Quando a segurança jurídica cria insegurança de fato, por Jacques Távora Alfonsin

No Estado de Direito

Os problemas do nosso modelo de Estado democrático de direito

As críticas direcionadas ao nosso modelo de Estado democrático de direito, muito resumidamente, acusam-no de não ter-se libertado de um dos mais graves defeitos do modelo liberal de Estado. A preocupação principal deste é a de moldar um Estado de polícia, prioritariamente, um Estado no qual a chamada segurança jurídica se reflita em segurança de fato, mas orientada, de preferência, a garantir livre iniciativa econômica dos negócios, dos contratos, da circulação das mercadorias e do crédito, reconhecendo no direito de propriedade enfim, uma das condições principais da liberdade.

A defesa desse modelo desconsidera ou é indiferente ao poder de concentração e de abuso que a propriedade tem, dois dos seus efeitos perversos perpassando a realidade histórica: exclusão social de multidões abandonadas à pobreza e à miséria, poder de mando sobre o Estado. Em vez deste conseguir dominá-lo ele é que o domina, inspirando todo o tipo de opressão, guerras, corrupção política, fraudes, enganos, divórcio da lei entre suas promessas e o cumprimento delas.

Globalizar esse domínio, investir na reprodução do dinheiro em Bolsas em vez de produzir o necessário à vida, passou a ser o coração desse modelo, impondo aos Estados garantir a segurança da sua perpetuação. A terra e a gente da terra testemunham hoje o seu extraordinário sucesso rentista e o seu trágico fracasso humano. Morrem refugiados sem terra e morre a própria terra exaurida pela sua transformação em mercadoria e depósito do desperdício sobrante da sua depredação.

A armadilha

O modelo de Estado social, com todas as suas variantes, tentou conter esse enterro da vida e da moral, mas também ele inadvertido (!?) da armadilha presente numa evidente contradição das políticas que adotou: ao assumir a defesa das vítimas do outro modelo, pretendeu libertá-las utilizando os mesmos meios desse, o que passou à história como capitalismo de Estado.

Mesmo sem querer, ofereceu ao outro modelo um reforço ideológico de sustentação cínica, ou seja, o de qualquer abuso da liberdade de iniciativa econômica poder agir como age porque a obrigação de fiscalizar e reprimir essa má conduta é do Estado e esse, capturado por ela, jamais consegue fazê-lo de modo eficiente.

A chamada função social da propriedade, então, passa a figurar na lei, não para ser respeitada como obrigação inerente a esse direito, mas sim como poderosa aparência de legitimidade para todos os efeitos antissociais de que ele tem poder de produzir e reproduzir. A responsabilidade do Estado para corrigir essas distorções, porém, ao figurar na lei, fornece a segurança necessária para a reprodução do modelo que ele próprio, na letra do ordenamento jurídico, deveria banir. Assim, a insegurança das pessoas pobres e miseráveis, por seu estado de carência e até indigência, pode ser atribuída a elas mesmas, transferida pela segurança jurídica oferecida às causas dessa injustiça.

Os únicos proprietários

Por essa razão, embora o dano provocado em todo o povo pelo descumprimento da função social de um latifúndio – tanto por privar a terra de alimentar ou abrigar multidões pobres, quanto matá-la com venenos, poluindo todo o meio ambiente ou descumprindo obrigações trabalhistas – seja muito maior do que uma episódica ocupação desse espaço por gente vítima do descumprimento da função social da propriedade, a ação do Estado na restituição violenta da terra a quem a maltrata não pode ser comparada com a quase indiferença que ele tem em direcionar verbas orçamentárias para os seus mecanismos legais de fiscalização e repressão dos péssimos resultados que o direito de propriedade pratica sobre terra.

Sinais visíveis de preferência por outras prioridades, a respeito, estão sendo dados pelas primeiras medidas administrativas que o governo interino da República toma praticamente todos os dias. Depois de ter reduzido um Ministério encarregado de executar políticas públicas de defesa dos direitos humanos a uma secretaria, transferiu toda a possibilidade de implementação das destinadas ao desenvolvimento agrário à Casa Civil.
Será que alguém acredita que o atual ministro da Casa Civil, por tudo o que se conhece do seu passado político, estará interessado em defender a execução urgente e necessária da reforma agrária, por exemplo?

Não dá para se retirar daí outra conclusão. Embora o medo da insegurança de quem mal sobrevive por nada ter seja incomparavelmente maior e mais doloroso do que o medo de quem tem muito mais do que necessita – mas blinda até o seu automóvel pelo temor de ser assaltado – o nosso ordenamento jurídico, refletido em política do Poder Público, sempre pendeu, como agora está acontecendo, tanto na sua elaboração quanto na sua aplicação, a priorizar a segurança do ultimo, uma fórmula indubitável de manter pobres e miseráveis sem acesso ao gozo efetivo dos direitos humanos fundamentais sociais.

Mesmo que Isaías tenha vivido sete séculos antes de Cristo, passados, portanto, mais de vinte e três séculos, o eco da sua voz indignada com isso ainda não chegou até nós:

“Ai de vós, que ajuntais casa a casa, e que acrescentais campo a campo, até que não haja mais lugar, e que sejais os únicos proprietários da terra. (Isaias 5, 7-8).

Pois é. Quando o grito por segurança é individual e parte de quem já é abastado todo o mundo escuta e amplia; quando é coletivo e parte de quem é pobre ninguém ouve.

Créditos: Rovena Rosa/Agência Brasil.

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