Onde está a Inglaterra: no Brexit ou no brejo?

Este universo está mais trincado do que nunca, e pode se desmanchar

Por Flávio Aguiar, de Berlim – Blog da Boitempo

Reino Unido, Grã-Bretanha e Inglaterra não são sinônimos. O Reino Unido é formado por quatro nações, entre elas a Inglaterra, além do País de Gales, da Escócia e da Irlanda do Norte. A Grã-Bretanha é uma ilha que abriga três destes países, sendo que a Escócia se distribui também por outras ilhas e a Irlanda do Norte fica numa ilha à parte. Finalmente, a Inglaterra sedia a capital do Reino Unido, Londres. E foi eliminada da Eurocopa 2016 pela pequena e heroica Islândia. O País de Gales continua na competição e joga contra a Bélgica na sexta-feira. A Irlanda do Norte foi eliminada antes e a Escócia sequer entrou na primeira fase, a dos grupos.

Este universo está mais trincado do que nunca, e pode se desmanchar. A Escócia, cujo eleitorado votou majoritariamente por permanecer na União Europeia, se debate entre dois caminhos: vetar a saída através de um voto de seu Parlamento, o que é possível mas problemático, ou realizar novo referendo sobre sua independência em relação ao Reino Unido. Na Irlanda do Norte fala-se em deixar o Reino Unido e unir-se à República da Irlanda, com que comparte a ilha do mesmo nome, bandeira que nunca desapareceu desde 1921, ano em que sua existência foi oficializada.

Mas há outras frinchas. Os jovens votaram majoritariamente por permanecer na U. E. Os mais velhos, contra. A região metropolitana de Londres votou pela permanência, o interior da Inglaterra, contra. À votação da quinta-feira, 23/06, seguiram-se dias de alta voltagem na Inglaterra: aumentaram vertiginosamente os incidentes de violência étnica contra minorias, a ponto do primeiro-ministro David Cameron ter feito um pronunciamento dizendo que vai reprimir tais manifestações. Uma das minorias mais atingidas foi a dos poloneses. Os imigrantes do antigo Leste da Europa são vistos como potencialmente “ameaçadores” tanto quanto os refugiados que chegam da Síria, do Norte da África ou de outros pontos do Oriente Médio. Assim como outros países da Europa “desenvolvida” (depois de 2007/2008, surgiu uma “Europa subdesenvolvida”…), a Inglaterra vive um dilema: não funciona sem o concurso dos imigrantes ou dos refugiados, e ao mesmo tempo convive com a xenofobia que a presença destes desperta.

Terremotos sacudiram o establishment político do Reino Unido, o inglês em particular. O primeiro-ministro David Cameron, que está enfrentando uma dura reunião de cúpula com outros mandatários europeus, em Bruxelas, nesta terça-feira, 28/06, anunciou que vai renunciar ao cargo e à liderança do Partido Conservador. O líder do Partido Trabalhista, de sua ala esquerda, Jeremy Corbyn, está ameaçado de perder o posto por um possível voto de desconfiança de seus pares, que o acusam de ter aderido tardia e mornamente `a campanha da permanência. É verdade que parte do establishment tradicional do Labour não aceita o esquerdismo de Corbyn, e quer se livrar dele de qualquer maneira.

Boris Johnson, ex-prefeito de Londres, quer disputar o cargo de Cameron pela extrema-direita, enquanto Sadiq Khan, o atual prefeito, muçulmano, nascido na Inglaterra de uma família paquistanesa, articula com Anna Hidalgo, prefeita de Paris, nascida na Andaluzia, uma maneira de manter a união entre as duas cidades de modo a driblar o Brexit de alguma forma.

Desta confusão, que até agora só não abala a família real, que vai continuar onde sempre esteve, isto é, no Palácio de Buckingham, emerge uma verdade cristalina: a União Europeia deixou de ser um ideal, para tornar-se a ponta de um icebergs traumático. Ambas as campanhas, a do “Ficar” e a do “Sair”, basearam-se muito mais do medo do que em proposições positivas. Embora houvesse de tudo no “Sair”, até gente de extrema-esquerda, sua nota hegemônica foi dada pela extrema-direita do Partido pela Independência do Reino Unido (sigla UKIP, em inglês), liderado por Nigel Farage, e seu discurso xenófobo sobre a ameaça que imigrantes e refugiados representam aos empregos dos ingleses. Do outro lado, do “Ficar”, predominou o discurso com forte marca da City londrina (como se denomina o círculo financista da capital), de que “os negócios” seriam prejudicados, as exportações e importações cairiam, e assim muitos empregos poderiam ser pulverizados. Resultado: dominou o medo maior, mais imediato e palpável empalmado pela xenofobia. Não é a toa que os mais entusiastas do resultado final, fora do R. U., são Marine Le Pen, Gert Wilders, Donald Trump e agora este ridículo movimento separatista em S. Paulo (além do texano dos EUA), corolário do cômico porém trágico golpe de estado que nos assola a vida e azucrina a paciência e o bom senso.

A União Europeia deixou de ser, faz tempo, um ideal de paz em um continente historicamente devastado por guerras, sendo que algumas das últimas tiveram proporções mundiais e/ou foram marcadas por genocídios. Passou a ser um condomínio dirigido hegemonicamente em função do mundo estratificado das finanças e dos bancos, com sede em Frankfurt e Bruxelas (e um puxadinho em Stuttgart, sede do Parlamento Europeu), um mundo muito distante dos eleitores de primeiro grau. Os ideais neoliberais dominam corações e mentes neste eixo, que inclui um braço político que liga(va?), pela ordem, Berlim, Londres e Paris. Este mundo estratificado e este braço político executaram, por exemplo, a verdadeira castração do governo grego, tão logo este passou para o terreno da oposição aberta ao ideário hegemônico entre os artífices desta política, o que inclui a formação nas escolas de Economia.

Mas tão estratificado tornou-se este mundo em função de sua própria imagem projetada no espelho, que ninguém – ninguém mesmo – sequer sonhava que pudesse ocorrer o que acabou ocorrendo: a vitória do Brexit. Mutatis mutandis, a cena nos lembra, ainda que a distância seja enorme e os propósitos políticos sejam muito diferentes, o que ocorreu na Alemanha entre 1929 e 1933. Se é verdade que o que semeou Hitler e seu Partido Nazista foram as agruras inflacionárias dos anos 20 e a humilhação do país depois do Tratado de Versalhes, o que os adubou e os levou ao poder foram as novas agruras dos planos de austeridade impostos por Heinrich Brünning e seu sucessor Von Papst, que começaram a demolir o edifício da seguridade social alemã, edificado desde os tempos do conservador Bismarck. Foi fácil, então, fazer o ódio convergir para os “inimigos”: os comunistas, depois os social-democratas, depois os liberais e sempre… os judeus e outras “inferioridades raciais”.

Será possível resgatar a União Europeia deste redemoinho em que ela ameaça naufragar? Se depender dos políticos daqueles eixos e braços estratificados, não. Pois a cada golpe demolidor que a realidade lhes dá nas ideias engessadas, mais eles a elas se aferram, apontando como causas de eventuais fracassos o “fato” delas não terem sido aplicadas à risca. Só o que poderá salvar a U. E. de sua tomada de assalto por forças de extrema-direita será o desenvolvimento de uma solidariedade internacional “por baixo”. É algo muito difícil, pois vivemos um momento em que os individualismos progridem, os sindicatos estão enfraquecidos em escala mundial, há alterações na composição do mercado de trabalho, com predominância do setor de serviços, e outras mudanças de teor cultural ainda imponderável, de que a prática do selfie e a prisão aos smartphones, iPhones, etc. são apenas também a ponta de um icebergs. Mas difícil não quer dizer impossível. Como diz o mestre Antonio Candido, “devemos ser pessimistas na análise, mas optimistas (sic) na ação”.

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*Nasceu em Porto Alegre (RS), em 1947, e reside atualmente na Alemanha, onde atua como correspondente para publicações brasileiras. Pesquisador e professor de Literatura Brasileira da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, tem mais de trinta livros de crítica literária, ficção e poesia publicados.