O verdadeiro papel do controle social e da gestão participativa na Saúde Indígena

Paulo Daniel Moraes, membro da Pastoral Indigenista da Diocese de Roraima

Os problemas de ingerência indevida na gestão dos distritos pelos Conselhos Distritais de Saúde Indígena (CONDISI) observados em muitas regiões do país têm como origem uma interpretação errada sobre o significado do controle social no Sistema Único de Saúde (SUS). Os CONDISI, em sua concepção original, têm um caráter deliberativo, devendo estabelecer as diretrizes e fiscalizar a execução das ações de saúde no território de abrangência dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEI). A justa e progressiva ocupação dos espaços da gestão por profissionais indígenas, como propugnado na Convenção 169 da OIT e Declaração dos Direitos Indígenas da ONU, não deve ser confundida com a finalidade precípua do controle social definida para os CONDISI. 

O que se vê hoje em muitos distritos, no entanto, é uma intervenção direta dos Conselhos Distritais em atividades típicas da gestão, como as decisões sobre contratação ou demissão dos profissionais, distribuição dos cargos de chefia, administração da logística e infraestrutura dos distritos. Ao invés de balizar, avaliar e fiscalizar estas ações, os Conselhos Distritais por meio de sua diretoria e equipe de apoio ao controle social passam a ter a palavra final sobre boa parte das decisões estratégicas da gestão administrativa e financeira. A pergunta que fica é muito simples: se os Conselhos Distritais (CONDISI) resolvem assumir a responsabilidade direta pela gestão dos distritos, quem vai exercer um autêntico controle social sobre as decisões e ações promovidas por eles?

Um dos pilares fundamentais do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (SASI-SUS) é o efetivo controle social com gestão participativa, conforme os parâmetros definidos na Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas (PNASPI) aprovada pelo Conselho Nacional de Saúde no ano de 2002. Ao longo do processo de construção dos DSEI, houve em todo o país inúmeros exemplos bem sucedidos de gestão participativa, ou autogestão da saúde indígena, para usar uma terminologia da Organização Mundial de Saúde (OMS). Estas experiências proporcionaram um significativo aprendizado do qual as lideranças indígenas hoje lançam mão para fundamentar suas críticas e propostas para correção dos rumos da atenção à saúde em suas comunidades.

Os problemas no funcionamento dos Conselhos Distritais, em sua maioria, não estão relacionados aos conselheiros indígenas indicados pelas comunidades, mas a uma hipertrofia das chamadas equipes de apoio ao controle social, que hoje são constituídas por um grande número de profissionais indígenas e não indígenas, muitos dos quais se encontram em desvio de função, acumulando cargos de conselheiros e membros da equipe de apoio e recebendo salários e diárias no exercício destas funções. Em uma espécie de controle social às avessas, essas equipes passam a influenciar no processo de escolha dos conselheiros, na pauta e dinâmica das reuniões e, finalmente, nas eleições para escolha dos presidentes dos CONDISI, afastando e confrontando qualquer pessoa que se manifeste contra este estado de coisas.

O tráfico de influência durante a gestão passada no DSEI Leste de Roraima fica claramente evidenciado pelo enorme número de denúncias de assédio moral apresentadas por funcionários do distrito na Justiça do Trabalho nos últimos anos, com alegações como imposição de condições para contratação e cobrança de pedágios mensais de garantia dos empregos. A chamada farra das diárias denunciada por conselheiros na última reunião do CONDISI chegou a atingir centenas de milhares de reais no último ano usados de forma pouco transparente e absolutamente questionável, além de outras formas de favorecimento que servem para reforçar a dependência dos conselheiros em relação à equipe que ‘controla’ o controle social no distrito.

A promiscuidade entre os responsáveis pelo controle social e os gestores observada em muitos distritos nas gestões passadas caracterizou o período do secretário Antonio Alves à frente da Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI), provocando graves distorções e um afastamento das instâncias de controle social em relação às organizações representativas do legítimo movimento indígena. Esta situação ficou evidente no processo de discussão sobre a criação do Instituto Nacional de Saúde Indígena (INSI), que foi imposto pela SESAI de forma arbitrária e antiética aos Conselhos Distritais de Saúde, mesmo enfrentando uma ampla resistência contra esta tentativa de privatização da saúde indígena manifesta pelo movimento indígena em todo o país.

O Ministério Público Federal (MPF) no Dia D da Saúde Indígena realizado em abril de 2016 afirmou que “o regular funcionamento do controle social, por meio de todos os órgãos e instrumentos previstos, é de fundamental importância para a qualidade do serviço público de saúde; são os órgãos de controle social que podem efetivamente acompanhar os problemas mais frequentes no serviço, além de possíveis ilegalidades e desvios de recursos públicos; a efetividade do controle social viabiliza que o próprio Ministério Público seja acionado quando identificadas ilegalidades, e a capilaridade dos conselhos faz com que um maior número de irregularidades chegue ao seu conhecimento e, com isso, possa ele tomar as medidas legais, seja para sanar a irregularidade, seja para a punição dos responsáveis”.

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