A terra de Dom Quixote, 400 anos depois da morte de Cervantes

Viagem por La Mancha, a terra do criador espanhol de um dos personagens literários mais conhecidos do mundo.

Por Susana Vera (texto e fotos), Reuters/Rede Angola

Confesso: nunca li O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de La Mancha, a obra-prima literária do espanhol Miguel de Cervantes Saavedra. Estava no primeiro lugar na lista de livros obrigatórios da escola secundária no ano em que fui viver para os Estados Unidos. Enquanto os meus amigos liam as aventuras do “cavaleiro da fraca figura”, eu lutava com o poema épico Beowulf.

Cervantes não revelou o nome do local de nascimento de Dom Quixote, um homem de meia-idade obcecado pelos ideais cavalheirescos que, munido de lança e espada, se aventura pelos caminhos de Espanha para realizar actos heróicos em nome da sua amada Dulcineia.

No entanto, muitos identificam Argamasilla de Alba, um vilarejo de quase sete mil pessoas castigado pelo clima, como a sua terra natal.

Hoje assinalam-se os 400 anos da morte de Cervantes, desculpa perfeita para uma viagem na peugada de Dom Quixote e do seu fiel escudeiro Sancho Pança pelo planalto da La Mancha de hoje, a região árida a sul de Madrid.

Ao contrário de Dom Quixote, que deixou a sua casa ao amanhecer de um quente dia de Julho, eu deixei Madrid no meio de uma tempestade. A previsão meteorológica previa chuva para todo o dia em toda a Espanha. Não é o princípio imaginado. A minha ideia era capturar o estado de espírito e a energia da região que Cervantes descreveu em tão grande detalhe. A chuva forçou-me a ver as coisas sob uma perspectiva diferente, literal e metaforicamente.

“As duas coisas mais internacionais de La Mancha são Dom Quixote e o nosso queijo” (manchego), diz Ángel Gutiérrez Carrasco, um pastor de 55 anos, enquanto guarda o seu rebanho junto à barragem de Penarroya, perto da vila tranquila de Argamasilla de Alba. Carrasco não leu Cervantes mas conhece muito bem o episódio em que Dom Quixote carrega contra dois rebanhos de ovelhas julgando-os exércitos.

Todos os anos, o pastor empresta animais para o grupo de teatro representar partes do romance nas ruas de Argamasilla.

Cervantes não revelou a terra natal de Dom Quixote, daí que outras localidades em La Mancha lutem pela distinção, embora Argamasilla tenha uma casa reconstruída com uma gruta por baixo onde, reza a lenda local, Cervantes esteve preso.

No prólogo de D. Quixote, Cervantes escreveu que a sua obra tinha sido “concebida numa prisão”. Hoje, os visitantes podem ver a Gruta de Medrano e imaginar o autor a escrever ali mesmo parte da sua obra-prima.

Benjamin Montesinos, de 92 anos, é peremptório sobre onde nasceu Cervantes. “Em Alcázar de San Juan, digam o que disserem as pessoas de Alcalá de Henares”, garante, em claro desacordo com a generalidade dos académicos que aceitam que o escritor é nativo desta última, situada a leste de Madrid.

Montesinos foi a única das pessoas que encontrei nos meus cinco dias em La Mancha que leu o Dom Quixote do princípio ao fim.

“É de outro planeta”, afirma. O filho astrónomo é parcialmente responsável por haver hoje uma estrela chamada Cervantes e quatro planetas na sua órbita com os nomes de Dom Quixote, da sua amada Dulcineia, do seu escudeiro Sancho e do seu cavalo Rocinante.

Cervantes e Dom Quixote tornaram-se verdadeiramente cósmicos.

Espírito livre

As nuvens tapam quaisquer sinais de estrelas quando encontro os viajantes Irene Decarli, de 57 anos, e Enrico Kaswalder, de 60, a jantar dentro da sua auto-caravana junto aos alvos moinhos de vento de Consuegra. Começo a falar em inglês, ao confundi-los, erradamente, por europeus do norte, mas assim que me corrigem, passamos a falar nas nossas línguas maternas.

Pergunto-lhes sobre a razão por trás da atracção universal de Dom Quixote e depois de alguns gestos percebo que é por ser um espírito livre. “Como vocês?”, pergunto-lhes e Irene sorri e acena em concordância.

Procuro sem sucesso o grande amor de Dom Quixote, Dulcineia, na vila de El Toboso, onde supostamente terá vivido. Existe apenas uma mulher com o mesmo nome da Princesa de La Mancha no lugar, vive agora em Londres e está farta de ser citada incorrectamente por jornalistas.

No entanto, a Irmã Isabel, uma freira enclausurada da Ordem das Clarissas, faz doces com o nome de Dulcineia e convida-me para a padaria do convento.

Ela e outras freiras fazem os populares Caprichos de Dulcineia desde 2005, quando se assinalou o quarto centenário da publicação da primeira parte do Dom Quixote.

Enquanto conduzo até à vila de Ossa de Montiel, no meu último dia em La Mancha, vou lembrando as numerosas pessoas com que me cruzei e os lugares por onde passei.

Nada me podia preparar para aquilo que encontrei na Gruta de Montesinos, junto às lagoas azul-safira de Ruidera. Quando descia para a gruta, onde, alguns clamam, Dom Quixote adormeceu e teve o mais fantástico dos sonhos, o meu guia, Liberto Chillerón, assinalou com a luz da sua lanterna aquilo que parecia ser pó no chão. Depreendi que se tratava de fezes de morcego.

Para meu espanto, o pó cinzento iluminado na escuridão da gruta eram as cinzas de Bob, o Quixote inglês.

Bob, explica-me Chillerón, era um inglês que veio viver para Ossa de Montiel por amor à mulher espanhola. Começou a representar o papel de Dom Quixote à porta da caverna e junto às lagoas, tendo reunido um grupo de seguidores entre gente local e turistas. Quando morreu, num acidente de viação em Janeiro, a família deitar as suas cinzas nos lugares de que tanto gostava.

Depois de cinco dias à procura de Dom Quixote em todos os cantos de La Mancha, encontrei-o numa gruta de morcegos – e resulta que era inglês. A verdade é mais estranha que a ficção.

Tradução António Rodrigues

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