Os dez anos de Lei Maria da Penha coincidem com a etapa final do processo para deposição da presidenta Dilma Rousseff e com o início das campanhas para as eleições municipais que ocorrerão em outubro. Tendo em mente esse contexto, pergunto: tem sentido falarmos em violência política contra as mulheres no Brasil?
Por Flávia Biroli*, no Blog da Boitempo
Neste mês de agosto, a Lei Maria da Penha completa dez anos. Sancionada em 2006, a Lei 11.340 é um marco na luta das mulheres brasileiras pelo direito a uma vida sem violência. Existem limites para sua implementação e eficácia, resistências de diversos tipos, mas seus resultados começam a se tornar visíveis. Embora a taxa de homicídios de mulheres continue bastante alta, correspondendo a cerca de 5 vítimas a cada 100 mil mulheres, seu crescimento diminuiu após a aprovação da legislação. Antes de 2006, essa taxa crescia 7,6% ao ano; após a aprovação da lei, ela caiu para 2,5% ao ano1.
Um longo caminho ainda precisa, sem dúvida, ser percorrido para garantir às mulheres brasileiras uma vida sem violência. O passo principal que foi dado com a Lei Maria da Penha é o reconhecimento, pelo Estado e pela sociedade, de que a violência doméstica contra as mulheres existe, é um problema específico (não corresponde a outros tipos de violência nas suas causas, na sua forma e no que é necessário para combatê-la) e é uma questão pública, isto é, que tem relevância política e deve ser abordada politicamente, sendo objeto de políticas de Estado.
Os dez anos de Lei Maria da Penha coincidem com a etapa final do processo para deposição da presidenta Dilma Rousseff e com o início das campanhas para as eleições municipais que ocorrerão em outubro.
Tendo em mente esse contexto, pergunto: tem sentido falarmos em violência política contra as mulheres no Brasil? Nos debates correntes, assim como nas publicações acadêmicas e feministas, a noção de violência política contra as mulheres raramente tem sido mobilizada no país. Penso em duas hipóteses para explicar essa ausência. A primeira é que esse tipo de violência seja pouco relevante ou mesmo inexistente por aqui. Eu apostaria em uma segunda hipótese: a violência contra as mulheres na política brasileira está naturalizada e, por isso, não é reconhecida, explicitada e discutida. Caso ela faça sentido, esse é um tema com o qual precisamos lidar.
Assim como no caso da violência doméstica e da violência sexual, a definição da violência, sua conceituação e sua entrada no debate público, colaboram para a percepção do que ocorre – ou, melhor dizendo, para a percepção de que o que ocorre não é natural, é injusto e deveria, por isso, ser superado.
Além das camadas de silêncio que constituem historicamente as desigualdades de gênero, visões restritas do que é violência, que a reduzem a agressões físicas e assassinatos, podem impedir que se reconheça a dinâmica da violência política. A Lei Maria da Penha é, mais uma vez, um exemplo e uma orientação. O texto da Lei 11.340 define como violência doméstica e familiar contra a mulher a violência física, a violência psicológica, a violência sexual, a violência patrimonial e a violência moral. Reconhece, assim, que o escopo da violência é não apenas mais amplo do que as agressões físicas, mas também mais complexo e multifacetado.
A literatura acadêmica recente que trata da violência política contra as mulheres na América Latina tem definido essa violência em termos de violência física, mas também sexual, psicológica, simbólica e econômica2. Essa tipologia engloba agressões, ameaças, diferentes tipos de assédio, estigmatização, exposição da vida sexual e afetiva, restrições à atuação e à voz das mulheres, tratamento desigual por parte de partidos e outros atores e organizações no que diz respeito a recursos econômicos para campanha política, entre outras formas de violência. O diagnóstico é de que essa violência é uma forma de reação ao aumento da participação das mulheres na política – ou, adiciono, a uma participação mais qualificada e mais efetiva.
A violência que incide sobre as mulheres que ousam ultrapassar as barreiras convencionais e atuar na política – tanto na política institucional quanto no ativismo – apresenta-se sob diferentes formas, que, no entanto, sobrepõem-se e convergem nos seus objetivos, que são o de constranger a atuação política das mulheres e deslegitimar sua atuação no espaço convencionalmente masculino da política.
A Bolívia foi o primeiro país a aprovar legislação específica para combater a violência política e o assédio contra mulheres. A Lei 243 (“Ley contra el acoso y violencia política hacia las mujeres”) foi aprovada em maio de 2012 e define como crimes o assédio e a violência política contra as mulheres. A Ley 348 (“Ley integral para garantizar a las mujeres una vida libre de violência”), aprovada em 2013, é mais abrangente, mas menciona como categoria a violência política contra as mulheres remetendo à lei 243, que acabo de mencionar.
Também no México, a “violência política de gênero” foi tipificada na reforma da legislação referente à violência contra as mulheres e está presente na “Ley General de Acceso de las Mujeres a una Vida Libre de Violencia” e no “Código Federal de Instituciones y Procedimientos Electorales”, aprovados no Senado daquele país em 2013.
Há menos de um mês foi a vez do Peru, que no dia 26 de julho aprovou o “Plan Nacional contra la Violencia de Género” (Decreto n. 8, 2016), que contempla quatro tipos de violência (física, psicológica, sexual e econômica ou patrimonial) e define 16 modalidades de violência, entre as quais está o “assédio político”. No decreto, essa modalidade corresponde a “qualquer ação, conduta ou omissão entre outros, baseada em seu gênero, de forma individual ou grupal, que tenha como objeto ou por resultado menosprezar, anular, impedir, obstaculizar ou restringir seus direitos políticos, contrariando o direito das mulheres a uma vida livre de violência e o direito das mulheres a participar nos assuntos políticos e públicos em condições de igualdade com os homens”.
Mais uma vez, por que não temos avançado nessa direção no Brasil? Seríamos uma exceção na América Latina e por isso esse não seria um tema importante para nós? Por outro lado, se não somos, como podemos definir a violência política contra mulheres levando em conta as especificidades de nosso contexto sociopolítico? Parece-me que faz sentido partir das leis já aprovadas em outros países latino-americanos, mas também dos indícios que temos de como vem se dando a dinâmica da violência política no Brasil. Mulheres políticas, que a vivenciam, também poderiam nos ajudar a perceber melhor como ela se dá no caso brasileiro.
Em um texto publicado no dia 4 de maio de 2016 no espaço #AgoraÉQueSãoElas, do Blog da Folha de S. Paulo, a deputada federal Jandira Feghali chamou de “violência política” a exclusão deliberada da temática da violência sexual da então recém-criada Comissão de Defesa dos Direitos da Mulheres. A sessão em que a Comissão foi aprovada, em 27 de abril, mostrou mais do que o objetivo claro do então presidente da Câmara, Eduardo Cunha, e de seus aliados de esvaziar a pauta dos direitos das mulheres na casa e manter alguns de seus tópicos – como o direito ao aborto – sob o controle dos conservadores. Também expôs claramente a tensão entre as mulheres políticas identificadas com a agenda dos direitos das mulheres e os homens políticos que procuravam não apenas ter controle sobre essa agenda, mas calá-las e deslegitimá-las. Foi naquela sessão que um deputado católico afirmou que “mulheres de verdade” só queriam ser cuidadas e amadas, apenas as feministas desejariam ser empoderadas.
O episódio mostra que as reações aos direitos das mulheres, às mulheres na política (genericamente) e às mulheres deputadas identificadas com a agenda dos direitos das mulheres andam juntas no contexto brasileiro atual.
Em entrevistas concedidas nos últimos meses, a presidenta Dilma Rousseff tem falado no conteúdo sexista do golpe que a afastou da Presidência. Registros que coletei na mídia impressa e na internet mostram que no processo político recente vários limites foram transpostos: os estereótipos mais extremos, que pareciam ultrapassados ao menos nos jornais e revistas brasileiros3, tiveram centralidade nos ataques e nos discursos de deslegitimação da presidenta. Dois conjuntos chamam mais a atenção: aqueles com conteúdo sexual violento e aqueles que mobilizaram a imagem das mulheres como desequilibradas, pouco sensatas e incapazes de dar conta das pressões que são parte da política. Mais uma vez, trata-se de ataques que são, ao mesmo tempo, desfechados contra as mulheres em geral (contra a ideia de que mulheres são competentes para a política) e contra mulheres específicas, nesse caso uma mulher em particular, a presidenta eleita do país.
Entre os episódios mais visíveis de ataques abertos a mulheres na política está também a agressão sofrida pela deputada Maria do Rosário em 2014, impetrada por um deputado que vem construindo sua imagem pela expressão do discurso de ódio e pela rejeição aos direitos humanos. No dia 21 de junho, o Supremo Tribunal Federal aceitou a denúncia da Procuradoria Geral da República contra o deputado, por injúria e incitação ao estupro. Vale observar que a violência sexual compromete a integridade física e psíquica das mulheres e, com isso, funciona como constrangimento a sua presença na esfera pública. Ao colocar as mulheres na posição de alvos dessa violência, a sociedade lhes dá um lugar (o da domesticidade, o do recato, que obviamente figuram como portos seguros sem o serem de fato), enquanto lhes retira possibilidades. Nesse caso específico, o recado é voltado às mulheres na política, embora se dirija a uma mulher específica: como mulher, você é alvo dessa violência que eu posso escolher impetrar-lhe ou não.
Esse caso permite também levantar como questão relevante o discurso de ódio que tem como alvo as mulheres na política. Também aqui, temos uma agenda que se coloca como desafio. Liberdade de expressão e discurso de ódio não se confundem. O primeiro tem sido parte da dinâmica de violência política contra as mulheres no Brasil. Procura anular sua condição de pares, de iguais na esfera pública, e, sobretudo, incita o ódio de forma que justifica e naturaliza agressões.
Outros casos e formas de agressão certamente viriam à tona em uma pesquisa mais sistemática com mulheres políticas e ativistas de direitos humanos no Brasil. Entre as últimas, muitas seguem, sobretudo no norte do país, ameaçadas de morte por manterem sua luta e denunciarem a violência e o abuso. Com a aproximação das eleições municipais e levando em conta o contexto atual, precisamos ter nossos olhos abertos para essa forma de violência, para que possa ser denunciada e desnaturalizada.
As investidas contra os direitos das mulheres no contexto atual também podem ser, entendo, categorizadas como violência política contra as mulheres. A censura ao debate sobre gênero nas escolas e a exclusão da “perspectiva de gênero” das políticas públicas correspondem à cumplicidade do Estado com as desigualdades e com outras formas de violência que fazem parte do cotidiano das mulheres na sociedade brasileira. Trata-se de políticas que afirmam os papeis convencionais de gênero e, com isso, um lugar de menor participação para as mulheres na vida pública. São, assim, antagônicas aos direitos das mulheres de participar igualmente da sociedade em que vivem.
Políticas e ativistas conseguiram colocar a violência contra as mulheres como tópico de primeira ordem no Brasil nas últimas décadas, em um esforço que culminou na Lei Maria da Penha, que agora faz dez anos. Além de seguirmos na luta pela efetivação dessa legislação, parece-me que está na hora de reconhecermos as formas atuais da violência política contra as mulheres, que inibe sua participação, constrange e repele as mulheres que atuam na política. Para isso, é preciso desnaturalizá-la, só assim poderemos vê-la, entendê-la, discuti-la.
*Flávia Biroli é professora do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília, onde edita a Revista Brasileira de Ciência Política e coordena o Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades – Demodê
NOTAS
1 Dados do Mapa da violência: homicídios de mulheres no Brasil, de 2015 [http://www.mapadaviolencia.org.br/mapa2015_mulheres.php].
2 Ver “Gender and political violence in Latin America”, de Mona Lena Krook e Juliana Restrepo Sanin (Política y gobierno, vol. 23, n. 1, 2016); pp. 125-157.
3 É a posição que assumo, juntamente com Luis Felipe Miguel, em livro que publicamos sobre mulheres, política e mídia há poucos anos (Caleidoscópio Convexo: mulheres, política e mídia, Editora Unesp, 2011).