‘Falando de língua, fazendo política’: o terceiro Campeonato da Língua Paumari

Por Oiara Bonilla, da Universidade Federal Fluminense, para Combate Racismo Ambiental

Entre 13 e 15 do último mês de setembro aconteceu o Terceiro Campeonato da Língua Paumari, na aldeia Crispim, Terra Indígena Paumari do Lago Marahã, Município de Lábrea, Amazonas. Ao longo de três anos, o Campeonato se consolidou como um evento que reúne todos os Paumari da terra indígena, seus parceiros históricos e políticos, assim como povos vizinhos e convidados diversos.

O Campeonato foi idealizado em 2009 pelo professor Edilson Makokoa Paumari, que, após um período estudando fora da aldeia, voltou para a região e constatou que seus parentes estavam deixando de falar sua língua. Ele imaginou então um evento que envolvesse todas as gerações, na forma de uma competição (para chamar a atenção dos mais novos) e de um encontro divertido e alegre.

Para a competição, cada aldeia forma um time, cada time escolhe uma história que é contada ao público sem uso de termos em português. Um jurado, composto por membros (Paumari) de cada uma das aldeias, avalia a apresentação, a história e suas ilustrações, segundo quesitos pre-definidos. Outra parte da competição consiste na apresentação de um canto e de uma dança por cada um dos times que por sua vez é também avaliada pelo jurado. As histórias vencedoras devem ser futuramente transformadas em animações gráficas, faladas em Paumari e desenhadas por eles, e o material coletado utilizado para produzir material didático na língua indígena.

O evento é realizado pela Federação das Organizações e Comunidades Indígenas do Médio Purus (FOCIMP) e organizado por uma comissão composta por homens e mulheres paumari, lideranças, professores das aldeias e da cidade. Foram consideráveis as dificuldades para conseguir financiamento para a realização do projeto que, em um primeiro momento, foi apoiado pelo Museu do Índio (FUNAI), e em suas duas últimas edições pela Coordenação Regional do Médio Purus (FUNAI – Lábrea). O Campeonato conta também com o apoio do Conselho Indigenista Missionário (CIMI – Lábrea) que todo ano disponibiliza seu barco para auxiliar no transporte dos participantes, assim como diversos outros itens importantes para o encontro (banners, cartazes, material de divulgação). Mas o financiamento limitado ainda impossibilita a realização de seus objetivos finais: a produção do material didático e das animações. O Campeonato também foi pensado como um espaço de formação dos jovens às técnicas audiovisuais. Isso levou a federação indígena (FOCIMP) e a comissão organizadora a procurar mais parceiros, convidando este ano o Instituto Mpumalanga (que promove as Caravanas das Artes e do Esporte) para participar do evento e realizar uma oficina de vídeo destinada aos alunos indígenas Paumari e Apurinã. Uma equipe de filmagem também acompanhou o Campeonato, gravando um episódio da série Índio Presente que será distribuída em 2017 pela TV Brasil para as emissoras públicas brasileiras. Duas convidadas do IFAM (Instituto Federal Amazonas) e da Nova Cartografia Social da Amazônia também estavam presentes, além de instituições locais e convidados Apurinã e Jamamadi.

 time preparado para se apresentar
Time preparado para se apresentar

O terceiro campeonato

O primeiro dia foi dedicado à apresentação dos parceiros e dos convidados, que eram chamados regularmente para o palco para se apresentar, falar de suas instituições e discursar, processo que culminou com o hino nacional sendo cantado coletivamente no casarão (fato inédito no Campeonato).  Em seguida, foram escolhidos fiscais cuja tarefa seria supervisionar toda a organização do evento, incluindo nisso a cozinha, a formação dos grupos, o trabalho dos jurados e a apuração dos resultados finais. Assim, um tempo considerável também foi dedicado à elaboração de crachás para todas essas funções, revelando assim uma certa preocupação com a codificação do evento.

O segundo dia acabou ficando um pouco esvaziado, talvez por conta das atividades paralelas ligadas às filmagens que estavam sendo realizadas e à oficina de vídeo. Mas, como nos outros anos, o casarão foi palco de reuniões e conversas sobre diversos temas importantes. Já, as apresentações de cantos e danças foram mais escassas e bem menos espontâneas do que nas edições anteriores. De forma geral, esta edição do Campeonato foi marcada por um controle mais rigoroso da organização do evento, por uma formalização das apresentações das histórias e das coreografias e uma padronização das pinturas corporais.

Apresentação de dança do time da Santa Rita
Apresentação de dança do time da Santa Rita

O terceiro dia foi dedicado ao torneio propriamente dito. As apresentações se sucederam, respeitando a ordem dos times que havia sido sorteada no primeiro dia. Todas as apresentações foram extremamente caprichadas e o trabalho dos jurados não foi fácil. Mas foi a apresentação do time da Aldeia Santa Rita que este ano empolgou o público e os jurados com uma dança que encenou a visita das onças aos Paumari (no ritual de iniciação das moças) e a história da moça, filha de guerreiros Jobiri, que foi atacada por duas onças mas saiu ilesa: “Ima’inavi jobiri kaisai jomahi vi’bamiki vanaraofahavini varani hini”). O segundo lugar foi para a aldeia Morada Nova, enquanto o terceiro foi concedido à aldeia Crispim que fez uma representação teatral da história da jovem em reclusão que foi capturada por um espírito bajadi (um tipo de fantasma que assombra os vivos) e resgatada pelos pajés.  

Apresentação da história vencedora (Time Santa Rita)
Apresentação da história vencedora (Time Santa Rita)

 

Povos do Médio Purus, entre invisibilidade e abandono

Fortemente marcados pela economia da borracha (do final do século XIX até meados do século XX), o aviamento e a escravidão pela dívida, o médio curso do rio Purus e seus povos sempre sofreram de seu isolamento geográfico e invisibilidade histórica e política. No que diz respeito à política indigenista, a região era literalmente esquecida até a reestruturação da FUNAI, em 2009. Foi então criada uma Coordenação Regional na cidade de Lábrea, para atender os 18 povos da região o que, até então, era feito por único um servidor, alocado num posto indígena na cidade.

Outra caraterística importante é a forte presença de missões evangélicas nos povos da região, promovida na década de 1960, pelo próprio governo brasileiro. É importante lembrar que para os Paumari, a partir daquele momento, a missão desempenhou um papel importante nas áreas da saúde e da educação, espaços que o Estado não ocupava. Isso até o final da década de 1990, quando essas obrigações foram entregues aos órgãos públicos responsáveis. Por outro lado, ao longo dos anos, foi se criando uma divisão entre os Paumari que se consideram “crentes” (convertidos ao protestantismo) e que hoje não praticam mais seus rituais e aqueles que os frequentam e realizam.

Segundo lugar, apresentação do time da Morada Nova
Segundo lugar, apresentação do time da Morada Nova

Novos atores, transformações políticas

Após a extinção da primeira organização indígena regional – financeiramente afetada pelo convênio assinado com a FUNASA na década de 2000 -, o movimento indígena regional se reconstruiu progressivamente a partir de 2010, data da criação da FOCIMP. Nessa mesma época, atores novos começaram a atuar na região, implementando projetos como o do manejo pesqueiro do pirarucu, nas terras paumari da região do Rio Tapauá (resultado de parcerias entre a Operação Amazônia Nativa (OPAN) e diversas agências financiadoras), ou como o Centro de Trabalho Indigenista (CTI) que trabalha hoje em parceria com a Frente de Proteção Etnoambiental do Madeira-Purus (FUNAI), a própria CR Médio Purus e a FOCIMP, no projeto de “Proteção Territorial de povos indígenas isolados e de recente contato na Amazônia brasileira”. A criação e o fortalecimento da FOCIMP coincide portanto com a consolidação da FUNAI na região e com o surgimento de projetos de grande porte que envolvem direta ou indiretamente parceiros muito diversos, desde ONGs, governo, universidades, antropólogos, biólogos, lingüistas, a grandes e mega empresas com interesses econômicos na região, como a Petrobrás e a Natura. Assim, ao mesmo tempo que a política indígena regional começa a se reconstituir e a tomar novos rumos, os povos da região têm que lidar com uma multiplicidade de atores, agências e interesses com os quais até então não tinham familiaridade.

Terceiro lugar, apresentação do time do Crispim
Terceiro lugar, apresentação do time do Crispim

É nesse contexto que surgiu o Campeonato na língua Paumari, como uma iniciativa local, visando um povo específico e ligada a uma língua indígena e a questões vistas geralmente como politicamente “secundárias” (língua, infância, escola). Mas ao longo das duas primeiras edições, o evento foi se revelando politicamente bem mais potente do que um simples encontro cultural ou um projeto de revitalização da língua, abrindo espaço para uma intensa troca entre os Paumari, que passaram a promover debates, não apenas sobre língua e educação, mas sobre a cultura, questões fundiárias, política e sobre sua própria representação no seio da federação regional. Despertando a curiosidade dos vizinhos e estimulando assim um diálogo mais amplo entre os povos da região como um todo. Essa dinâmica se confirmou este ano e, simultaneamente, o evento foi apresentando uma forma ligeiramente diferente, mais ritualizada e codificada, do que  as edições anteriores. Hoje, os Paumari continuam falando de língua, e fazendo política, fundando sua própria organização, no âmbito da FOCIMP (e como membro desta), para discutir suas questões internas e fortalecer sua representação no seio do movimento indígena regional.

Fotos – Oiara Bonilla.

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