A mídia, a crise e o golpe

Por Flávia Biroli – Blog da Boitempo

Há sempre alguma aleatoriedade na definição de quando começa uma crise. Podemos ver o início da crise política brasileira atual em 2013, com as manifestações de junho, se optarmos por compreender quando os conflitos políticos se tornam mais agudos a partir de sua expressão nas ruas. Também podemos recuar ao menos até 2008, situando a crise política brasileira em sua relação com a crise financeira mundial que eclodiu naquele ano, jogando luz assim sobre interesses que não se reduzem à política nacional. Olhando para a crise a partir das reações aos direitos das mulheres, uma vez que ela combina a deposição da primeira mulher a chegar à Presidência com misoginia (reação aberta aos direitos das mulheres e a sua presença na esfera pública), pode-se indicar o ano de 2009. Foi quando as reações à publicação do Plano Nacional de Direitos Humanos, o PNDH-3, permitiram um estreitamento das alianças entre setores da igreja católica e das igrejas neopentecostais na política, sobretudo na agenda dos direitos sexuais e reprodutivos. Se tomarmos 2008 e 2009 conjuntamente, temos também indícios de como foram sendo construídas as alianças entre o reacionarismo moral e os agentes que advogam pela redução dos direitos sociais e das responsabilidades do Estado, fundamentais para a realização do golpe parlamentar que depôs Dilma Rousseff.

Meu ponto é que a crise, como o golpe, tem várias camadas e se organiza em diferentes eixos. As motivações dos atores não são idênticas, seus objetivos nem sempre são coincidentes. Mas convergem na conformação de um ambiente político menos democrático e na investida contra referências – dos direitos sociais aos direitos humanos – que foram balizas para as disputas políticas ao menos desde a Constituinte de 1987-88.

Nas páginas e transmissões do jornalismo das grandes empresas, no entanto, a narrativa sobre a crise é bastante homogênea. Os temas predominantes são a corrupção e a crise econômica. A falta de sustentação e a incapacidade política de Rousseff para manter o apoio no Congresso foram apresentadas como um subtexto do segundo tema; teríamos um governo fraco para superar a crise (econômica) na direção presumida largamente, nos mesmos veículos, como a correta.

Esses temas serviram para afirmar o que estaria em jogo e para desviar os olhares de outras disputas. As implicações sociais das diferentes posições na crise não fizeram parte do roteiro, embora agora emerjam na agenda do governo Temer-PSDB que é largamente apoiada pelos mesmos veículos: redução dos percentuais de investimento do Estado em direitos fundamentais via Proposta de Emenda à Constituição (PEC 241), Reforma da Previdência, privatizações, “revisão” do SUS, Medida Provisória do Ensino Médio, mudanças nas concessões ambientais para fazer do território brasileiro algo mais palatável aos grupos estrangeiros que poderão ser titulares de terra caso a legislação seja modificada, e assim por diante.

Nos noticiários, “o mercado” aparece como sujeito e como dispositivo regulador, sem que seja relacionado a interesses determinados, dentro e fora do jogo político narrado. Em um exemplo explícito e que não foge à regra de como isso se dá, a coluna Painel da Folha de S. Paulo registrava, em 28 de setembro de 2016, sob o título “Engajamento”, que “integrantes do mercado financeiro têm auxiliado o deputado [o relator da PEC 241] na interlocução com a Câmara”. Na mesma coluna, no dia seguinte e agora sob o título “Em conjunto”, é dada a informação de que “começa no governo um movimento para priorizar a aprovação da nova Lei de Licenciamento Ambiental”, uma vez que “sem ela, investidores podem ficar reticentes em participar dos leilões das concessões”. Na coluna e nos noticiários, esse enquadramento aparece como se fosse natural porque outras lógicas e interesses são suspensos. Quem, além dos “investidores”, poderia ser considerado para se discutir lei ambiental? Quais argumentos e motivações, além dos deles, poderiam estar sobre a mesa? No caso anterior, nenhum estranhamento no fato de que “integrantes do mercado financeiro” trabalhem na costura de uma PEC que modificará a Constituição de 1988, reduzindo por 20 anos os investimentos em saúde e educação e tornando ainda mais precários os direitos sociais no Brasil?

Juntamente com a normalização da ação direta dos agentes de mercado, a corrupção permanece no centro do noticiário.

Em crises políticas anteriores, como aquela que precedeu o golpe de 1964, a centralidade da corrupção também permitiu jogar luz sobre a política de modo que desviava o olhar dos interesses em jogo. A corrupção foi, então, definida como coisa da política e colada nas costas de alguns atores. Na crise de 1954, que culminou no suicídio de Vargas, mas teria, como desfecho, de fato, o golpe de 1964, o bordão da maior parte dos jornais era o “mar de lama que corria sob o Catete”. Contra a corrupção, seriam mobilizados valores que estariam acima e à parte do jogo político: lisura, transparência, honestidade.

Na crise atual, o fluxo de informações e justificações entre o noticiário e a Operação Lava-Jato tem sido um fator central na construção do ambiente desde 2014. Do mesmo modo que “o mercado” é chamado como agente que estaria fora da política – com a ação efetiva em nome de interesses do capital normalizada, como mostrei nos exemplos retirados da coluna Painel –, desde 2014 os agentes da Lava-Jato puderam ser chamados ao noticiário como quem, de fora da política, apontariam para ela expondo sua verdadeira face. Além da seletividade que cola o fenômeno da corrupção a políticos petistas, há uma leitura seletiva dos conflitos políticos, na qual alguns atores e posições são apresentados como desinteressados.

Nas conexões entre Lava-Jato e o jornalismo feito pelas grandes empresas coloca-se também um desafio: não se trata, parece-me, de algo que possa ser compreendido lançando mão de um modelo em que um dos atores (a mídia, os juízes/promotores/agentes, determinados partidos políticos) instrumentaliza os demais. Parece ser necessário entender o conjunto de motivações e interesses em jogo e compreender sua convergência, sem pressupor que é necessário que coincidam inteiramente para que exista atuação em concerto.

O ponto mais agudo da crise, a deposição da presidenta eleita Dilma Rousseff, ganha sentido nessas camadas de discurso colocados em circulação pela mídia empresarial, tanto quando na representação mais direta do processo de impeachment, com seus ritos e seus protagonistas.

E como explicar a atuação política da mídia das grandes empresas nessa crise? Muito brevemente, elenco alguns problemas que acredito que seja importante levar em consideração:

1. Sua atuação em favor de determinados candidatos e grupos foi frustrada pelas urnas, ao menos no que se refere às eleições presidenciais recentes – 2006, 2010, 2014.

Ao menos desde a chamada “crise do mensalão”, em 2005, o jornalismo das grandes empresas aposta em discursos organizados em torno de denúncias de corrupção, com foco no Partido dos Trabalhadores. Após a frustração com o resultado das eleições presidenciais de 2014, acentua-se o roteiro que identifica no governo Dilma uma incapacidade para superar a crise econômica. Pouco a pouco, os discursos passam a ser de normalização da exceção, isto é, de justificações para a interrupção do governo eleito e/ou para a deposição de Dilma Rousseff, com pequenas diferenças entre as empresas jornalísticas nesse percurso.

Trata-se aqui da construção das fronteiras da controvérsia, da conformação do debate a partir da hegemonia ainda ativa do jornalismo empresarial.

2. Falar da mídia é falar na trinca mídia-política-capital.

Falei há pouco da frustração dos grupos empresariais de mídia com os resultados eleitorais. Se houve frustração, o que se frustrou vai além do poder de fazer valer um determinado viés na competição entre candidatos, tem a ver com o poder de fazer valer determinados interesses – políticos e econômicos, não apenas das próprias empresas de comunicação, mas de grupos empresariais que não identificaram no governo de Rousseff a capacidade (ou a vontade) de fazer valer seus interesses na forma ou no grau desejado.

Nesse quadro, tem especial importância o contexto internacional e o modo como ele toma forma nos discursos midiáticos – a crise econômica e o lugar da América Latina da perspectiva das grandes corporações; a relação entre a crise, o contexto latino-americano e as tensões entre direitos sociais e níveis de exploração do trabalho.

Trata-se aqui da incidência mais direta de grupos de interesse na esfera governamental, em busca de transformar seus interesses em decisões ou de evitar decisões que lhes seriam desfavoráveis.

3. A hegemonia do jornalismo das grandes empresas permanece, mas não sem contestação. Os padrões do antagonismo precisam ser explicados, assim como o modo como diferentes tipos de contestação incidem sobre o próprio discurso midiático.

O sistema de concessões não sofreu mudanças durante os governos do PT e a concentração da propriedade de mídia permanece como um ponto central. O investimento em publicidade também permaneceu concentrado, mas com maior diversificação. Houve investimento estatal por meio de anúncios em jornais e rádios de menor porte Brasil afora, em blogs e outros espaços de construção de discursos alternativos aos da mídia das grandes empresas. Quando houve cortes, em 2015, eles atingiram mais as grandes empresas e a chamada blogosfera foi preservada.1. O sistema de mídia se tornara, assim, um pouco mais fragmentado e menos homogêneo. Uma das medidas do governo Temer após a deposição de Rousseff foi a reorientação do investimento desses recursos: blogs e agências identificados como de esquerda ou alinhados ao PT perderam todo o recurso de publicidade estatal, reinvestido na imprensa das grandes empresas – de maio a agosto de 2016, a Folha de S. Paulo recebeu do Governo Federal 78% a mais de recursos do que no mesmo período em 2016.2

No mesmo período em que o escopo da contestação se ampliou, pela presença de espaços de construção alternativa de discursos e pela afirmação das redes sociais como ambiente de articulação e expressão política, também cresceu a presença político-midiática das igrejas, sobretudo das neopentecostais, que passariam a ter maior peso nas disputas e barganhas políticas por terem potencial para mobilizar votos entre os fiéis e contarem hoje com maior presença direta de suas lideranças no legislativo. Vale lembrar também que a internet – e, nela, as redes sociais – tem servido como base não apenas para a organização de grupos progressistas. Além da tradicional presença na mídia empresarial, os novos grupos de direita também têm se mobilizado nas redes sociais.

Nesse quadro, a hegemonia da mídia empresarial permanece. Ela foi, sem dúvida, fundamental na conformação do ambiente político da crise e do golpe. O ambiente das redes é relevante para se compreender os novos padrões dos conflitos e controvérsias. Permite articulações e recursos expressivos que incidem sobre o ambiente político, ao menos potencialmente, mas não é um universo paralelo no qual a trinca (mídia-política-capital) não incidiria. Longe disso. É esse o quadro complexo que nos desafia. Sobretudo porque o golpe continua em curso por meio de PECs, PLs, MPs, da repressão policial, do funcionamento seletivo da Justiça, da proposta de censurar professores, do controle sobre a circulação de informações.

NOTAS

1 “Governo cortou R$ 206 milhões em publicidade da TV Globo em 2015”, Blog do Fernando Rodrigues. O artigo apresenta dados divulgados pela Secretaria de Comunicação Social do Governo Federal, a Secom.

2 “Governo Temer aumenta em 78% publicidade na Folha/Uol”, DCM. O artigo sistematiza dados divulgados pela Secretaria de Comunicação Social do Governo Federal, a Secom.

*Professora do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília, onde edita a Revista Brasileira de Ciência Política e coordena o Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades – Demodê, que mantém o Blog do Demodê, onde escreve regularmente.

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