrante da Rede de Mulheres Negras da Bahia