O município do Rio tem a maior taxa de mortalidade por tuberculose do país: mais de uma pessoa por dia. Para erradicar a doença é urgente urbanizar as favelas, explicam estudiosos
por Anne Vigna, A Pública
Eis um recorde que a Cidade Maravilhosa se empenha em esconder: além de ter uma taxa de incidência de tuberculose bem acima da média nacional (82 casos por 100 mil habitantes), a taxa de mortalidade pela doença é a mais alta entre todas as capitais do país – 6,9 mortes por 100 mil habitantes, o dobro da média das capitais brasileiras. Foram 440 pessoas mortas na capital e 840 em todo o estado pela doença em 2014, segundo os dados mais recentes publicados pelo Ministério da Saúde.
A taxa nacional de incidência de tuberculose tem baixado desde 2001. Foi de 41 por 100 mil habitantes para 33,8 em 2014. Mas no Rio os índices continuam muito altos, em especial entre as populações marginalizadas: habitantes de favelas, moradores de rua e a população carcerária. O estado tem a segunda maior incidência do país, atrás apenas do Acre.
A doença, que atingiu seu auge na Europa entre os séculos 18 e 19, é um grave problema de saúde pública ainda hoje no Rio, embora tenha cura – e o tratamento seja ministrado gratuitamente pelo SUS. Segundo Ana Alice Bevilaqua, gerente de Pneumologia Sanitária do Programa Estadual de Luta Contra a Tuberculose da Secretaria Estadual de Saúde, houve “14 mil casos de tuberculose no ano passado no estado, metade no município do Rio”.
A decadente rede pública na capital é o grande problema identificado pela maioria dos agentes de saúde e também pela maior especialista do país, Margareth Pretti Dalcolmo, pneumologista pesquisadora da Fiocruz e membro do Comitê Assessor em Tuberculose do Ministério da Saúde. “No SUS, o diagnóstico pode ser feito em 24 horas, e a decisão médica de como tratar deveria encontrar retaguarda no sistema. Porém existem hoje pouquíssimos leitos para os que precisam sair das suas casas, com a deterioração da rede pública hospitalar. É quase impossível conseguir internar um paciente por tuberculose. Ainda que o SUS preveja na sua tabela o pagamento da internação desse paciente, isso não é feito”, diz.
Doença de pobre
Procurada insistentemente pela Pública, a Secretaria Municipal de Saúde recusou-se a divulgar quaisquer dados referentes à doença na cidade e nas favelas “para não gerar pânico”, segundo Jorge Eduardo Pio, gerente da Área Técnica de Doenças Pulmonares Prevalentes.
Porém, um estudo acadêmico feito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) em parceria com a Universidade Johns Hopkins, nos Estados Unidos, estima que nas favelas cariocas a taxa de incidência seja de 300 por 100 mil habitantes, mais de quatro vezes a média municipal. “É um índice que corresponde ao de países africanos subsaarianos”, reconhece Jorge Pio.
Sônia Regina Gonçalves da Silva, conselheira municipal da saúde e habitante do morro do Urubu, luta desde os 20 anos para que se entendam melhor as dificuldades dos moradores das favelas em enfrentar essa doença. “Quando tem um caso de tuberculose, os moradores se calam. Sabe por quê? Porque quem tem tuberculose é pobre, mora mal e se alimenta mal. É muito estigma para as pessoas aguentarem. Quando um morador tem esse diagnóstico, que ainda chega tarde, ele já está com sua autoestima lá embaixo. É mais fácil dizer ‘sou portador de aids’, sabe por quê? Se tem aids, você é pegador. Já tuberculose, você é pobre mesmo.”
O índice de abandono do tratamento é de 14% e o índice de cura, de menos de 85% no estado do Rio. “Segundo a OMS, o índice de abandono teria que ser de menos de 5% e de cura, de mais de 85%. Isso mostra que temos que dar uma melhor atenção médica ainda, mas também ir além da saúde e abordar o problema social”, explica Ana Alice Bevilaqua.
A tuberculose se desenvolve em lugares com populações muito densas, em particular quando as casas não recebem luz ou ventilação adequada. É o caso do Rio, onde a densidade reflete a desigualdade social. Enquanto a média da cidade é de 5 mil habitantes por quilômetro quadrado, na Rocinha é de 45 mil. Ou seja: melhorar as condições de habitações nas favelas é essencial para mudar o índice de tuberculose, segundo especialistas.
Situada na zona oeste, a favela da Rocinha, uma das maiores da América Latina, conseguiu reduzir a doença em uma pequena parte do seu território, no antigo “beco da tuberculose”, que passou a se chamar “Rua 4” com os investimentos do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento, do governo federal). Ruas foram abertas e reformaram-se apartamentos para receberem mais sol e ventilação.
“Foi uma mudança total”, diz Rita Smith, que nasceu na Rocinha e viu sua mãe morrer de tuberculose. Ela mesma contraiu a doença, mas sobreviveu e tornou-se agente comunitária de saúde. Em cada uma das Clínicas da Família que hoje atendem 50% da cidade, há seis agentes comunitários, que são da própria comunidade e vão visitar as pessoas nas suas casas.
Rita foi durante 20 anos agente na Rocinha. “Claro que o agente tem um papel fundamental: o nosso trabalho não é só levar o medicamento, é conversar, é motivar as pessoas porque é uma luta cotidiana”. Depois da implementação do esquema, os índices de cura melhoraram na Rocinha. Segundo a dissertação de mestrado da atual coordenadora de Doenças Transmissíveis da Secretaria Municipal de Saúde, Patrícia Durovni, a taxa de mortalidade caiu de 11,8/100.000 em 2009 para 7,2 em 2012, embora as infecções tenham aumentado.
Apesar das melhorias, Solange Carvalho afirma que “a mudança é ainda insuficiente”. A arquiteta é uma das fundadoras do escritório ArquiTraço, que desde 1994 vem participando de projetos urbanísticos para favelas. Foi o escritório que ficou responsável pelo Plano Urbanístico para Rocinha em 2006 – entre outras mudanças, fez o alargamento da Rua 4. “Os projetos de urbanização da prefeitura do Rio para as favelas não tinham verba para fazer melhoramento habitacional. Consistiam em abrir ruas, levar serviços e saneamento, criar praças e equipamentos. Mas, nas favelas muito densas, não adianta se não mexer nas construções e não desadensar, porque isso gera problema de saúde. Aqui não se faz desadensamento. É um problema em que ninguém quer mexer.” A arquiteta questiona a regularização de casas que não atendem os critérios de salubridade, como é o caso da pequena e densa favela Vila Canoas, em São Conrado, regularizada pela prefeitura. Ela aponta exemplos de danos para a saúde por causa de infiltração da água, pouca ou nenhuma iluminação, ausência de ventilação e espaço.
Em 2011, a prefeitura do Rio lançou um ambicioso programa de reurbanização, o Morar Carioca. Feito mediante um convênio com o braço fluminense do Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB-RJ), previa realizar melhoramentos habitacionais ligados à saúde. Porém, pouco se concretizou, e o IAB desistiu do programa em 2013. Hoje em dia, essas melhorias não são conduzidas por nenhum órgão público. Como não há leitos suficientes e em muitos casos a doença não é identificada, é comum uma pessoa doente na favela conviver durante dias com outras em um mesmo cômodo, sem ventilação, espalhando a tuberculose, segundo agentes comunitários e médicos entrevistados pela Pública.
Um exemplo ficou claro para a reportagem ao visitar o Centro de Saúde Escola Germano Sinval Faria, da Fiocruz, em Manguinhos, onde não faltam médicos. Ali também há uma assistente social que ajuda a tramitar o mais rapidamente possível a ajuda social aos pacientes de tuberculose: vale-transporte, INSS, vale social. Mas, mesmo em condições muito boas de cuidado médico, o número de casos em Manguinhos triplicou em sete anos: foram 65 em 2006 contra 183 em 2013.
“A gente sabe que ainda tem muitos casos não identificados e outros que procuram atendimento fora da comunidade porque temem o preconceito de vizinhos. Sem uma política social, os índices não vão melhorar”, pensa Celina Boga, médica do Centro de Saúde da Fiocruz.
De acordo com urbanistas e arquitetos, as ações de urbanização e melhorias das favelas estão praticamente paradas há dois anos. E para o presidente do IAB-RJ, Pedro da Luz Moreira, é difícil não relacionar essa “pausa” com a reta final dos projetos olímpicos: “No meu entendimento, deixaram as favelas para lá. O prefeito nos chamou em 2011 para fazer um concurso público. Ele declarou que gostaria de ter para 2020 todas as favelas urbanizadas. Selecionamos 40 equipes de arquitetos, sociólogos etc., mas a prefeitura só contratou 11 equipes. Nós não queríamos uma atuação pontual porque senão você supervaloriza uma favela que está aqui e subvaloriza outra que está lá. Perde a confiança da população, faz remoções brancas. Por isso, O IAB saiu em 2013, e hoje estamos sem programa de urbanização, o que era uma constante desde o Favela Bairro, em 2007.”
Segundo o Censo de 2010, existem 763 favelas no Rio, onde moram 1,4 milhão de pessoas. A Secretaria Municipal de Habitação (SMH) garante que o programa Morar Carioca tem beneficiado desde 2010 cera de 70 mil domicílios em 69 comunidades, em um investimento de R$ 2,1 bilhões da prefeitura, governo federal e do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Porém, a SMH reconheceu que “não existem projetos de desadensamento nem de melhoramento habitacional”. Questionado pela Pública, o prefeito Eduardo Paes garantiu que o Morar Carioca está de vento em popa. “Estamos trabalhando em várias comunidades. Há duas semanas, estava na Barreira do Vasco inaugurando uma obra do Morar Carioca, mas não tinha nenhum jornalista.”
Quando há jornalistas, a prefeitura empenha-se em bloquear o acesso aos fatos, o que a Secretaria Municipal da Saúde fez em diversos momentos durante esta reportagem. Alguns entrevistados afirmaram à Pública ter dados sobre incidência de tuberculose, mas depois foram proibidos de repassá-los à repórter. Jorge Pio, gerente do programa Tuberculose da secretaria, aceitou pelo telefone passar os dados, mas afirmou depois: “Recebi instruções para não divulgar”.
Além de não entregar quaisquer dados, a secretaria não permitiu à repórter visitar um posto de saúde comum. Permitiu apenas uma visita à clínica da saúde em Manguinhos, que tem um Consultório na Rua. Mas, depois de uma entrevista na qual uma enfermeira criticou o governo, a encarregada de comunicação da secretaria decidiu cancelar tudo. Não foi possível acompanhar o trabalho na rua nem entrevistar médicos ou a administração da clínica.
Os especialistas insistem na importância de comunicar mais sobre a tuberculose para combater o preconceito que a rodeia. O Ministério da Saúde faz campanhas com esse objetivo, mas parece que a Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro, responsável pela cidade com maior taxa de mortalidade de tuberculose do país, vai no sentido contrário.
É ainda pior para a população carcerária e moradores de rua
Não bastasse a postura opaca da prefeitura, os especialistas afirmam que existe uma “subnotificação” do número de casos dentro do Sinan, sistema federal que contabiliza dados de saúde. Por exemplo, até 2014 se estimava que, para a população encarcerada na cidade do Rio, a taxa de incidência fosse de 775 por 100 mil, o que representa nove vezes mais risco do que estando em liberdade. No entanto, em 2015 uma equipe do Ministério da Saúde fez um “rastreamento em massa” no Instituto Penal Benjamin de Moraes Filho, na zona oeste da cidade, durante duas semanas. O resultado foi muito superior ao estimado: 1.242 por 100 mil, o equivalente a 16 vezes mais chances de adoecer do que na população geral.
Segundo Yvone Pessanha, coordenadora de Gestão em Saúde Penitenciária, os dados que os funcionários enviam ao Sinan nem sempre são registrados pela prefeitura. “Nós notificamos os casos no Sinan Rio. E no município alguém tem que passar para o Sinan net, em nível federal. No passado, vários casos já digitalizados não tinham sido repassados para Sinan net”, admitiu em entrevista à Pública.
Essa população enfrenta também a deterioração da rede hospitalar. “Até 2004, tínhamos cinco hospitais gerais, dois psiquiátricos, um sanatório e o triplo dos funcionários da saúde. O Rio era uma referência nacional. Agora temos dois hospitais psiquiátricos, uma UPA [Unidade de Pronto Atendimento] e um sanatório – e muito mais presos”, explica Lúcia Lutz, médica há 25 anos e presidente da Associação dos Servidores das Áreas de Saúde e Assistência Penitenciária do Estado do Rio de Janeiro. Hoje, o Rio tem 47 mil presos para 27 mil vagas, uma densidade que evidentemente favorece a tuberculose em lugares fechados.
Todas as unidades prisionais têm ambulatórios, mas “a maioria não tem médicos, só enfermeiros. O nosso grande problema é a falta de médicos. Em 2013, fizemos uma contratação para 43 vagas. Nenhum médico se candidatou, só três psiquiatras. O salário teria que ser muito atrativo para eles virem trabalhar aqui”, explica Yvonne. Quando não se diagnostica rapidamente a tuberculose, seu tratamento é mais difícil e o doente segue contaminando outros companheiros de cela, visitantes e carcereiros. A maior aposta é na comunicação para que os presos relatem novos casos. “Se a pessoa tosse muito, fica na cama e perde peso, geralmente é tuberculose. Mas as pessoas não sabem, ou não querem dizer para não ficar isoladas”, acrescenta Lúcia.
Na rua
Segundo o Ministério da Saúde, para a população que vive na rua a possibilidade de contrair a doença é 44 vezes maior do que para quem tem casa. Porém, não existem dados precisos sobre essa população no Rio.
A cidade tem seis Consultórios na Rua dedicados a essa população desde 2011. Em Manguinhos, na zona norte da cidade, o consultório é composto de uma equipe de dez pessoas, entre agentes comunitários, psicóloga, dentista e enfermeiros, para atender 1.100 moradores de rua. “Atualmente temos 44 pessoas tratadas por tuberculose”, explica Marcelo Soares, enfermeiro do consultório. “Todos os dias vamos para a rua atrás delas, levar a medicação para ser tomada ou para coletar exame de escarro. A gente deixa a medicação com eles para uma semana. Mas temos que ir diariamente também porque de repente eles perdem, ou roubaram a mochila deles, ou a Guarda Municipal joga fora a medicação. Isso é uma realidade também.”
Os Consultórios na Rua tinham um convênio com os restaurantes estaduais populares, nos quais os doentes por tuberculose tinham direito a três refeições por dia, mas essa parceria acabou há três anos. “Hoje, nós temos quatro refeições dadas pelo restaurante da Fiocruz por dia para repartir entre os 40 doentes. A gente prioriza os que mais precisam, os que não têm nenhuma rede de apoio para comer. Outro grande problema é a falta de vagas nos abrigos. Uma pessoa com tuberculose teria que sair da rua para se curar. Mas tem muito poucas vagas e em geral eles não querem ir nos abrigos porque estão em condições muito ruins. E nos hospitais não se conseguem leitos”, conclui Soares.
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Imagem destacada: Favela da Rocinha (Foto: Igor Fernando)